Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8477/2006-8
Relator: CARLA MENDES
Descritores: INÍCIO DA PRESCRIÇÃO
HERANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- De acordo com o disposto no artigo 7.º/1 do Decreto-Lei n.º 172-B/86, de 30 de Junho, “ por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de 5 anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem […], prescrevendo o n.º2 que “ findo o prazo a que se refere o n.º anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização de Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição”
II- Assim, atento o disposto no artigo 306.º do Código Civil, o direito só pode ser exercido quando o respectivo titular tiver conhecimento da existência e titularidade do respectivo direito, sendo, em si, neutro o facto que permite desencadear o instituto da prescrição. no caso a morte do titular dos certificados de aforro.
III- Ora, provando-se que tanto o cabeça-de-casal como os demais herdeiros, não obstante o de cujus ter falecido em 15-6-1994, desconheciam ter ele subscrito certificados de aforro dos quais apenas tiveram conhecimento após a morte da viúva daquele ocorrida em 8-6-1999, o prazo de prescrição inicia-se com esse conhecimento, verificado quando os herdeiros procederam pelos finais de 1999 à busca dos bens deixados pelo seu progenitor, o de cujus cujo óbito ocorreu em 15-6-1994

(SC)
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

P.[…], A.[…] e S.[…] demandaram o Instituto de Gestão de Crédito Público pedindo a condenação deste a reconhecer-lhes o direito de propriedade sobre o certificado de aforro nº 048846350 e a reembolsá-los pelo montante de Esc. 6.048.019$00, acrescido de Esc. 211.680$00 de juros de mora vencidos desde a interpelação e nos vincendos.

Contestou o réu e replicaram os autores tendo sido proferido despacho saneador-sentença que julgou parcialmente procedente a acção e condenou o réu a pagar aos autores a quantia de Esc. 3.024.009$00, correspondente a metade do capital e juros remuneratórios sobre o capital de Esc. 1.366.500$00 e dos moratórios sobre esta quantia desde a data da citação.

Inconformados, os autores apelaram.

O réu depositou a quantia de Esc. 3.377.441$00, pedindo que fosse declarado extinto o processo atento o pagamento do montante da dívida.

Foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação que julgando a apelação procedente, revogou a parte impugnada da sentença recorrida e condenou o réu a pagar aos autores a restante metade do certificado de aforro, acrescida dos respectivos juros remuneratórios e moratórios desde a data da citação até integral pagamento à taxa de 7%.

Interpôs o réu recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, que determinou que os autos baixassem ao Tribunal da Relação para ampliação da matéria de facto.

O Tribunal da Relação ampliou a matéria de facto, arts. 6 e 7 da p. i. e 31 e 36 da réplica tendo os autos regressado à 1ª instância.

Realizado julgamento foi proferida sentença que condenou o réu – na parte do pedido que ainda não foi objecto de decisão com trânsito em julgado - a pagar aos autores a restante metade do valor do certificado de aforro, acrescida dos respectivos juros remuneratórios e moratórios, estes, desde a citação e até integral pagamento, às taxas legais de 7% até 30/4/2003 e de 4% a partir desta data.

Inconformado o réu apelou formulando as seguintes conclusões:

1ª. O Apelado recorre da sentença propalada a fls. […]  dos autos, e na qual o Mmo. Juiz do Tribunal a quo julga improcedente a excepção de prescrição do direito dos Apelados na parte do pedido que ainda não foi objecto de decisão transitada em julgado, e, em consequência, "...condenando o R. a pagar aos AA. a restante metade do valor do certificado de aforro, acrescida dos respectivos juros remuneratórios e moratórios, desde a citação e até integral pagamento, às taxas legais de 7% até 30-04-2003 e 4% a partir desta data (Portarias n. °s 263/99, de 12-04, e 291/2003, de 08-04)."
2ª. Dos presentes autos os Apelados pediram a condenação do Apelante a reconhecer-lhes o direito de propriedade sobre o certificado de aforro n° […], e a pagar-lhes o montante de Esc. 6.048.019$00, valor do aludido certificado à data de interpelação, bem como juros remuneratórios e moratórios à taxa legal.
3ª. Foi proferido despacho saneador sentença, que considerou a acção parcialmente procedente, condenando o R. ao pagamento de metade do valor do certificado aos AA. - a meação do cônjuge mulher - e julgado procedente a excepção de prescrição relativamente à outra metade.
4ª. O R., ora Apelante, deu cumprimento ao decidido na sentença.
5ª. Inconformados os AA. recorreram e no Douto Acórdão propalado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa obtiveram vencimento.
6ª. Inconformado, o aqui Apelante interpôs recurso de revista e por douto Acórdão de fls…. os Venerandos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça ordenaram, nos termos do disposto no art. 729° do CPC, a baixa dos autos ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa pará que fosse ampliada a matéria facto.
7ª. Em cumprimento do ordenado foi revogada a decisão proferida no Acórdão de fls. determinada a ampliação da matéria de facto, tendo sido julgado o processo em conformidade.
8ª. Considerou o Mmo. Juiz do Tribunal a quo que, no caso sub judice, não ocorreu a prescrição do direito, porquanto os Apelados desconheciam, até finais de 1999, a existência do certificado de aforro, pelo que não podiam exercer um direito que desconheciam ter (n° 1, do art. 306°, do CC).
9ª. Salvo o devido respeito, ao caso em apreço não é aplicável o n° 1, do art. 306°, do CC;
10ª. E não é aplicável, por um lado, porquanto os Apelados, por sua livre iniciativa, decidiram não proceder a quaisquer operações de partilha e de tratamento dos bens deixados por óbito de seu Pai - tratou-se de uma opção sua, por cujas consequências não podem vir a responsabilizar terceiros; por outro, porque o legislador concebeu a regra relativa à prescrição dos certificados de aforro (art. 7° do DL n° 172/86 de 30 de Junho] como operando em termos objectivos, não cuidando de apurara se os potenciais afectados por tal norma estavam a par da existência dos certificados.
11ª. O intérprete deve presumir que "o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados" (art. 9°, n° 3, do CC); assim, o único sentido útil e lógico a retirar da interpretação do art. 7°, do DL n° 172/86 de 30 de Junho, é a de que o direito dos herdeiros de um titular de certificados de aforro requererem, junto do Instituto de Gestão do Crédito Público, a transmissão ou respectivo reembolso, constitui-se com a ocorrência do óbito do titular, e que tal direito deve ser exercido no prazo de 5 anos contados do óbito daquele, sob pena de prescrição.
12ª. No caso sub judice o titular do certificado de aforro faleceu em 15/06/1994, pelo que, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 7°, do DL n° 172/86 de 30 de Junho, os seus herdeiros deveriam ter exercido o seu direito de sucessão na titularidade até 15/06/1999, data a partir da qual se deve considerar prescrito (a metade em discussão neste recurso) a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública.
13ª. Termos em que deverá ser revogada a sentença propalada a fls... dos autos e, em consequência, ser proferido Acórdão que declare verificada a excepção de prescrição, absolvendo o Apelado do pedido.
Foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Foram estes os factos que a 1ª instância deu como provados:

1º Em 14 de Junho de 1991 foi subscrito o certificado de aforro n.º […], correspondente a 5.466 unidades, com o valor de aquisição de 2.733.000$00, constando do mesmo como aforrista F.[…] (D).

2º Nesse certificado diz-se o seguinte: “também pode ser movimentado por M.[…]” (E).
3º F.[…] faleceu em 15-06-1994 no estado de casado com Maria […] (A).
4º Maria […] faleceu em 08-06-1999 no estado de viúva (B).
5º Maria […] e F.[…] foram casados no regime de comunhão geral de bens (C).
6º Os AA. nunca pretenderam partilhas dos bens inicialmente deixados pelo pai, tanto mais que também não tinham privações de ordem material que os levasse a tal procedimento (4º e 5º).
7º Como o R. muito bem sabe, pois tem em seu poder documentação abundante nesse sentido, a mãe dos AA., fortemente abalada pela morte do marido, viu agravar-se um quadro psico-patológico anterior, que viria a conduzi-la à morte (6º).
8º Reunidos em volta da mãe, e com a presença da avó materna, ainda viva e com 89 anos de idade, de forma alguma se pensava em partilhar objectos, dinheiro ou outros bens (7º).
9º A A. A.[…], enquanto cabeça-de-casal, bem como os restantes AA., desconheciam a existência do certificado de aforro e apenas dele tiveram conhecimento após a morte da mãe, pelos finais do ano de 1999, quando se procedeu a uma busca dos bens deixados pelo pai, requerendo então o respectivo resgate (1º a 3º e 8º).
10º Em Novembro de 1999, data em que a A. A.[…], na qualidade de cabeça-de-casal das heranças de seus pais, encetou diligências junto do R. para que este procedesse ao reembolso do valor titulado pelo mencionado certificado, esse ascendia a 6.048.019$60 (F).

Atentas as conclusões da apelante que delimitam, como é regra, o objecto de recurso – arts. 684/3 e 690 CPC – a questão que cabe decidir consiste em saber se ocorreu a prescrição de 5 anos, prevista no art. 7 DL 172B/86 de 30/6, relativamente ao direito de propriedade dos autores sobre a metade do certificado de aforro nº 048846350 (meação do pai dos autores).

Vejamos, então.

“ As características próprias dos certificados de aforro, como instrumento fundamental da política de estímulo à poupança dirigida às pequenas economias, DL 43453 de 30/12/60, DL 48214 de 22/1/68 e DL 172B/86 de 30/6, e que são o seu carácter nominativo e a sua intransmissibilidade, a não ser mortis causa, não obsta, em princípio, no caso da sua constituição por pessoas casadas, à sua qualificação como bens comuns.

Com efeito, nem da respectiva estrutura, nem das normas gerais que definem os regimes de bens do casamento – arts. 1721 sgs. CC –, consta a sua referência como integrando, obrigatoriamente o elenco de bens próprios.

Por outro lado, os certificados de aforro, enquanto títulos de crédito com uma especial fisionomia, constituem realidade jurídica diferenciada e autónoma relativamente ao numerário que esteve na base da sua constituição” – cf. Ac. STJ de 11/4/2002 in www.dgsi.pt.

De acordo com os factos provados, os certificados de aforro constituídos pelo pai dos autores, na constância do seu matrimónio, segundo o regime de comunhão geral de bens, constitui um bem comum – art. 1732 CC.

Estipula o art. 7 DL 172B/86 de 30/6 que: “Por morte do titular de um certificado de aforro, poderão os herdeiros requerer, dentro do prazo de 5 anos, a transmissão da totalidade das unidades que o constituem…(nº1); “findo o prazo a que se refere o nº anterior, consideram-se prescritos a favor do Fundo de Regularização da Dívida Pública os valores de reembolso dos respectivos certificados, sendo, no entanto, aplicáveis as demais disposições em vigor relativas à prescrição” (nº 2).

Por seu turno o art. 306 CC dispõe que:”O início do prazo prescricional começa a correr quando o direito puder ser exercido…”.

“Desde tempos bem recuados que a doutrina indica como fundamento específico da prescrição a negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período legalmente estabelecido, a qual faz presumir ou a renúncia ao direito ou, pelo menos, torna aquele indigno de protecção jurídica – cf. Manuel de Andrade in Teoria Geral da Relação Jurídica II, 445-446 -, a inércia negligente.

Como refere Manuel de Andrade, o instituto da prescrição não é justo, mas conecta-se com razões de convivência ou oportunidade – as razões de justiça só o justificam como motivo de defesa do devedor e não como causa de extinção das obrigações.
O fundamento básico da prescrição centra-se, mais no próprio devedor do que em valores de ordem geral.
O art. 7 do DL 172/86 não afasta a aplicabilidade do regime geral da prescrição, para ele remetendo na parte final do seu nº 2.

A especificidade da disposição reside no estabelecimento de um prazo curto de prescrição – neste diploma apenas se admite a transmissibilidade por morte, art. 3 nº 1, daí que início da contagem tenha que ser o facto morte – e na indicação do destino a dar ao valor dos reembolsos que pelos titulares do direito não foram exercitados – prescritos a favor do Fundo de regularização da Dívida Pública.

Assim, o regime geral da prescrição, art. 306 CC, é aplicável aos certificados de aforro.

A prescrição só pode ter lugar quando o direito está em condições do seu titular poder exercitá-lo, ou seja, tem que haver conhecimento do direito pelo seu titular.

Refere Manuel de Andrade que “não pode dizer-se que haja negligência da parte de um titular do direito em exercitá-lo enquanto ele o não pode fazer valer por causas objectivas, isto é, inerentes à condição do mesmo direito e que, na hipótese do direito já ser exercitável, só pode ser impedido por motivos excepcionais, que são as causas suspensivas da prescrição” pág. 449.

A exigência do conhecimento da existência e titularidade do direito satisfaz o pressuposto de o direito poder ser exercido.

O facto que permite desencadear o instituto da prescrição é, em si, neutro.

Ninguém pode exercer um direito que desconhece ter, que não sabe que lhe assiste.

Se, desconhecendo-o o prazo se escoou, não se pode falar verdadeiramente em inércia – há apenas um decurso do lapso de tempo -, muito menos de negligência, sendo que pela prescrição se sanciona a inércia negligente do titular do direito” cf. Ac. STJ de 8/11/2005 SJ200511080031691, in www.dgsi.pt.

No caso dos autos, o direito dos autores eram exercitáveis desde a morte do seu pai, subscritor do certificado de aforro.

Isto pressupõe, que os herdeiros/autores conheciam a existência da subscrição do certificado de aforro pelo de cujus (pai).

Só assim, tomam conhecimento que, pela sua morte, ficam titulares daqueles direitos conferidos pelo art. 7 DL 172B/86.

O facto em si “morte do subscritor” é, em si, neutro, nada lhes diz relativamente à existência da subscrição de certificados de aforro pelo de cujus.

Mas se a morte e a subscrição dos certificados de aforro forem conhecidos, deixam de ser inócuos, porquanto facultam aos herdeiros o conhecimento de um direito da sua titularidade, impossibilitando-os de, mais tarde, invocarem quer a ignorância da lei, quer a sua má interpretação – art. 6 CC.

O  facto provado sob o nº 6 não é subsumível a inércia e muito menos a negligência, na verdade, ninguém é ou, pode ser, obrigado a efectuar partilhas, de imediato, após a morte de um  familiar (neste caso do pai).

Atentos os factos provados sob os nº 3, 4, 9 e 10, os autores exercitaram o seu direito (de propriedade do certificado de aforro)  dentro do prazo de 5 anos; exercitaram-no, após terem conhecido que eram titulares do mesmo; na verdade, só em finais de 1999 é que os autores tiveram conhecimento da existência do seu direito, ou seja, de que seu pai subscrevera o certificado de aforro dos autos, começando a partir dessa data, a correr o prescricional.

Assim, improcede a excepção da prescrição.  
 
Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença.

Sem custas por delas o apelante estar isento.

Lisboa, 14 de Dezembro de 2006
Carla Mendes
Caetano Duarte
Ferreira de Almeida