Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | EMÍDIO SANTOS | ||
Descritores: | CONTRA-ORDENAÇÃO DESPACHO NULIDADE DE DESPACHO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 04/22/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | ANULADA | ||
Sumário: | 1. O recurso de impugnação da decisão da autoridade administrativa, quando é decidido através de simples despacho, embora não comporte a produção de prova, impõe ao juiz o dever de indagar se as provas indicadas na decisão da autoridade administrativa demonstram os factos imputados ao arguido. 2. Em caso de manutenção da condenação, o juiz deve fundamentar a decisão, enumerando os factos que lhe servem de fundamento e as provas que os demonstram. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
C…, SA, interpôs recurso do despacho proferido pelo Meritíssimo juiz do 4º juízo do tribunal do Comércio de Lisboa, que julgou improcedente a impugnação judicial da decisão da Autoridade da Concorrência proferida em 28 de Junho de 2007, que condenou a recorrente no pagamento da coima única de € 17 000,00, pela prática de 3 contra-ordenações previstas e punidas pelos artigos 3º e 5º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 370/93, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 140/98, de 16 de Maio. No final pediu a revogação da decisão. Fundamentou a sua pretensão, em síntese, nas seguintes razões: * O Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência do recurso. Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. * As principais questões suscitadas pelo recorrente são, em síntese, as seguintes: 1. Nulidade da sentença; 2. Erro na interpretação do disposto no artigo 3º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 379/93, de 29 de Outubro; 3. Violação da liberdade de iniciativa económica privada prevista pelo artigo 61º, n.º 1, da CRP; 4. Erro na imputação de culpa à recorrente; 5. Erro na fixação da medida da coima única; 6. Violação do princípio constitucional da presunção de inocência. * O primeiro fundamento do recurso é constituído pela alegação de que a sentença é nula porque não faz a “menor menção aos factos provados e não provados”. Juridicamente, a recorrente estribou a sua pretensão no disposto no artigo 205º, n.º 1, da CRP, nos artigos 64º, n.ºs 3 e 4, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro[1], e nos artigos 379º, n.º 1, alínea a), e 374º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal (CPP), aplicáveis ao processo de contra-ordenação por força do disposto no artigo 41º do RGCO. Na resposta, o Ministério Público opôs-se à nulidade da decisão. Para tanto alegou que, como não tinha sido requerida a realização de audiência de julgamento, os factos relevantes sobre os quais se podia debruçar a sentença eram os que foram dados como provados pela decisão da autoridade administrativa, factos que não foram postos em causa pela arguida. Assiste razão à recorrente ao afirmar que a decisão não contem a menção aos factos provados e não provados. Como se procurará demonstrar esta omissão faz com que a decisão seja nula. Por ser útil para a compreensão do litígio façamos um breve percurso pelos antecedentes da decisão recorrida. A Autoridade da Concorrência condenou a arguida como autora de 3 contra-ordenações previstas e punidas pelos artigos 3º, n.º 1, e 5º, n.º 2, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 370/93, de 29 de Outubro, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 140/98, de 16 de Maio, na coima única de € 17 000,00. Para tanto considerou que a sociedade C…, SA, tinha exposto para venda, em 10 de Novembro de 2004, no estabelecimento Hipermercado …, situado na Avenida …, …., Vila … , 3 produtos (um detergente máquina roupa Ariel líquido sabão natural, 40 doses, vinho tinto maduro Terras Frescas, 1 Lt, e Leite meio gordo Vales, 1 Lt) por preços inferiores ao preço de compra efectivo. Não se conformando com esta decisão da Autoridade da Concorrência, a sociedade Carrefour impugnou-a judicialmente. Conclusos os autos ao Meritíssimo juiz, o mesmo admitiu o recurso e proferiu o seguinte despacho: “Afigurando-se que a matéria a decidir dispensa a realização de audiência de julgamento, notifique a sociedade arguida e abra vista ao M. P. a fim de que, em dez dias, se oponham querendo ao uso de tal faculdade (artigo 64º, n.º 1 e n.º 2, do diploma citado)”. No prazo assinalado nem a arguida nem o Ministério Público fizeram qualquer declaração. De seguida, o Meritíssimo juiz proferiu decisão, julgando improcedente a impugnação e mantendo, na íntegra, a decisão da Autoridade da Concorrência. A exposição acabada de fazer mostra que a impugnação da decisão da autoridade administrativa foi decidida através de simples despacho (cfr. artigo 64º, n.ºs 1 e 2, do RGCO)[2]. Considerando que o juiz manteve a condenação proferida pela Autoridade da Concorrência, o n.º 4 do artigo 64º do RGCO impunha-lhe o dever de fundamentar esta decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção. Qual a extensão a dar ao dever de fundamentar a decisão no que concerne aos factos? Em primeiro lugar, este dever exigia a descrição dos factos que serviam de fundamento à manutenção da condenação. Assim o impunha o direito de defesa da arguida, que goza de tutela constitucional (artigo 32º, n.º 10º, da CRP). Em segundo lugar, este dever exigia a indicação das provas que demonstravam os factos imputados. Vejamos. Aos olhos da lei (artigo 62º, n.º 1, do RGCO), a apresentação do processo de contra-ordenação ao juiz vale como acusação. Sendo este o valor que a lei atribui à apresentação do processo de contra-ordenação ao juiz, isto significa que os factos descritos na decisão condenatória da autoridade administrativa são factos a comprovar. Esta afirmação tanto é válida para a hipótese do recurso ser decidido mediante audiência de julgamento como para a hipótese de ser decidido através de simples despacho. Quando a decisão é tomada mediante audiência, a validade desta afirmação é atestada pelo artigo 72º do RGCO, ao dispor que “compete ao Ministério Público promover a prova de todos os factos que considere relevantes para a decisão” (n.º 1) e “compete ao juiz determinar o âmbito da prova a produzir” (n.º 2). Quando a decisão da impugnação é feita através de simples despacho, embora não haja lugar à produção de prova, compete ao juiz indagar se as provas indicadas na decisão da autoridade administrativa demonstram os factos imputados ao arguido. É este trabalho de indagação que explica que, na decisão por despacho judicial, o juiz possa absolver o arguido por considerar não provados os factos (n.º 5 do artigo 64º, do RGCO). O dever do tribunal indicar as provas demonstrativas dos factos que servem de fundamento à condenação é, de resto, uma consequência do princípio da presunção de inocência do arguido, aplicável também no processo de contra-ordenação, por força do disposto no artigo 32º, n.º 10, da CRP. Na verdade, este princípio implica, além do mais, que só pode ter lugar a condenação do arguido desde que existam provas demonstrativas da sua participação nos factos. Daí que o tribunal não pudesse, no caso dos autos, subtrair-se ao dever de averiguar se as provas indicadas na decisão da Autoridade da Concorrência demonstravam os factos e ao dever de fazer constar o resultado dessa indagação na decisão que manteve a condenação. Por último, não assiste razão ao Ministério Público ao afirmar, na resposta ao recurso, que a arguida não colocou em causa os factos constantes da decisão da autoridade administrativa. Com efeito, além de ter negado que tivesse actuado com culpa, maxime na forma de dolo directo, a impugnante indicou prova testemunhal, o que constituiu um sinal claro de que não aceitou o quadro de facto traçado na decisão da autoridade administrativa. Feito este percurso conclui-se que a decisão recorrida tinha o dever de enumerar os factos que serviam de fundamento à manutenção da condenação e o de indicar as provas que demonstravam esses factos. O RGCO não prevê directamente a sanção aplicável à inobservância destes deveres. No entanto, o artigo 41º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, ao mandar aplicar ao processo de contra-ordenação, sempre que o contrário não resultar desse diploma, os preceitos reguladores do processo criminal devidamente adaptados, remete para o artigo 379º, do CPP, que sanciona, na alínea a), do n.º 1, com a nulidade a sentença que não contiver a enumeração dos factos provados e dos não provados e a indicação das provas que serviram de fundamento à condenação. A aplicação desta norma ao caso não é afastada pela circunstância de a decisão sob recurso não ser designada pelo RGCO por sentença. Com efeito, sob o ponto de vista substancial trata-se de uma verdadeira sentença pois tratou-se de acto decisório que conheceu a final do objecto do processo (artigo 97º, n.º 1, alínea a), do CPP). Sendo nula a decisão, cabe ao tribunal recorrido proferir nova decisão com observância do disposto no artigo 64º, n.º 4, do RGCO. Assim sendo, não se conhecerão das restantes questões suscitadas pela recorrente, pois a decisão das mesmas está prejudicada pela solução dada à questão da nulidade. * Decisão: Julga-se procedente o recurso e, em consequência, declara-se nula a decisão recorrida, devendo o Meritíssimo juiz proferir nova decisão que observe o disposto no artigo 64º, n.º 4, do RGCO. * Sem custas * Lisboa, 22 de Abril de 2008 Emído Santos Nuno gomes da Silva Santos Rita _______________________________________________________
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