Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7262/13.1TBOER.L1-6
Relator: NUNO SAMPAIO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
TRANSMISSÃO DOS BENS PENHORADOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/28/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -Numa acção executiva o despacho liminar de citação não implica uma aceitação definitiva da validade e suficiência do título executivo, que pode ser reavaliado ao longo do processo.
-A preclusão do seu conhecimento não ocorre perante a ausência da dedução de embargos de executado.
-A leitura conjugada da al. a) do n.º 2 do art.º 726º com o art.º 734º, ambos do Código de Processo Civil, permite constatar que o limite traçado pelo legislador para o conhecimento da falta de título executivo é o primeiro acto de transmissão dos bens penhorados, e não o início da fase de venda, porque só então se coloca a questão da protecção do adquirente de boa-fé.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.

I-Relatório:

Exequente/recorrente:

Mário…, residente no Bairro …, Lote 23, M…

Executada/recorrida:

Sociedade H, Lda., com sede em V…

Título executivo:

Uma letra no montante de 40.000.00€, emitida em 24/10/2102 e com data de vencimento em 31/03/2013, aceite pela sociedade S..., Lda.. da qual consta o nome do sacador Tiago..., mas não a sua assinatura.

Sentença recorrida:

Considerou manifesta a falta de título executivo que suportasse a execução e “ao abrigo do disposto no artigo 734.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, com base em falta do título executivo, rejeito a presente execução e,em consequência,declaro-a extinta”.

Conclusões da apelação:

A)Na presente execução foi proferido despacho liminar em que foi apreciada, ao não se fazer qualquer referência à suficiência do título executivo, que se não verificava nenhuma das circunstâncias que impõem o indeferimento liminar;

B)Ao proferir o despacho liminar pela forma como o fez, mandando citar os executados, o Juiz a quo tomou posição sobre a validade do título executivo, considerando-o suficiente;

C)Os executados, no caso de não concordarem com este despacho, tinham à sua disposição um meio processual próprio para impugnar a validade do título executivo – os embargos de executado;

D)Não foram deduzidos embargos pelos executados bem como estes nada opuseram às penhoras efectuadas, conformando-se com a prossecução da execução com base neste título executivo;

E)O art.º 734º do C.P.C. destina-se a permitir que, nos processos executivos em que não há citação prévia dos executados, venham a ser apreciadas as questões que deveriam ter sido apreciadas no despacho liminar;

F)Tendo havido despacho liminar não se justifica recurso ao art.º 734º do C.P.C. porque o Tribunal já teve oportunidade de apreciar as questões referidas no nº 2 art.º 726º e, em especial, a validade e suficiência do título;

G)Tendo o Juiz a quo, ao proferir despacho liminar, aceite que o título executivo é válido e suficiente e não tendo os executados usados o meio processual próprio para impugnar essa validade - através da dedução de embargos de executado – não pode esta questão ao abrigo do art.º 734º quando a execução já se encontra na fase de venda.

Conclusões das contra-alegações:

A)A Douta Sentença recorrida não merece qualquer reparo, é a única consonante com a correta aplicação do Direito e da Justiça, devendo manter-se nos precisos termos em que foi proferida.

B)A Douta Sentença dá como provado, que a “LETRA” não contêm qualquer assinatura do Sacador, que se mostra identificado por Tiago..., sendo esta a causa manifesta da falta do título executivo que suporta os autos de execução.

C)A falta/insuficiência do título NÃO foi concretamente apreciada em sede de despacho liminar, que se limitou a mandar citar os executados, pelo que, inexistindo caso julgado formal.

D)Nos termos do artigo 10.º n.º 5 do C.P.C., toda a execução tem por base um titulo, que é condição necessária e suficiente da acção executiva, e pelo qual se determinam os fins e os limites da acção executiva.

E)Passado o momento do despacho liminar, é ainda possível ao JUIZ vir a conhecer, até ao primeiro ato de transmissão de bens penhorados (venda, Adjudicação, entrega de dinheiro) ou, por extensão de consignação dos respectivos rendimentos, de qualquer das questões que, nos termos do Artigo 726.º números 2 a 5, podiam ter conduzido ao convite ao aperfeiçoamento ou ao indeferimento liminar do requerimento executivo.

