Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
204/07.5TTLRS.L2-4
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: FUNDO DE ACIDENTES DE TRABALHO
CASO JULGADO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
LIMITE DA PENSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário: I– O art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 185/2007, de 10 de Maio, que estabelece os requisitos da responsabilidade do Fundo de Acidentes de Trabalho para o pagamento de pensões aos beneficiários, aplica-se aos acidentes de trabalho ocorridos anteriormente se a decisão for proferida na sua vigência.
II– Assim é porque aquela lei dispõe directamente sobre o conteúdo de relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem (art.º 12.º, n.º 2 do Código Civil).
III– No caso de pensões agravadas por virtude do acidente de trabalho ser da responsabilidade do empregador, as pensões têm como limite o valor da retribuição da vítima, a repartir entre os beneficiários nos termos do art.º 20.º da Lei dos Acidentes de Trabalho.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa.


I - Relatório:


AA intentou, por si e em representação do seu filho menor BB, contra CC, S. A. e DD, S. A., a presente acção especial emergente de acidente de trabalho do qual decorreu a morte de EE, que era seu cônjuge e pai, respectivamente e, ao tempo, trabalhava na sede da primeira ré como motorista, sob as suas ordens, direcção e fiscalização, a qual tinha transferido a sua responsabilidade infortunística para a segunda ré, tendo sido proferida sentença no dia 25-10-2011, já transitada em julgado.

Nessa sentença foi decidido, com trânsito em julgado, com fundamento na responsabilidade da empregadora na produção dos danos do acidente por não ter cumprido integralmente as regras de segurança, julgar a acção parcialmente procedente e, em consequência, absolvendo do mais pedido, condenar a pagar:

a) a ré empregadora à autora uma pensão anual correspondente a 100 % da retribuição anual (900,00 € mensais líquidos x 14 meses = € 12.600,00) do sinistrado e ao seu filho menor, até este perfazer 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, uma pensão anual correspondente a 100 % da retribuição anual do sinistrado, desde 14 de Março de 2007;
b) a ré empregadora a ambos autores, o valor global de € 4.836,00, sendo € 2.418,00 para cada um e, subsidiariamente, a ré DD;
c) a ré empregadora, a título principal no pagamento dos juros que se vencerem sobre as quantias supra referidas, à taxa anual de 4 %, desde 14 de Março de 2007, até efectivo e integral pagamento e a ré DD subsidiariamente;
d) a ré DD, S. A., subsidiariamente, o pagamento de uma pensão anual à autora, AA, correspondente a 30% da retribuição anual do sinistrado até perfazer a idade de reforma por velhice e 40% a partir daquela idade ou no caso de doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho e, para o seu filho menor, BB, até este perfazer 18, 22 ou 25 anos, enquanto frequentar, respectivamente, o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior, uma penso anual correspondente a 20 % da retribuição do sinistrado, desde 14 de Março de 2007, tudo tendo por referência a retribuição anual de € 6.456,56 (€ 403,00 x 14 ÷ €67,88 x 12).

Por decisão proferida no processo n.º (…) do 4.º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, já transitada em julgado, foi a ré CC, S. A. declarada insolvente, não tendo os créditos em que aqui foi condenada a pagar ali sido reclamados e pagos.

Por despacho proferido nos autos no dia 04-04-2012, foi decidido que se verificavam os pressupostos legais para a intervenção do Fundo de Acidentes de Trabalho com vista ao pagamento das quantias em dívida por parte da ré empregadora.

Em requerimento apresentado no dia 29-04-2013, o Fundo de Acidentes de Trabalho requereu fosse esclarecido acerca desse despacho, tendo em vista saber qual o montante das pensões.

A Mm.ª Juíza esclareceu o Fundo de Acidentes de Trabalho através de despacho proferido em 06-03-2014, do seguinte teor:
(…)

O FAT solicita ao tribunal esclarecimentos sobre a medida da sua responsabilidade e rejeita a sua responsabilidade pelo pagamento de juros de mora (fls. 1077 a 1080).

O administrador da insolvência da entidade empregadora informou que a dívida decorrente do acidente de trabalho que vitimou o sinistrado não foi reclamada e não foi paga no âmbito do processo de insolvência (fls. 1110 e 1111).

O beneficiário BB não frequentou o ensino secundário ou curso equiparado ou o ensino superior após ter completado 18 anos de idade em 29 de Dezembro de 2009 (fls. 1097).

Dispõe o art.º 39.º, n.º 1 da Lei O 100/97, de 13 de Setembro (aplicável in casu atenta a data da ocorrência do acidente), que a garantia do pagamento das pensões por incapacidade permanente ou morte e das indemnizações por incapacidade temporária estabelecidas nos termos da presente lei que não possam ser pagas pela entidade responsável por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente ou processo de recuperação de empresa ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, serão assumidas e suportadas por fundo dotado de autonomia administrativa e financeira a criar por lei no âmbito dos acidentes de trabalho nos termos a regulamentar.

Na sequência desta norma foi publicado o D.L n.º 142/99, de 30 de Abril, que criou a Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT) e estipula no art.º 1.º, n.º 1, al. a) que é competência do FAT garantir o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho sempre que, por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, não possam ser pagas pela entidade responsável.

Da conjugação destas normas legais resulta que o FAT garante o pagamento das prestações que forem devidas por acidente de trabalho sempre que não possam ser pagas pela entidade responsável:

-por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente ou processo de recuperação de empresa;
-por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação da entidade responsável;
No caso vertente, verifica-se que a dívida decorrente do acidente de trabalho que vitimou o sinistrado não foi reclamada e não foi paga no âmbito do processo de insolvência da empregadora, pelo que mostra comprovada a incapacidade económica da empregadora para pagar aos beneficiários legais as prestações por acidente de trabalho em que foi condenada, sendo que esta incapacidade se mostra caracterizada em processo judicial de falência.

Por conseguinte, encontram-se reunidos todos os requisitos para determinar a intervenção do FAT e da seguradora.

E porque o acidente que vitimou o sinistrado ocorreu em data anterior à entrada em vigor do D.L n.º 185/2007, de 10 de Maio, isto é, em data na qual estava em vigor o D.L. n 142/99, de 30 de Abril e não estabelecendo o art.º 1, n.º 1, al. a) deste último diploma legal qualquer distinção, para efeitos de responsabilização do FAT, quanto a prestações emergentes ou não emergentes de responsabilidade agravada, essa responsabilização abrange também os casos de responsabilidade agravada (vide, neste sentido, por todos, o Ac. do STJ de 17.06.20 10, relatado por Mário Pereira, disponível em www.dgsi.pt).

Assim sendo, esclarece-se a seguradora e o FAT que:

- mantêm-se os montantes das pensões nos termos calculados na sentença proferida nos autos porque esta decisão transitou em julgado;
- as pensões são devidas a ambos os beneficiários - viúva e filho - desde 14 de Março de 2007;
- a pensão do beneficiário BB é devida até à data em que o mesmo perfez 18 anos - 29 de Dezembro de 2009;
- existindo responsabilidade subsidiária da seguradora, o FAT responde pelo diferencial entre as pensões normais e as pensões agravadas;
- o FAT não responde pelo pagamento de juros de mora porque estas prestações não estão contempladas no citado art.º 39.º da Lei n.º 142/99, de 30 de Abril (vide, neste sentido, entre outros, o Ac. da RL de 17.07.2008 e Ac. do STJ de 17.06.2010, ambos disponíveis em www.dgsi.pt);
- a FF, S. A. responde pelo pagamento dos subsídios por morte e pelas pensões normais a ambos os beneficiários;
Notifique, sendo também o FAT e seguradora para, no prazo de 20 dias, comprovarem nos autos o pagamento das prestações nos termos anteriormente determinados.

Inconformado, o Fundo de Acidentes de Trabalho recorreu desse despacho, culminando as alegações com as seguintes conclusões:
(…)

Para tal notificado, o Ministério Público, em representação do beneficiário menor, BB, contra-alegou, sustentando a manutenção do despacho recorrido e finalizando com as seguintes conclusões:
(…)

Colhidos os vistos,[1] cumpre agora apreciar o mérito do recurso, cujo objecto, como pacificamente é considerado, é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, ainda que sem prejuízo de se ter que atender às questões que o tribunal conhece ex officio.[2] Assim, porque em qualquer caso nenhuma destas se coloca, importa saber se:

• tendo sido fixadas pensões agravadas em resultado de um acidente de trabalho mortal que atribuiu pensões ao cônjuge e ao filho da vítima que a responsável directa, responsável por ter violado regras de segurança, não pode pagar por ter sido declarada insolvente, pode o Fundo de Acidentes de Trabalho, pese embora a sentença ter transitado em julgado, quando notificado para as pagar discutir que o valor por que responde é inferior às fixadas por conta da empregadora;
• nesse caso, o valor global das duas pensões é igual ao da retribuição, rateado nos termos previstos no art.º 20.º da Lei dos Acidentes de Trabalho.
***

II - Fundamentos:

  1. Factos a considerar:

Os que constam do antecedente relatório, que se dão por reproduzidos, supostos que estão, de restos, pelas partes.

3. O direito:

3.1. A primeira questão que cumpre apreciar consiste em saber se, pese embora ter a sentença que fixou as pensões de que os autores são beneficiários transitado em julgado, pode o Fundo de Acidentes de Trabalho, quando notificado para pagar a parte da empregadora responsável que o não pode fazer por ter sido declarada insolvente, discutir o valor por que responde e, designadamente, se é inferior ao fixado por conta da responsável directa.

A pretensão recursiva encosta-se aos art.os 680.º, n.º 2 do Código de Processo Civil e ao art.º 1.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril e à circunstância de não ter sido parte no processo aquando da fixação das pensões em benefício dos autores e a cargo da ré empregadora e, portanto, nessa medida, sendo terceiro, quanto a ele não se formou caso julgado, sendo a obrigação a seu cargo é independente e autónoma, tendo nascido com o despacho a ordenar o pagamento e podendo até ter um conteúdo diferente da obrigação do original responsável.
 
Em sentido negativo pronuncia-se o recorrente Ministério Público, louvando-se no teor dos art.os 39.º, n.º 1 da Lei dos Acidentes de Trabalho de 1997 e 1.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril, que criou o Fundo de Acidentes de Trabalho pois que, pese embora este seja terceiro, a verdade é que a acção decorreu entre todos os interessados directos, activos e passivos e que, a entender-se o contrário, isso colidiria com a própria natureza daquele e do próprio caso julgado. Pese embora, deve salientar-se, entenda que o decidido se arrima a uma corrente minoritária da doutrina e  da jurisprudência.

          Vejamos então como decidir esta questão.

A sentença que estabeleceu o direito do recorrido e sua mãe a receber da empregadora de seu pai e cônjuge foi proferida em 25-10-2011 e o despacho que definiu a obrigação do Fundo de Acidentes de Trabalho, em substituição daquela, enquanto obrigada principal, foi proferido no dia 04-04-2012.

Em qualquer desses momentos estabelecia o art.º 680.º do Código de Processo Civil então em vigor que só as pessoas que fossem directa e efectivamente prejudicadas pela decisão podiam dela recorrer, fossem ou não partes na causa.

Por outro lado, dizia-se no art.º 677.º que "a decisão considera-se passada ou transitada em julgado, logo que não seja susceptível de recurso ordinário, ou de reclamação nos termos dos artigos 668.º e 669.º". E no art.º 497.º, n.º 1 que "as excepções a litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa", no art.º 498.º que (1) "repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir", que (2) "Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica" , (3) "lá identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico" e que (4) "há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico".

Destarte, parece evidente que o Fundo de Acidentes de Trabalho não era parte na causa quando o Tribunal a quo definiu o direito do recorrido e sua mãe receberem pensões da empregadora de seu pai e cônjuge por causa da sua morte, ocorrida por causa da violação por ela de regras de segurança, pois que só muito depois foram definidos os pressupostos da sua obrigação para com aqueles beneficiários, ditada, desde logo, pela insolvência daquela, principal obrigada. E se assim se passaram as coisas, naturalmente que o Fundo de Acidentes de Trabalho não teve oportunidade para discutir a bondade com que essas pensões foram estabelecidas.

Destarte, quer porque não era parte na causa, quer porque não tinha legitimidade para recorrer da decisão nela proferida, cremos que, salvaguardando o respeito pela tese do Ministério Público recorrido, a sentença não desdobrou sobre ele o efeito do caso julgado. E note-se que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça convocado pelo Ministério Público para sustentar a sua tese não nos merece qualquer reserva, mas a verdade é que o mesmo não tem aqui qualquer relevância: é que ali trata de uma servidão predial e considera que o efeito do caso julgado se estende sobre os proprietários, fossem ou não aquelas pessoas concretas que ao tempo titulavam o direito de propriedade sobre os prédios. Isso tem que ver com o efeito do caso julgado, sim, mas desde logo por causa da natureza do direito de servidão predial e da eficácia erga omnes que caracteriza os direitos reais. Melhor esclarecendo: porque a servidão predial é um encargo imposto sobre um prédio em proveito exclusivo de outro[3] e os direitos reais têm eficácia erga omnes,[4] é irrelevante quem em cada momento seja o titular do direito de propriedade sobre o prédio serviente, já que o encargo incide sobre o prédio; e nessa medida sempre o caso julgado sobre a constituição de uma servidão predial vinculará quem quer que seja o proprietário do prédio serviente.[5] Aqui as coisas são diferentes: as pensões foram estabelecidas entre os beneficiários e a empregadora da vítima[6] e nessa altura nada fazia supor que o Fundo de Acidentes de Trabalho viesse sequer a ser responsável, em substituição daquela, pelo seu pagamento. Daí que e por outro lado se afigure como apodíctico dizer que à data em que foi prolatada a sentença que definiu as pensões em benefício do recorrido e sua mãe e a cargo da empregadora da vítima, pai e cônjuge deles, o Fundo de Acidentes de Trabalho não tinha sequer legitimidade para recorrer da sentença. isto porque o responsável directo era a empregadora e não estava ainda definido que ele a haveria de substituir por, posteriormente, se ter apurado que não tinha capacidade para assumir o pagamento das pensões.

Em conclusão diremos, pois, que o caso julgado formado sobre a sentença em questão não atingiu o Fundo de Acidentes de Trabalho, razão pela qual poderia requerer, como requereu, que o Tribunal a quo estabelecesse o montante da pensão sobre que lhe competiria assumir o pagamento.[7]

Mas ainda que assim não fosse, o que admitimos por necessidade de raciocínio, a verdade é que existia uma outra causa que impunha este entendimento, a qual imbrica na questão a apreciar em seguida e que melhor veremos já de seguida.

3.2. Essa questão é a de saber se o valor global das duas pensões é igual ao da retribuição, tout court, como sentenciado ou, pelo contrário, rateado nos termos previstos no art.º 20.º da Lei dos Acidentes de Trabalho, como pretende o recorrente Fundo de Acidentes de Trabalho.

Recordemos que a sentença que estabeleceu a pensão foi proferida em 25-10-2011 e o despacho que definiu a obrigação do Fundo de Acidentes de Trabalho, em substituição daquela, enquanto obrigada principal, foi proferido no dia 04-04-2012.

Nessa altura já vigorava o Decreto-Lei n.º 185/2007, de 10 de Maio,[8] que deu nova redacção a várias disposições do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril, onde se definiram as competências do Fundo de Acidentes de Trabalho.

Esse diploma dispôs directamente acerca do conteúdo de relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, pelo que abrange as relações já constituídas que subsistam à data da sua entrada em vigor[9] e, portanto, salvaguardando o devido respeito, ao contrário do que foi decidido no despacho em dissídio cremos que também abrange a situação jurídica que ora nos ocupa.[10]

É certo que já vimos decidido de modo diferente, mas sem argumentos verdadeiramente convincentes. Na verdade, já considerou o Supremo Tribunal de Justiça que "não contendo a lei nova qualquer disposição de que resulte a sua aplicação retroactiva, nem decorrendo da análise dos termos em que o legislador se expressou o intuito de regular directamente situações jurídicas constituídas antes da sua entrada em vigor, ou seja situações emergentes de acidentes de trabalho anteriormente ocorridos, não pode o novo regime ser observado para o caso dos autos".[11]

Ora, que o Decreto-Lei n.º 185/2007, de 10 de Maio não contém disposição de aplicação retroactiva é evidente, mas também parece claro que ao aplicar-se a dado momento uma lei em vigor para saber se então estão reunidos os pressupostos da responsabilidade do Fundo de Acidentes de Trabalho no pagamento de certas pensões é algo que se não prende com a retroactividade da lei: é que os requisitos de que depende a responsabilidade do Fundo de Acidentes de Trabalho não são apenas os que determinaram a fixação da pensão a cargo do empregador,[12] mas, outrossim, esses e mais este: que posteriormente aquele se mostre incapacitado para assumir o pagamento da pensão, designadamente por ter sido declarado insolvente. Quando muito, mas sem conceder, seria um caso de retrospectividade da lei ou, como também é designada, de retroactividade imprópria, vale dizer e para isso aproveitando as palavras do Tribunal Constitucional: "Uma norma retrospectiva é uma norma que prevê consequências jurídicas para situações que se constituíram antes da sua entrada em vigor, mas que se mantêm nessa data".[13]

Por outro lado, dizer que não decorre da análise dos termos da norma que o legislador se expressou no intuito de regular directamente situações jurídicas constituídas antes da sua entrada em vigor, ou seja situações emergentes de acidentes de trabalho anteriormente ocorridos, como afirma o Supremo, é, salvo o devido respeito, inverter os dados da equação: o que se tem que se apurar não é que a lei quis regular situações passadas mas, isso sim, que delas abstraiu, como liniarmente resulta do art.º 12.º, n.º 2 do Código Civil.

Tendo isso presente, importa considerar que o art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 185/2007, de 10 de Maio, reza assim:
"l. É criado o Fundo de Acidentes de Trabalho, dotado de personalidade judiciária e de autonomia administrativa e financeira, adiante designado abreviadamente por Fundo de Acidentes de Trabalho, ao qual compete:

a) Garantir o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho sempre que, por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, não possam ser pagas pela entidade responsável;
(…)

5. Verificando-se alguma das situações referidas no n.º l do artigo 295.º, e sem prejuízo do n.º 3 do artigo 303.º, todos da Lei n.º 99/2003, de 27 de Agosto, o Fundo de Acidentes de Trabalho responde apenas pelas prestações que seriam devidas caso não tivesse havido actuação culposa.
(...)."

Destarte, uma vez que o art.º 295.º, n.º 1 do Código do Trabalho, aprovado pela Lei 99/2003, de 27 de Agosto, estabelece que "quando o acidente tiver sido provocado pelo empregador, seu representante ou entidade por aquele contratada, ou resultar de falta de observação, por aqueles, das regras sobre segurança, higiene e saúde no trabalho, a indemnização abrange a totalidade dos prejuízos, patrimoniais e não patrimoniais, sofridos pelo trabalhador e seus familiares, nos termos gerais",[14] poderemos dizer, com suficiente certeza, que o Fundo de Acidentes de Trabalho responde apenas pelas prestações que seriam devidas caso não tivesse havido actuação culposa e não, portanto, pelas pensões agravadas pela culpa do empregador.[15] Daqui podemos retirar duas conclusões: a primeira, que afinal sendo aplicável o diploma legal acima referido, a responsabilidade do Fundo de Acidentes de Trabalho estava limitada nos termos descritos; a segunda, que por isso mesmo não podia a Mm.ª Juíza deixar de o considerar quando o mesmo lhe pediu que esclarecesse a questão, não sendo caso, portanto, ao contrário do pretendido pelo Ministério Público recorrido, de formação de caso julgado sobre a questão.

Assim sendo as coisas e uma vez que a seguradora responde pelo pagamento das pensões normais, naturalmente que o Fundo de Acidentes de Trabalho não tinha que ser chamado a responder pelo pagamento do diferencial relativamente ao valor das pensões agravadas, como seria no caso de ser aplicável ao caso sub iudicio o art.º 1.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril, na sua redacção original;[16] mas não é, sendo outrossim aplicável a redacção que foi dada àquele normativo pelo Decreto-Lei n.º 185/2007, de 10 de Maio, incluindo, portanto, o n.º 5 que lhe acrescentou.

Aqui chegados, deparamo-nos com o problema do Fundo de Acidentes de Trabalho ter aceitado como sua a responsabilidade pelo diferencial entre o valor das pensões normais e o das agravadas, discordando apenas que assim seja nos termos definidos na sentença que pretende ver alterada para o limite do valor da retribuição da vítima, distribuída por cada um dos beneficiários nos termos estabelecidos no art.º 20.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro.

Ora, se o Fundo de Acidentes de Trabalho fosse responsável pelo pagamento das pensões seria efectivamente nos termos por ele referidos no recurso.[17] E dado que a primeira das proposições atrás referida transitou em julgado e não pode ser já objecto de reapreciação por esta Relação, resta decidir de acordo com a pretensão por ele formulada no recurso.
***

III - Decisão.

Termos em que se acorda julgar procedente o recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida, decidindo-se que o recorrente Fundo de Acidentes de Trabalho responde apenas pelo pagamento do diferencial entre o valor das pensões normais e o das agravadas, com o limite do valor da retribuição da vítima, distribuída por cada um dos beneficiários de acordo com os termos estabelecidos no art.º 20.º da Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro.
Sem custas (art.º 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil e 6.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais).
***

Lisboa, 02-12-2015.

António José Alves Duarte
Eduardo José Oliveira Azevedo
Maria Celina de Jesus de Nóbrega


[1]Art.º 657.º, n.º 2 do Código de Processo Civil.
[2]Art.º 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. A este propósito, Abrantes Geraldes, Recursos no Processo do Trabalho, Novo Regime, 2010, Almedina, páginas 64 e seguinte. 
[3]Art.º 154.º do Código Civil. 
[4]Art.os 1311.º e 1315.º do Código Civil.
[5]Decidiu esse acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-06-2014, no processo n.º 276/07.2TBPRG.P1.S1, publicado em http://www.dgsi.pt: "Tendo sido constituída por sentença transitada em julgado uma servidão de vistas, não podem os donos do prédio serviente (os aqui Autores), em sede de nova acção, através do exercício de um pretenso direito potestativo de expropriação de tal direito dos donos do prédio dominante (os Réus) por utilidade particular, situação que atenta o objecto deste instituto, por um lado, e, por outro, violaria a res judicata formada por aqueloutra decisão".
[6]E a seguradora, o que para o caso é irrelevante.
[7]Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-12-2013, no processo n.º 631/03.7TTGDM-A.P1.S1, publicado em http://www.dgsi.pt.
[8]Uma vez que o seu art.º 3.º definiu que produzia efeitos a partir do dia 01-05-2007.
[9]Art.º 12.º, n.º 2 do Código Civil.
[10]Acórdãos Relação de Lisboa, de 22-10-2008, no processo n.º 7123, publicado na Colectânea de Jurisprudência, ano de 2008, tomo IV, página 163 e de 31-10-2007, no processo n.º 8147/2007-4 e da Relação do Porto, de 02-11-2009, no processo n.º 66/2002.P1, estes publicados em http://www.dgsi.pt.
[11]Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-12-2008, no processo n.º 08S3084, publicado em http://www.dgsi.pt, depois reproduzidos noutros arestos.
[12]E, eventualmente, da seguradora, se para esta a empregadora transferiu parte da sua responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho.
[13]Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 486/97, de 02-07-1997, no processo nº 734/96, publicado em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordãos/19970486.html. Note-se que não consideramos o caso como de retrospectividade porque a situação de facto não se consolidou à luz da lei antiga, mas, como vimos, apenas parte dela se verificou ao tempo daquela, sendo a restante já ao tempo da lei nova.
[14]Descontamos aqui o art.º 303.º do Código do Trabalho ali também referido, pois que manifestamente não tem qualquer relevo para o caso em apreço, já que refere que "verificando-se alguma das situações referidas no n.º 1 do artigo 295.°, a responsabilidade nela prevista, dependendo das circunstâncias, recai sobre o empregador ou sobre a empresa utilizadora de mão-de-obra, sendo a seguradora apenas subsidiariamente responsável  pelas prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa".
[15]Acórdão da Relação de Lisboa, de 31-10-2007, no processo n.º 8147/2007-4, publicado em http://www.dgsi.pt.
[16]Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-09-2013, no processo n.º 595/09.3TUBRG-A.P1, publicado em http://www.dgsi.pt.
[17]Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-12-2013, no processo n.º 631/03.7TTGDM-A.P1.S1, publicado em http://www.dgsi.pt

Decisão Texto Integral: