Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5007/2004-8
Relator: BRUTO DA COSTA
Descritores: RENDA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/03/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Sumário: 1. No domínio da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro e do Decreto-Lei nº 13/86, de 23 de Janeiro, o inquilino podia-se opor à correcção extraordinária de rendas, tendo a faculdade de suscitar a intervenção de uma comissão de peritos avaliadores no caso de discordar da sua fixação.
2. Para que a proibição de correcções extraordinárias de rendas relativas a imóveis sem licença de habitação/utilização, devendo tê-la, prevista pela norma do artº 45º da Lei nº 46/85 possa ser validamente aplicada, é necessário que se prove que a casa não dispunha de licença de habitação/utilização e que se demonstre também que a devia ter.
3. Sem outra prova constante nos autos é manifestamente inviável concluir que uma casa arrendada em 1948 tivesse obrigatoriamente de ter uma tal licença, uma vez que a predita licença foi introduzida entre nós pelo Regulamento Geral das Edificações Urbanas, promulgado em Agosto de 1951.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório.

Na comarca de Lisboa
(A)
Intentou acção com processo sumário contra
(M)
Alegando que é dono do prédio descrito no artº 1º da petição, cujo rés-do-chão foi dado de arrendamento ao Réu; este deixou de pagar rendas e fez obras de construção de um barracão num logradouro comum do prédio.
Conclui pedindo que seja o Réu condenado a ver resolvido o contrato e bem assim a demolir o aludido barracão.
Citado, o Réu contestou alegando que a construção do barracão foi autorizada pelo senhorio e que tem depositado as rendas, em virtude de um diferendo sobre o respectivo montante.
Saneado, instruído e julgado o processo, veio a ser proferida douta sentença julgando procedente a acção.
Ficou provado que:
1 - O A. é dono e possuidor de um prédio sito na Rua ..., no Catujal, a que corresponde o artigo matricial n.° 103 da freguesia de Unhos (a)).
2 - O anterior proprietário arrendou em data anterior a 1964 o rés-do-chão do prédio referido em a), cedendo-lhe o gozo temporário desse espaço mediante a contrapartida mensal de 160$00 (b)).
3 - Além da cedência, a título exclusivo, do espaço correspondente ao rés-dochão acima referido, o inquilino tinha a serventia do logradouro comum do prédio (c)).
4 - Em 1988, a renda mensal era de 379$00 (d)).
5 - Em Fevereiro e Abril de 1988, o A. notificou o inquilino de que a nova renda mensal passaria para 421$00, por aplicação do coeficiente previsto na Lei n.° 46/85, de 20.09, e na Portaria n.° 847/87, de 31.10, comunicando-lhe ainda que a renda se deveria considerar actualizada naqueles termos a partir da que se vencesse no mês de Junho subsequente (e)).
6 - O Réu construiu um barracão no logradouro comum do prédio (f)).
7 - Desde Junho de 1988 que não são pagas ao A. as rendas respeitantes ao locado (I.°).
8 - O barracão referido em f) não afectou a estrutura externa do edifício (6.°).
9 - O barracão de madeira, referido em f7, pode ser retirado a todo o tempo sem dano da estrutura primitiva do prédio (7.°).
10 - Face ao diferendo quanto ao aumento da renda proposto, o Réu procedeu ao depósito da renda desde Janeiro de 1988, situação que se mantém até hoje (8.° e 9º).

Da douta sentença vem interposto pelo Réu o presente recurso de apelação.
Nas suas alegações o apelante formula as seguintes conclusões:
1)
No caso objecto do presente processo e em matéria de facto, ficou provado, relativamente às rendas, que as mesmas deixaram de ser pagas ao senhorio desde junho de 1988, passando o inquilino a depositá-las, face ao diferendo quanto ao aumento da renda proposto, situação que se mantém até hoje.
2)
O tribunal "a quo" refere que a convicção probatória que conduziu a responder aos quesitos se baseou designadamente no facto de as partes terem considerado assente, em audiência de julgamento, que as rendas têm vindo a ser depositadas na C.G.D pelo Réu desde janeiro de 1988 ....o documento de fls. 29, consubstanciando recusa por parte do Réu do aumento da renda proposto em comunicação do A... revela a existência do diferendo entre senhorio e inquilino.
3)
Não pode o Tribunal "a quo" decidir em sentido contrário ao que havia reconhecido como matéria assente em audiência de julgamento, por entender, a final, que o Réu não alegou factualidade que demonstrasse que o senhorio estivesse em mora de modo a obstar à resolução do contrato com o depósito das rendas.
4)
Na data em que os factos ocorreram realmente regulavam a matéria das actualizações de rendas a Lei n° 46/85 de 20 de Setembro e o DL n° 13/86 de 23 de Janeiro.
5)
Mas ao caso concreto não deve ser aplicado o princípio geral do art. 6° da Lei n° 46 /85, esquecendo a excepção consagrada no seu artigo 45°.
6)
Em 1988, os inquilinos tinham legitimidade para não aceitarem a actualização das rendas relativas a casas que não possuíssem, como a dos autos, licença de construção ou utilização.
7)
A Lei, concretamente o artigo 45° da Lei 46/85 de 20 de Setembro, permitia, em 1988, que o Recorrente se opusesse, como opôs e validamente, ao aumento de renda proposta pelo senhorio, que manteve a intenção de aumento.
8)
Face ao diferendo quanto ao aumento da renda proposta, o Recorrente passou a depositar a renda ao abrigo do disposto na alínea a) do n°1 do art. 841° do C.C., obstando assim a alegada intenção de resolução do contrato por falta de pagamento da renda.
9) Só com a entrada em vigor do DL n°321-B/90 de 15 de Outubro (RAU), seria revogada a Lei n°46/85 de 20 de Setembro e com ela o seu artigo 45°, permitindo ao senhorio reclamar o aumento de renda por aplicação do coeficiente de actualização, sem restrições; mas de facto até hoje, no caso concreto isso não aconteceu
10)
O tribunal " a quo" considerou provado que o barracão construído no logradouro do locado não afectou a estrutura externa do edifício, sendo de madeira e podendo ser retirado a todo o tempo.
11)
Mas o mesmo Tribunal, considerou prejudicado o conhecimento da invocada feitura de obras como fundamento da resolução do contrato, não fundamentando devidamente a decisão de demolição, como lhe competia.

O Autor apelado não contra-alegou.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
A questão a resolver consiste em apurar se há ou não matéria de facto provada susceptível de fundamentar o incumprimento do Réu e o consequente despejo.

II - Fundamentos.

São dois os fundamentos essenciais da defesa, agora reproduzidos na douta alegação de recurso:
Por um lado, entende o Réu que a actualização de renda de 1988 (nº 5, dos factos supra) estava incorrectamente efectuada, daí o diferendo com o senhorio e os subsequentes depósitos de rendas na CGD, que assim, na sua óptica seriam liberatórios.
Por outro lado, alega ainda o Réu que a actualização nunca poderia ser feita, nos termos do artº 45º da Lei nº 46/85, de 20 de Setembro, uma vez que a casa dos autos não teria licença de habitação ou utilização.
Quanto à questão da actualização ser ou não a devida: na altura dos factos vigoravam a aludida Lei nº 46/85 e o Decreto-Lei nº 13/86, de 23 de Janeiro.
Nos arts. 11º a 13º do primeiro daqueles diplomas prevê-se a forma e medida da correcção de rendas.
No segundo diploma estipula-se que:
Artigo 9.º
(Recurso da fixação da renda)

1 - Havendo fundadas dúvidas sobre os valores dos factores, coeficientes ou áreas, referidos nos artigos 4.º, 5.º, 6.º e 8.º, que serviram de base à determinação da renda inicial, em regime de renda condicionada, ou do ajustamento de renda resultante da realização de obras de beneficiação, ou verificando-se que o fogo a arrendar tem características especiais, designadamente dimensionais, de equipamento ou de tratamento arquitectónico, que implicam o manifesto desajustamento dos valores unitários publicados nos termos do artigo 8.º para vigorar no ano da celebração do contrato, podem o arrendatário ou o senhorio requerer, dentro dos 90 dias que se seguirem à celebração do contrato ou à conclusão das obras, a intervenção da comissão de avaliação referida no artigo 10.º, com vista a uma eventual correcção.
2 - Nas mesmas circunstâncias e relativamente aos valores dos factores ou coeficientes anuais aplicados na determinação, respectivamente, da correcção e da actualização da renda, pode o arrendatário também requerer, nos 30 dias seguintes à data da recepção da comunicação referida no artigo 3.º, a intervenção da comissão de avaliação, com vista a uma eventual correcção.

Ou seja, caso o arrendatário discordasse da fixação da renda, nos termos do artº 9º, nº2, do diploma, devia provocar a intervenção da comissão de peritos, não bastando manifestar a discordância e oposição à nova renda, com subsequente depósito.
Relativamente ao facto de a casa ter ou não ter licença de habitação ou de utilização, dispõe a Lei nº 46/85, de 20 de Setembro:
Artigo 45.º
(Obrigatoriedade de licença para actualização e correcção)

As actualizações anuais e a correcção extraordinária da renda, previstas, respectivamente, nos artigos 6.º e 11.º, não têm lugar se não tiver sido emitida licença de construção ou de utilização, quando uma delas seja exigível.

Assim, para que esta norma tivesse aplicação era necessário que se provasse:
1. Que a casa não tinha licença de habitação ou utilização;
2. Que essa licença era exigível.
Ora as licenças de habitação e utilização foram introduzidas pelo Regulamento Geral das Edificações Urbanas, aprovado no Decreto-Lei n.º 38.382, de 7 de Agosto de 1951, o regime só se aplica às casa novas (vide respectivo artº 8º) e é o próprio Réu que no artº 4º da sua douta contestação alega que o arrendamento data seguramente de Novembro/Dezembro de 1948.
Assim, o quadro factual apurado aponta no sentido de relativamente à casa dos autos não ser exigível a aludida licença.
Mas admitimos que o pudesse ser, o que, naturalmente havia que ser provado: havia que provar que a casa dos autos necessitava de licença de habitação/utilização e de provar ainda que a casa dos autos não tinha essa licença, para que se pudesse alcançar o efeito jurídico pretendido pelo Réu.
Essa prova incumbia inequivocamente ao Réu e não foi feita.
Assim, cremos ser de concluir com segurança que os depósitos efectuados pelo Réu não assumiram natureza liberatória, pelo que há efectivamente lugar ao despejo por falta de pagamento de rendas.
Quanto à questão da demolição do barracão construído no logradouro, não vemos, salvo o devido respeito, como se pode fugir do raciocínio exposto na douta sentença: tal construção foi efectuada pelo Réu sem que se provasse que o Autor a tivesse autorizado; encontrando-se reservadas ao proprietário as faculdades de disposição material/transformação do objecto do direito de propriedade – artº 1305º do Código Civil – não dispunha o arrendatário de poderes para edificar a construção no logradouro sem a permissão do senhorio.
Logo, deve demoli-la.
Nos termos expostos, não procede pois a apelação.
III - Decisão.

De harmonia com o exposto, nos termos das citadas disposições, acordam os Juízes desta Relação em declarar improcedente a apelação, confirmando-se na totalidade a douta sentença do Tribunal a quo.
Custas pelo apelante, sem prejuízo do apoio judiciário atribuído.
Lisboa e Tribunal da Relação, 03/02/05

Os Juízes Desembargadores,

Francisco Bruto da Costa
Catarina Arelo Manso
António Valente