F)Só com este ato de transmissão PRECLUDE pois, a possibilidade de apreciação, no âmbito do processo executivo, dos pressupostos processuais gerais e das questões de mérito respeitantes a existência da obrigação exequenda.

G)A Segurança da tramitação Executiva, o preceituado no Art.º 734 do CPC, estatuí que até ao primeiro acto de transmissão dos bens penhorados, o JUIZ poderá conhecer oficiosamente das questões que poderiam ter determinado o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo.

H)Esta norma É COMO UMA “VÁLVULA DE SEGURANÇA” em situações limite que não foram analisadas e decididas, concretizando o dever de gestão processual à luz do n.º 2 do art.º 6 do C.P.C.

I)O Juiz, e findos os articulados e sem prejuízo do prazo concedido no n.º 3 do artigo 570.º, se não tiver sido junto o documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida e da multa por parte do réu, ou não tiver sido efectuada a comprovação desse pagamento, o juiz profere despacho nos termos da alínea c) do n.º 2 do artigo 590.º, convidando os Réus., a proceder, no prazo de 10 dias, ao pagamento da taxa de justiça e da multa em falta, acrescida de multa de valor igual ao da taxa de justiça inicial, com limite mínimo de 5 UC e máximo de 15 UC, na esteira do n.º 5 do Art.º 570 CP:

J)A não notificação aos restantes Réus/Executados para os efeitos do n.º 5 e 6 do Art.º 570.º e alínea c) do n.º 2 do Art.º 590.º do CPC., não constituí caso julgado formal e em consequência, O Juiz Pode/Deve conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo, nos termos do n.º 1 do Art.º 734.º do CPC.

K)A Omissão da notificação aos restantes Réus/Executados como partes, para os efeitos do n.º 5 e 6 do Art.º 570.º e alínea c) do n.º 2 do Art.º 590.º do CPC., não constituí caso julgado formal e em consequência, O Juiz Pode/Deve conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo, nos termos do n.º 1 do Art.º 734.º do CPC.

L)Um dos corolários da autonomia estrutural da acção de embargos de executado relativamente à acção executiva, é a possibilidade de não serem as mesmas partes num e noutro processo e basta que para tal, haja vários executados litisconsortes e que nem todos se oponham à execução.

M)Não tendo sido proferida Sentença de Graduação de Créditos, não existe caso julgado formal e em consequência, O Juiz Pode/Deve conhecer oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo, nos termos do n.º 1 do Art.º 734.º do CPC.

N)Só produzirá caso julgado formal na acção de verificação de créditos e graduação quando o executado nela tenha intervenção efectiva, o que manifestamente não ocorreu, sendo que, o caso julgado produz-se pois, apenas quanto ao reconhecimento do direito real de garantia

O)No processo executivo, não há lugar a caso julgado, pelo que nada impede a invocação duma excepção não deduzida, que não respeite à configuração da relação da relação processual executiva.

P)O Direito não se configura com as legítimas expectativas do apelante e nem pode conceder.

Q)Nos termos do Art.º 734 n.º 1 do CPC., O JUIZ Pode/Deve Oficiosamente, até ao primeiro ato de transmissão dos bens penhorados, das questões que poderiam ter determinado, se apreciadas nos termos do artigo 726.º, o indeferimento liminar ou o aperfeiçoamento do requerimento executivo.

Questões a decidir na apelação:

Importa unicamente decidir se o tribunal recorrido podia julgar extinta a execução recorrendo ao art.º 734º do Código de Processo Civil.

Colhidos os vistos legais cumpre decidir.

II-Apreciação do recurso

Factos provados:

1)Na acção executiva para pagamento de quantia certa de que os presentes autos constituem um apenso, o exequente apresenta como título executivo um documento correspondente a uma «letra», que se encontra junto aos autos a fls. 11 e cujo teor se considera aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

2)A «letra» não contém qualquer assinatura do sacador, que se mostra identificado como Tiago...;

3)Na parte destinada à exposição dos factos no requerimento executivo apresentado nos autos de execução principais, alegou a Exequente:

«1º-O Exequente é dono e legitimo possuidor de uma Letra no valor de € 40.000,00, com data de emissão de 24.10.2012 e data de vencimento de 31.03.2013, cujo aceitante é a sociedade S..., Lda.;

2º-No verso da mesma Letra, logo após a declaração “Por aval à aceitante”, os executados Paula… e Joaquim… assinaram;

3º-Nos termos do art.º 32º da LULL, os avalistas são responsáveis da mesma maneira que a pessoa por eles afiançadas;

4º-Feita a apresentação do título a pagamento, o mesmo não foi efectuado;

5º-Face ao título, o Exequente tem direito de exigir dos executados o valor da Letra, os juros de mora já vencidos e os juros vincendos até integral pagamento do valor em divida;

6º-Os executados são, assim, devedores da quantia de € 40.000,00 de capital, valor o qual acresce juros de mora vencidos, calculados sobre o capital desde a respectiva data de vencimento (31.03.2013) à taxa anual de 4%, os quais perfazem em 30.11.2013 a quantia de € 1.069,59 perfazendo estas duas parcelas o valor de € 41.069,59 acrescendo, ainda, os juros de mora vincendos calculados sobre o mencionado capital à taxa anual;

7º-A divida é certa, líquida e exigível; (…)».

Enquadramento jurídico:

A questão colocada pelo recorrente encontra-se bem resumida na última conclusão das alegações: “tendo o juiz a quo, ao proferir despacho liminar, aceite que “o título executivo é válido e suficiente e não tendo os executados usado o meio processual próprio para impugnar essa validade - através da dedução de embargos de executado - não pode esta questão [ser discutida] ao abrigo do art.º 734º quando a execução já se encontra na fase de venda”.

Vejamos se tem ou não razão.

Nos termos do n.º 5 do art.º 10º do Código de Processo Civil (idêntico ao n.º 1 do art.º 45º da versão anterior à última reforma) “toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva”.

O título executivo é, assim, a base da acção executiva, a sua causa justificativa formal, sem a qual a propositura e a subsistência duma execução carecem totalmente de sentido.

Do nosso ponto de vista é quanto basta para refutar o entendimento de que o despacho liminar possa ser visto como uma aceitação definitiva da validade e suficiência dum título executivo, bem pelo contrário, a lógica subjacente à sua importância aponta no sentido que possa ser reavaliado ao longo do processo executivo.

Cremos que foi dentro desta perspectiva, do carácter essencial do título executivo, que foi introduzido no Código de Processo Civil anterior o art.º 820º, ao qual sucedeu o art.º 734º com a última reforma processual.

A leitura deste preceito legal, conjugado com a al. a) do n.º 2 do art.º 726º do mesmo código, permite constatar que o limite traçado pelo legislador para o conhecimento da falta de título executivo é o primeiro acto de transmissão dos bens penhorados, e não o início da fase de venda, porque só então se coloca a questão da protecção do adquirente de boa-fé.

Compreende-se que assim seja, desde que no despacho liminar não se aprecie em concreto a falta ou insuficiência do título executivo, tanto assim que a questão fica em aberto para a eventual dedução de embargos de executado, o que é manifestamente incompatível com a formação de caso julgado.

E a preclusão não ocorre perante a ausência da dedução de embargos, sob pena de se esvaziar de conteúdo o art.º 734º quando a tramitação exija a prolação de despacho liminar, sendo certo que o legislador teria sido claro nesse sentido se fosse efectivamente essa a sua intenção.

Só assim não será se o tribunal se pronunciar em concreto sobre uma determinada questão das contempladas pelo art.º 726º, de acordo com a lógica que preside ao nosso ordenamento jurídico, reflectida nos n.ºs 1 e 3 do art.º 595º do Código de Processo Civil a propósito do despacho saneador.

Se não se pronunciar, independentemente da dedução ou não de embargos de executado, a pedido ou por iniciativa oficiosa o tribunal pode – e deve – conhecer da falta ou insuficiência do título executivo, em conformidade com o art.º 734º.

Vem sendo este o entendimento perfilhado pelo Tribunal da Relação de Lisboa em diversos acórdãos, disponíveis em www.dgsi.pt: de 12-03-2015, processo n.º 28802/09.5T2SNT.L1-2; de 30-11-2010, processo n.º 5170/07.4TMSNT-A.L1-7, no qual se pode ler que a falta de título é “determinativa, conforme o momento processual em que seja verificada, de indeferimento liminar imediato ou mediato do requerimento executivo, nos termos do artigo 812º, nº 2, alínea a), nº 4 e 5, do CPC, na redacção anterior às alterações introduzidas pelo Dec.-Lei nº 226/2008, de 20-11, ou da subsequente absolvição do executado da instância executiva, seja nos termos do artigo 820.º do CPC, seja em sede de oposição à execução, a coberto do artigo 814.º, alínea a), do mesmo Código”; e de 18-09-2008, processo n.º 5641/2008-6, no qual muito expressivamente se consignou que “Da articulação do art.º 812-2-c com o art. 820 resulta que o juiz deve indeferir liminarmente o requerimento de execução com algum dos fundamentos; mas resulta também que, não o tendo feito, deverá rejeitar ulteriormente a execução, extinguindo-a, quando se aperceba da situação, ainda que em oposição à execução movida com outro fundamento. Ponto é que o processo lhe vá concluso, por a lei impor o despacho liminar (art. 812-1), o funcionário judicial suscitar a sua intervenção (art. 812-A-3) ou o processo lhe ser levado por outro motivo até ao primeiro acto de transmissão de bens (art. 820-1)”.

O entendimento do Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a ser o mesmo, conforme se pode comprovar nos seguintes sumários publicados em http://www.stj.pt/jurisprudencia/ sumarios:

-Em acórdão de 30-11-2006 (revista n.º 3813/06 da 7.ª Secção) consignou-se que “A norma inserta no art.º 820.º, n.º 1, do CPC permite que o tribunal possa conhecer oficiosamente no despacho saneador da questão da inexistência de título executivo suscitada por um dos executados nos embargos que não foram recebidos, porque extemporâneos”;

-Num acórdão de 09-03-2004 (revista n.º 4109/03 da 7.ª Secção), a propósito da falta de apresentação de um cheque a pagamento no prazo de oito dias, deixando assim de constituir título executivo, entendeu-se que a situação “permite o conhecimento oficioso do tribunal, quer através de indeferimento liminar ou, passada a oportunidade deste, nos termos do art.º 820 do CPC”;

-Em acórdão de 21-11-2011 (agravo n.º 2510/00 da 1.ª Secção), consta que “actualmente, nos termos do art.º 820 do CPC, ainda que não tenham sido deduzidos embargos, pode o juiz, até ao despacho que ordene a realização da venda ou das outras diligências destinadas ao pagamento, conhecer das questões a que alude o n.º 1 do art.º 811-A do mesmo diploma, que não haja apreciado liminarmente, entre as quais a manifesta falta ou insuficiência do título”.

Em nenhum dos acórdãos ou sumários citados deparamos com um tratamento distinto consoante tenha havido, ou não, lugar a despacho liminar do juiz do processo.

Conclui-se, em face do exposto, que não assiste razão ao recorrente. E se, conforme refere no corpo das alegações, vê as suas expectativas defraudadas perante o desenvolvimento dos actos processuais já praticados, não se pode olvidar que foi ele próprio o primeiro a criá-las ao dar à execução uma letra desprovida da assinatura do sacador.

III – Decisão

Nestes termos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.      
Custas pelo recorrente.


Lisboa, 28 de Abril de 2016

                                                                      
Nuno Sampaio (relator)                
Maria Teresa Pardal              
Carlos Marinho

Decisão Texto Integral: