Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
146/15.0T8AMD-A.L1-6
Relator: MARIA MANUELA GOMES
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
COMPETÊNCIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/17/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -O Novo Regime Jurídico do Processo de Inventário (iniciado com a Lei n.º 29/2009) regulado actualmente pela Lei n.º 23/2013 de 5 de Março e Portarias 278/2013 de 26 de Agosto e 46/2015, de 23 de Fevereiro, entrou em vigor em 2 de Setembro, valendo o Código de Processo Civil para as lides pendentes e, subsidiariamente, para todas.
-Tratou-se de uma desjudicialização parcial (ou competência repartida), já que os Tribunais intervêm quando os Notários remetem os interessados para os meios comuns e sempre, e obrigatoriamente, para sentenciarem a homologação da partilha (artigo 66.º da Lei n.º 23/2013).
-Se um interessado excepciona a competência absoluta do Tribunal para julgar uma questão que entende ser de partilha notarial, não se está perante um conflito de jurisdição pois não existe confronto entre a autoridade administrativa (notário) e o Tribunal a negarem ou concorrerem à decisão do pleito.
-A competência dos Tribunais Judiciais, perante outros, é residual e o respectivo nexo fixa-se no momento em que a acção se propõe, matéria abandonada pelo CPC para a Lei de Organização do Sistema Judiciário.
-Para decidir da competência absoluta há que atentar no pedido e na causa de pedir (“quid disputatum”).
-Não há que requerer inventário se o que está em causa é efectivar a responsabilidade contratual de um “ex” cônjuge para com o outro, já que a quantia pedida não constitui divida activa ou passiva do acervo a partilhar e se venceu após a dissolução do casamento.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


1.F... intentou acção com processo comum, contra M..., pedindo que fosse declarada:

-solidária a obrigação de pagamento contraída por si e pela Ré, “no âmbito do crédito celebrado com o Banco ..., em 30 de Outubro de 2001, no montante de 6.500.000$00 (€ 32 421,86), enquanto casados e em proveito comum e a que se refere a escritura outorgada no 16.º Cartório Notarial de Lisboa”;
-a condenação da Ré, “a título de direito de regresso ao pagamento de 50% do valor das prestações vencidas no indicado crédito e das prestações do seguro de vida de ambos, entre 14 de Maio de 2003 e 30 de Outubro de 2014, no montante de € 11.765,89, valor acrescido dos correspondentes juros de mora, à taxa de 4%, desde o vencimento de cada uma das prestações mensais, que, em 30/10/2014, se cifram em € 2.508,14”;
-a condenação da Ré no pagamento de 50% de todas as prestações que se venceram desde 30/10/2014 e se vençam até ao final do contrato indicado, acrescidas de juros de mora, à taxa de 4%.

Alegou, nuclearmente, que casou com a Ré, em 2 de Outubro de 1998, sem convenção antenupcial; que se divorciaram, tendo a respectiva sentença transitado em julgado em 29 de Maio de 2003; que, na constância do casamento, em 30 de Outubro de 2001, os cônjuges celebraram dois contratos: mútuo de 8.420.470$00 (€ 42.001,13) e abertura de crédito de 6.500.000$00 (€ 32,421,86); que o mútuo se destinou a substituir um empréstimo contraído em 12/9/2000, ao “Banco ...”, para pagamento de tornas que o Autor devia à sua ex-mulher, uma vez que o B.... ofereceu “melhores condições”; que, o contrato de abertura de crédito – único pelo qual a Ré é responsável – nada tem a ver com o anterior casamento do Autor e a quantia obtida foi gasta pelo Autor e Ré, em proveito comum do casal; que, a Ré, embora interpelada várias vezes pelo Autor, ao longo dos anos, nunca pagou qualquer quantia para amortização deste empréstimo, tendo o demandante pago o total de € 23.531,78; que, a Ré é responsável por metade desta quantia, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 1691.º do Código Civil.

A Ré contestou, por excepção (incompetência absoluta e relativa) e impugnação.

Ali, afirmou tratar-se de “partilha subsequente a divórcio” da competência do Notário sediado no município da casa morada de família.

A 1.ª Instância julgou improcedentes as excepções.

No tocante à incompetência absoluta, por entender que a questão “sub judice” não diz respeito à partilha consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges, mas sim à responsabilidade entre co-devedores por obrigações contraídas pelos dois, e que foram satisfeitas perante o credor por um deles.

No tocante à competência territorial, por ser de aplicar o n.º 1 do artigo 71.º CPC, e foi-o, considerando o lugar do domicílio da Ré e o Tribunal onde a acção foi intentada.

Inconformada, apelou a Ré, formulando as seguintes conclusões:

-As partes nunca fizeram partilhas subsequentes ao divórcio;
-O Autor, como administrador do património comum e cabeça de casal foi fazendo pagamentos à entidade bancária;
-Só em sede de inventário se pode aferir da existência de património comum;
-No caso, a incompetência absoluta condiciona a territorial.

Contra-alegou o recorrido, em defesa do julgado, e sintetizando, a final:

-O Autor e a Ré nada têm a partilhar, por inexistência de qualquer bem “resultante da comunhão conjugal, já dissolvida há largos anos”;
-A Ré, confessando que nada pagou, e que estão em causa obrigações vencidas após o divórcio, só tenta protelar o pagamento.

Dispensados os vistos, cumpre conhecer.

2.Para a apreciação do presente recurso releva a matéria de facto acima referida, constante de documentos autênticos, e outros não impugnados, sendo que, além do seriado, se prova que, aquando da conversão do divórcio sem consentimento em divórcio por acordo mútuo, os cônjuges declararam (ao abrigo da alínea) do n.º1 do artigo 994.º do Código de Processo Civil [(anterior artigo 1419.º)] que os “bens comuns a partilhar são constituídos por:

1-Veículo automóvel (…);
2-Recheio da casa morada de família (…). (fls. 89).
Afirmaram, ainda, “inexistir casa morada de família”.
-Não declararam a existência de qualquer passivo.
-Nenhum deles requereu, desde logo, o inventário, nem o fez ulteriormente.

Posto isto, vejamos.

3.O Novo Regime Jurídico do Processo de Inventário, que desjudicializou este procedimento, iniciou-se com a Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho, (alterada pelas Leis n.ºs 1/2010 e 44/2010), e foi seguida pela actual Lei n.º 23/2013, de 5 de Março (e Portarias n.ºs 278/2013, de 26 de Agosto e 46/2015, de 23 de Fevereiro), tudo na sequência da Resolução (programática) do Conselho de Ministros n.º 172/2007, de 6 de Novembro.

Daí resulta que, aquando do divórcio do Autor e Ré, as novas regras do inventário ainda não se regiam pela Lei 23/2013 que, aliás, só entrou em vigor no dia 2 de Setembro desse ano, valendo o Código de Processo Civil, para os inventários pendentes.

Há, porém, que atentar que a desjudicialização não é integral, já que os Tribunais intervêm nos casos previstos nos artigos 16.º n.º 1, 17.º n.º 2, 36.º n.º 1 e 57.º n.º 3 (remessa dos interessados para os meios judiciais comuns); 79.º n.º 3 (caso de inventário sequência de separação, divórcio, anulação ou declaração de nulidade de casamento) — remessa para mediação.

São também, e sempre, aplicáveis subsidiariamente, as normas do Código de Processo Civil (artigo 92.º, ainda da Lei a que nos vimos referindo).

Há, em consequência, competência repartida entre os Cartórios Notariais e os Tribunais, e estes sempre proferem a sentença homologatória da partilha (artigo 66.º do mesmo diploma) que é recorrível.

3.1. Muito embora a recorrente ponha em causa a “competência absoluta” do Tribunal, e afirme ser competente o Notário, o certo é que não se trata de conflito — que a existir seria de jurisdição, uma vez que um dos intervenientes não é um Tribunal mas uma entidade administrativa — já que não ocorre confronto, a reivindicar (conflito positivo) ou recusar (conflito negativo) para conhecimento da mesma questão, como impõe o n.º 1 do artigo 109.º do Código de Processo Civil.

E a existir a solução caberia ao Tribunal dos Conflitos (Francisco Lucas Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, I, 312; A. Varela, M. Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 1984, 186; e Castro Mendes – “ Processual Civil”, I, 1968, p. 301).

No rigor, e como a competência é repartida, nos termos acima referidos, podemos optar pela expressão interjurisdicional, (que não intrajudicial, conflito a ocorrer dentro de um mesmo Tribunal), acolhendo, de certo modo, a terminologia insinuada por Manuel de Andrade (“Noções Elementares de Processo Civil”, 87 – 88).

Aqui chegados, pode concluir-se estarmos no âmbito da competência absoluta dos tribunais judiciais, que tem duas características fundamentais: é residual, por se verificar sempre que a lei ou outro tribunal a não estabeleçam em contrário – artigo 40.º da LOSJ; o respectivo nexo fixa-se no momento em que a acção se propõe, não só atendendo à lei como à situação fáctica referida na petição - “perpetuatio jurisditionis: semel competens, semper competens”.

Actualmente, o princípio está consagrado no artigo 38.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto) sendo que antes tinha sede no artigo 63.º do Código de Processo Civil e no artigo 22.º n.º 1 da LOFTJ – Lei n.º 3/99 de 13 de Janeiro).

Ora, e como ensinava Manuel de Andrade há que atentar nos “índices de competência”, devendo “olhar-se aos termos em que foi posta a acção – seja aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto de onde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.) seja quanto aos seus elementos subjectivos” (…)

E continuava aquele autor, citando Redenti: “a competência afere-se pelo «quid disputatum» (quid decidendum) em antítese ao que será mais tarde o «quid decisum»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do autor”. (ob. cit., 1976, 90, 91); e v.g. Acórdãos do STJ de 12 de Janeiro de 2010-1337/07.3TBABT.e1.s1; DE 13 DE Março de 2008 – 08A391).

Daí que, analisando o primeiro articulado da acção, o pedido formulado e a respectiva causa de pedir, afigure-se-nos evidente que o Autor só pretendeu efectivar a responsabilidade contratual da Ré, por obrigação contratual vencida muito depois da dissolução do casamento.

Não é, por isso, aplicável o artigo 1695.º do Código Civil que tem outro âmbito – responsabilidade para com terceiros que não entre os cônjuges – não o eventualmente, relacionar como dívida (activa ou passiva) do acervo comum a partilhar, o que um dos “ex cônjuges” se comprometeu a prestar ao outro.

Aliás, se a recorrente pretendia o inventário, podia tê-lo requerido, e aí, entendendo haver passivo a descrever, reclamar a sua inserção.

E, assim, decaindo na excepção de incompetência material, decorre o decaimento na incompetência em razão do território, “in casu” com ela estritamente conectada.

Improcede, pelo exposto, a argumentação da recorrente.

4.Termos em que, reconhecendo-se ser o Tribunal competente absoluta e relativamente, se acorda em negar provimento ao recurso e manter o despacho recorrido.
Custas pela recorrente.



Lisboa, 17 de Março de 2016.



Maria Manuela B. Santos G. Gomes
Fátima Galante
Gilberto Jorge
Decisão Texto Integral: