Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13313/14.5T8LSB.L1-7
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
MASSA INSOLVENTE
DÍVIDA
GARANTIA BANCÁRIA
DESPESAS
CREDORES
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: I–As dívidas da massa insolvente (artigo 51.º, do CIRE) devem ser pagas na data do seu vencimento (artigo 172.º, do CIRE). Aprova da natureza da dívida, impõe, necessariamente, a demonstração da respectiva data de vencimento e estarem causa verba posterior à declaração de insolvência.
II–Nesse sentido, para que as despesas inerentes à manutenção de garantias bancárias solicitadas pela insolvente possam ser consideradas e tratadas como dívidas da massa insolvente, importa a demonstração de que tais encargos são posteriores à declaração de insolvência e que, em seguimento da execução do plano de insolvência, as garantias foram mantidas activas porque necessárias à actividade da empresa.
III–Não tendo a Ré logrado provar nos autos que as quantias debitadas nas contas à ordem tituladas pela insolvente respeitavam, exclusivamente, a valores devidos pela manutenção de garantias bancárias, uma vez que ficou apurado que a insolvente se encontra em situação de inactividade e dado que a ré, igualmente, não demonstrou a data de vencimento das mesmas e ter procedido à interpelação da autora tendente ao pagamento dos referidos montantes, não podia ter-se servido da sua posição privilegiada de acesso à conta para obter o seu pagamento, violando o princípio da igualdade de credores.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


Partes:
Massa Insolvente de M (Autora/Recorrida)
N, Sa (Réu/Recorrente)

Pedido:[1]

Condenação da Ré a restituir à Autora a quantia de € 16 041,20, acrescida de juros de mora que, à data da propositura da acção, ascendiam à quantia de € 2 486,92, assim como os juros que vencerem desde a referida data, até integral cumprimento.

Fundamentos:

Cobrança indevida, nas contas bancárias tituladas pela Autora, de quantias com violação do princípio da satisfação paritária dos interesses dos credores.

Contestação:

Pugnando pela improcedência da acção considera a Ré não se encontrar obrigada à restituição de qualquer valor debitado, alegando, fundamentalmente, que as garantias bancárias emitidas a favor da M, SA são despesas devidas no âmbito da actividade levada a cabo pela empresa, constituindo a gestão das garantias fundamento do plano de insolvência da Autora.
Apresentou, ainda, oposição ao requerimento para a ampliação do pedido.

Sentença:

Julgou a acção parcialmente procedente, condenando a Ré a restituir à Autora a quantia global de € 29 830,70, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados desde 16 de Dezembro de 2014 (sobre o capital de € 5 900,67 + € 9 805,69) e desde 28 de Janeiro de 2015 (sobre o capital de € 11 500,00), até integral pagamento, às taxas resultantes dos créditos de natureza comercial, absolvendo aquela do mais peticionado.

Conclusões das alegações (transcrição):

1º-Vem o presente recurso interposto da douta sentença que julgou a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a Ré, N, SA, na restituição à Autora, Massa Insolvente da M, SA (doravante “M, SA”), da quantia global de 29.830,70€ (vinte e nove mil, oitocentos e trinta euros e setenta cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, até integral cumprimento.
2º-A ora Apelante, reclamou créditos sobre a sociedade insolvente, no montante total de598.410€ (quinhentos e noventa e oito mil, quatrocentos e dez euros e quarenta e um cêntimos) crédito esse respeitante a letras e garantias bancárias não honradas, não tendo reclamado, por imperativo legal, as comissões vincendas devidas pela manutenção em vigor das garantias bancárias prestadas a solicitação da Insolvente, precisamente, os peticionados 29.830,70€.
3º-Os montantes cobrados pela ora Apelante são referentes a despesas inerentes à manutenção das garantias bancárias, não estando a ora Apelante, a pretender fazer-se pagar preferencialmente a nenhum credor da insolvência.
4º-O Tribunal a quo, salvo o devido respeito, que é muito, fez uma errada interpretação da natureza do crédito/montantes em causa na presente acção e incorre em erro – a Apelante não reclamou, até porque não poderia – as responsabilidades emergentes da manutenção das garantias reclamadas (comissões e impostos).
5º-As indicadas despesas, impostos e comissões, são dívidas da massa insolvente.
6º-Mantendo-se as garantias bancárias activas e a empresa em laboração sob a gestão da Devedora, não pode a Massa Insolvente ad  ficar isenta das respectivas despesas, impostos e comissões à sua manutenção.
7º-O pagamento das dívidas da massa insolvente não obedece às mesmas regras que presidem ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, as quais devem ser pagas nas datas dos respectivos vencimentos, qualquer que seja o estado do processo.
-A douta sentença enferma de manifesto erro de julgamento, violando frontalmente os art.º 51.º e 172.º, do CIRE.

Contra alegações (transcrição das conclusões):

A.A Recorrente com o presente Recurso de Apelação, vem pugnar pelo erro de julgamento do Tribunal a quo, na classificação da natureza do crédito, a que foi condenada na douta Sentença recorrida, a restituir à ora Recorrida e bem assim a Recorrente assenta tal erro no facto de considerar que aquele crédito é divida da massa insolvente, nos termos do artigo 51.º do CIRE e deveria ter sido pago nos termos do artigo 172.º do CIRE. A Recorrente assenta o seu raciocínio nos documentos 3 a 18 que juntou com a sua contestação, contudo abstém-se de impugnar a matéria de facto, alegando apenas que o julgador errou, sem concretizar os concretos pontos da matéria de facto que se encontram mal julgados e qual deveria ser a decisão sobre os mesmos que com este Recurso pretenderia do Tribunal ad quem.
B.A Recorrente não logrou provar que os montantes debitados nas contas tituladas pela insolvente, e não pela massa, correspondiam, exclusivamente, a valores devidos em função de manutenção de garantias bancárias e ao contrário do que alega, aqueles documentos 3 a 18, não comprovam o contrário, pois que, pela análise dos mesmos, verifica-se que não se encontra identificado o motivo da cobrança dos ditos montantes! E como tal não logrou a Recorrente provar, e não resulta dos factos trazidos para os autos, se a constituição de tais valores respeita às alegadas comissões e custos, mas constituídos após a insolvência, já que os correspondentes contratos de garantia bancária, foram celebrados entre os anos de 2001 e 2006 e a Recorrida é insolvente desde Maio de 2012.
C.Assim a Recorrente também não logrou provar que a Recorrida após a declaração de insolvência continuou a laborar, pelo facto de a administração ter ficado a cargo da insolvente, pois que do Plano de Insolvência, na forma de liquidação controlada, aprovado e homologado, não se retira que a Recorrida pretendia manter actividade para a sua recuperação, mas antes sim tendo um grande numero de garantias bancárias associadas às obras onde ainda era necessário fazer algumas reparações, previu naquele Plano apenas fazer tais reparações, por forma a ver as garantias bancárias canceladas, contribuindo dessa forma para o sucesso do Plano. E nesta medida a Recorrida previu ab initio no seu Plano de Insolvência, os custos com a manutenção do mesmo e desses custos, consta a água e a luz, mas não constam quaisquer despesas com a manutenção de garantias bancárias.
D.Em cumprimento estrito do Plano, nenhuma entidade bancária, como por exemplo a Caixa Geral de Depósitos que é presidente da comissão de credores, debitou um único cêntimo das contas tituladas pela insolvente ou pela massa insolvente, por conta de qualquer custo de manutenção, respeitando assim o Plano que é imperativo, mesmo face à grande maioria das normas do CIRE. Permitir este Tribunal ad quem que vingue a tese da Recorrente seria desvirtuar e por em causa um Plano que está em execução há cerca de 03 anos, assim como os restantes credores que seriam assim tratados de forma desigual, pois que nem por dívidas da insolvência, nem por dívidas da massa insolvente se pagaram de qualquer tipo de montante, contrariando o estipulado no Plano.
E.Não obstante, certamente que este Tribunal ad quem não deixará de ter em consideração que, mesmo que vingasse a tese da Recorrente de que os montantes indevidamente debitados da conta da insolvente M, são dívidas da massa insolvente, manda o artigo 172.º do CIRE que, as dívidas da massa sejam pagas na data do seu vencimento. Ora, a Recorrente não alegou e muito menos provou, se aqueles montantes tinham uma data de vencimento e a terem qual a concreta data em que se venceram. Mas atente-se que, estipula o artigo 89.º, conjugado com o disposto no artigo 172.º, ambos do CIRE, que as dívidas da massa que não são pagas no seu vencimento, devem ser reclamadas pelo credor com a correspondente acção judicial (declarativa ou executiva), o que a Recorrente não fez.
F.De forma alguma é corolário do CIRE que o credor decida quando se pagar e pela forma que quiser, e assim não poderia a Recorrente, servindo-se de uma situação privilegiada de acesso às contas da insolvente, debitar daí valores, sempre que aquelas contas apresentavam saldos positivos! Pois que, em quase 04 anos, nunca a Recorrente interpelou a Recorrida através do seu Administrador de Insolvência para que pagasse qualquer valor, pois é a este Administrador de Insolvência que cabe decidir, de acordo com o Plano, quais os pagamentos que devem ser feitos, no que toca às dívidas da massa, atendendo sempre aos bens disponíveis e à prioridade de pagamentos.
G.Demonstrado ficou que não enferma a douta Sentença recorrida de erro de julgamento, não se verificando qualquer violação pelo Tribunal a quo, dos dispositivos do CIRE, devendo-se manter a decisão recorrida em toda a sua extensão.

II-Apreciação do recurso:

Os factos:

O tribunal a quo deu como provado o seguinte factualismo:

1.A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à execução de trabalhos de construção civil e obras públicas, execução de empreitadas ou empreendimentos por conta própria ou de outrem; elaboração de estudos e projectos de construção; compra, venda e administração de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim; promoção imobiliária;
2.A Ré é um banco privado português que se dedica à actividade bancária;
3.No âmbito da relação comercial de ambas, a Autora celebrou com a Ré dois contratos de abertura de conta, os quais deram origem a duas contas bancárias, identificadas, respectivamente, com os números de conta  e ;
4.No âmbito dos contratos de abertura de conta referidos supra, celebrou ainda a Autora com a Ré dois contratos de depósito bancário, na modalidade de depósito à ordem, em cada uma das contas acima referidas;
5.Em 3 de Maio de 2012, a Autora foi declarada insolvente com carácter pleno, no âmbito do Processo n.º , que corre termos no Tribunal Judicial de Ferreira do Alentejo;
6.Nesse âmbito, no seguimento da verificação da contabilidade da Autora pelo seu Administrador da Insolvência, constatou o mesmo que a Ré vinha cobrando diversas comissões, bem como encargos à Autora;
7.Mais concretamente, vinha a Ré debitando directamente das contas à ordem da Autora, acima identificadas, diversos valores respeitantes a comissões e imposto de selo;
8.Em 30 de Julho de 2012, a Autora remeteu uma missiva à Ré, especificamente para os seus serviços de Centro de Empresas do Oeste, solicitando a reposição das verbas debitadas, no valor total de € 5 900,67, naquelas contas bancárias, fundamentando tal pretensão na sua situação de insolvência;
9.(…) E solicitando ainda, naquela missiva, a suspensão imediata de quaisquer débitos de comissões naquelas contas, bem como a reposição de tais valores na conta bancária titulada pela massa insolvente da Autora;
10.No entanto, a Autora verificou que a Ré continuou a debitar comissões e imposto de selo das suas contas bancárias, tituladas na instituição bancária em apreço;
11.Em 19 de Setembro de 2012, a Autora remeteu novamente à Ré uma missiva, reiterando a necessidade de reposição dos valores debitados das suas contas bancárias;
12.(…) Missiva a que a Ré não logrou atender ou responder, continuando a debitar comissões das contas bancárias tituladas pela Autora naquela instituição bancária;
13.Em 21 de Dezembro de 2012, foram creditados na conta bancária da Autora, com o número , dois valores;
14.(…) Ambos referentes a garantias bancárias devolvidas pelo Município de Óbidos, por referência a uma obra executada pela Autora;
15.(…) Sendo o valor total das garantias bancárias creditadas na conta à ordem da Autora de € 9 805,69; 16. Em 21 de Dezembro de 2012, a Autora solicitou, através de uma missiva remetida à Ré, a transferência dos valores creditados pelo Município de Óbidos, na sua conta à ordem número , para a conta da massa insolvente;
17.(…) Solicitação a que a Ré desatendeu;
18.Em 19 de Fevereiro de 2013, a Autora reiterou junto da Ré ter sido solicitada, por diversas vezes, a reposição dos valores cobrados desde a data da declaração de insolvência da Autora, pedindo, mais uma vez, que a Ré desse resposta às suas missivas;
19.No dia 27 de Fevereiro de 2013, a Ré respondeu à Autora, por comunicação electrónica, na pessoa do seu funcionário S, comunicando-lhe que iriam diligenciar pela regularização dos valores das comissões e garantias bancárias cobrados;
20.Até à presente data, não foi feita a restituição dos valores cobrados e retidos pela Ré, para a conta da massa insolvente da Autora;
21.Entre os dias 25 e 27 de Novembro de 2014, a Ré apropriou-se, ainda, da quantia de € 11 500,00, oriunda de uma transferência de igual montante para a conta bancária ;
22.Estando a Autora na referida situação de insolvência, a Ré reclamou os seus créditos (de € 598 410,41) no respectivo processo judicial, onde se encontra em execução o plano de insolvência na forma de liquidação controlada, para pagamento de todos os credores, documentado de fls. 105 a 136;
23.Desse plano de insolvência constam as garantias bancárias números , então por extinguir, emitidas pela Ré, que nos presentes autos se encontram documentadas de fls. 95 verso a 104;
24.O plano de insolvência da Autora, visando a liquidação num prazo previsível de cinco anos, assentou na gestão controlada das obras que estavam ainda em curso, sendo integrado pelo acompanhamento das garantias bancárias já prestadas nesse âmbito e por extinguir, com a aprovação da Ré;
25.No âmbito da execução do plano de insolvência – judicialmente homologado por sentença transitada em julgado a 28 de Julho de 2014 – os custos de manutenção da Autora encontram-se previstos a fls. 110 verso e 111 dos presentes autos;
26.A Autora encontra-se numa situação actual de inactividade, limitando-se à gestão administrativa da massa insolvente, encabeçada pelo Administrador da Insolvência.

Com relevância para a decisão da causa, o tribunal a quo considerou não provado:

I.As despesas, impostos e comissões debitadas pela Ré nas contas bancárias tituladas pela Autora respeitam, em exclusivo, a valores devidos em função da manutenção das garantias bancárias, de acordo com o preçário em vigor para este tipo de responsabilidade;
II.Ao ficar a cargo da própria devedora (Autora) a gestão controlada da empresa, no âmbito do plano de insolvência acima mencionado, o procedimento da Ré não se diferencia do procedimento seguido noutra situação em que ocorra a solvência do cliente.

O direito:

Questão submetida pela Apelante ao conhecimento deste tribunal: (delimitada pelo teor das conclusões do recurso e na ausência de aspectos de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil)
ü- Do direito da Ré às quantias debitadas nas contas bancárias da Autora

O tribunal a quo julgou a acção parcialmente procedente[2] através de argumentos cujas premissas deixamos aqui, resumidamente, consignadas:

ð-a declaração de insolvência determina a perda, pelo insolvente, dos poderes de disposição e de administração do respectivo património;
ð-o património pertença do insolvente existente à data da declaração de insolvência passa a integrar o acervo da massa insolvente, a que acrescem os bens e direitos adquiridos na pendência do processo de insolvência;
ð-os bens que integram a massa são apreendidos e confiados à administração do administrador da insolvência e submetidos ao regime do depósito em geral e do depósito de bens penhorados em particular;
ð-todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são credores da insolvência;
ð-a insolvência tem como escopo primordial a satisfação paritária dos interesses dos credores, segundo a ordem da correspondente graduação de créditos, visando obstar a que, após a declaração da insolvência, algum credor possa vir a obter ou a adquirir, na satisfação do seu crédito, uma posição privilegiada ou mais eficaz do que os restantes, seus pares;
ð-a satisfação dos respectivos créditos pressupõe que os mesmos sejam reclamados nos autos de insolvência por forma a serem reconhecidos, segundo os mecanismos processuais regulados no CIRE;
ð-não tendo a Ré demonstrado nos autos que os valores debitados nas contas à ordem da Autora respeitassem a valores devidos em função da manutenção das garantias bancárias de acordo com o preçário em vigor para este tipo de responsabilidade, não podia ter incumprido o pedido que a Autora formulou para que fossem repostas as verbas debitadas nas contas bancárias;
ð-para além disso, não estando previsto no plano de insolvência aprovado a existência de tal tipo de encargos, não podia a Ré, ao contrário das outras entidades bancárias que nada cobraram quanto às mesmas, sobrepor-se ao acordado no referido Plano.

Insurge-se a Ré perante tal entendimento fazendo assentar a sua discordância no facto de estarem em causa dívidas da massa insolvente referentes a despesas inerentes à manutenção de garantias bancárias “vivas” para que a Insolvente possa cumprir o plano de insolvência aprovado. Nessa medida e segundo a Recorrente, atenta a natureza deste tipo de dívidas (da massa insolvente e não créditos sobre a insolvência) não podiam ter sido por si reclamadas enquanto créditos porquanto o seu pagamento tem de ser feito nas datas dos respectivos vencimentos, qualquer que seja o estado do processo de insolvência.

O insucesso da pretensão da Recorrente resulta do facto de assentar em pressupostos que não se encontram demonstrados no processo e cuja prova se lhe impunha em termos de ónus.

Na verdade, segundo a Ré, os valores por si cobrados da conta da M, reportam-se a dívidas da massa insolvente. Para tal efeito invoca documentação junta com a contestação. Todavia, impunha-se-lhe que tivesse impugnado a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo[3], dado que resultou não provado, desde logo, que as despesas, impostos e comissões debitadas nas contas tituladas pela Autora respeitassem, exclusivamente, a valores devidos em função de manutenção de garantias bancárias (cfr. matéria não provada na sentença).

Por outro lado, tendo presente a motivação apresentada pelo tribunal recorrido à matéria de facto e face ao teor dos documentos referenciados pela Recorrente (3 a 18 juntos com a contestação[4]), não é possível a este tribunal alterar a matéria de facto fixada pela 1ª instância no âmbito dos poderes oficiosos que lhe são cometidos ao abrigo do disposto no artigo 662.º, do CPC.

Conforme se mostra salientado pela Recorrida, nestes casos, o apuramento do fundamento do crédito (saber se decorre ou não da insolvência) afere-se, em primeira linha, perante a data do mesmo, ou seja, se se reporta ou não a data anterior à data da declaração de insolvência.

No caso, as alegadas despesas de manutenção cobradas pela Ré têm por subjacente contratos de garantias bancárias celebrados entre os anos 2001 e 2006, sendo que a M, foi declarada insolvente em Maio de 2012.

Por outro lado, o argumento da Recorrente no sentido da manutenção das garantias bancárias para que a insolvente pudesse cumprir o plano de insolvência imporia, desde logo, a demonstração de que este procedimento tinha sido seguido no âmbito da execução do referido plano.

E se é certo que se encontra provado que o plano de insolvência, visando a liquidação num prazo previsível de cinco anos, assentou na gestão controlada das obras que estavam ainda em curso, sendo integrado pelo acompanhamento das garantias bancárias já prestadas nesse âmbito e por extinguir, com a aprovação da Ré, mostra-se igualmente apurado que a Insolvente se encontra em situação de inactividade, sendo que a Ré não logrou demonstrar a actividade daquela.

Refere a Ré que os montantes retirados da conta consubstanciam despesas correntes a serem classificados (artigo 51.º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa - CIRE) como dívidas da massa insolvente e pagos de acordo e nos termos do disposto no artigo 172.º, do CIRE.

Conforme estipula o citado artigo 172.º, n.º3, do CIRE, as dívidas da massa insolvente devem ser pagas na data do seu vencimento[5]. Para tal efeito, impor-se-ia, para além da demonstração de que se tratavam de verbas posteriores à declaração de insolvência, a prova da respectiva data de vencimento, aspectos que a Ré igualmente não logrou provar.

Consequentemente, não podem deixar de improceder as conclusões da Apelante.

III-Decisão:

Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a Apelação, mantendo a sentença recorrida.

              
Lisboa, 15 de Março de 2016


Relator: Graça Amaral
Adjuntos: Orlando Nascimento
Alziro Cardoso


[1]Em requerimento posterior, a Autora ampliou o pedido para o montante global de € 30 165,54.
[2]Decorrente da correcção quanto à soma das quantias em causa por o capital apenas perfazer o valor de € 27 206,36 (€ 5 900,67 + € 9 805,69 + € 11 500,00), não obstante os juros se encontrarem devidamente calculados.
[3]Incumprindo os requisitos de admissibilidade ínsitos no artigo 640.º, do CPC: indicação dos concretos pontos da matéria de facto que mereciam decisão diversa e qual deveria ter sido a decisão sobre os mesmos.
[4]Dos quais não é possível identificar o motivo da cobrança dos montantes.
[5]Faz ainda salientar a Recorrida com acuidade (socorrendo-se do acórdão da Relação do Porto de 18-06-2009, Processo n.º 269/07.0TYVNG-O.P1), as dívidas da massa insolvente não pagas na data do respectivo vencimento deverão ser obtidas em acção judicial própria - artigo 89.º, do CIRE. A Ré, todavia, não só não conseguiu demonstrar a concreta origem e condições de pagamento dos montantes debitados, como não procedeu a qualquer interpelação/reclamação tendente ao pagamento de tais montantes, tendo-se servido de uma posição privilegiada de acesso à conta para o efeito.