Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1239/2008-5
Relator: EMÍDIO SANTOS
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
DESPACHO
NULIDADE DE DESPACHO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADA
Sumário: 1. O recurso de impugnação da decisão da autoridade administrativa, quando é decidido através de simples despacho, embora não comporte a produção de prova, impõe ao juiz o dever de indagar se as provas indicadas na decisão da autoridade administrativa demonstram os factos imputados ao arguido.
2. Em caso de manutenção da condenação, o juiz deve fundamentar a decisão, enumerando os factos que lhe servem de fundamento e as provas que os demonstram.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

C…, SA, interpôs recurso do despacho proferido pelo Meritíssimo juiz do 4º juízo do tribunal do Comércio de Lisboa, que julgou improcedente a impugnação judicial da decisão da Autoridade da Concorrência proferida em 28 de Junho de 2007, que condenou a recorrente no pagamento da coima única de € 17 000,00, pela prática de 3 contra-ordenações previstas e punidas pelos artigos 3º e 5º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 370/93, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 140/98, de 16 de Maio.

No final pediu a revogação da decisão.

Fundamentou a sua pretensão, em síntese, nas seguintes razões:
1. A sentença recorrida não faz a menor menção aos factos provados e não provados, pelo que enferma de vício de falta de fundamentação gerador de nulidade.
2. A sentença recorrida efectuou uma interpretação manifestamente restritiva do disposto no artigo 3º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 379/93, de 29 de Outubro, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 140/98, de 16 de Maio, donde resultou uma compressão do regime legal, assim se afastando da realidade económica e do real interesse tutelado pela norma legal.
3. A venda com prejuízo não visa, ao contrário do que sustenta a decisão recorrida, impedir a concorrência desleal entre as empresas e impedir o afastamento dos concorrentes mais débeis.
4. A prática de redução de preços com a finalidade de forçar os concorrentes a abandonarem o mercado, quando impossibilitados de acompanhar a descida, tem tutela jurídica no regime de abuso de posição dominante.
5. Não faz o menor sentido jurídico que a sentença recorrida faça uma interpretação da lei que conduza a uma dupla tutela, quando a prática de preços abaixo do custo de aquisição não preenche os pressupostos do artigo 6º da Lei da Concorrência.
6. Não sendo o vendedor uma empresa em posição dominante, e a recorrente não o é, ou não consubstanciando a determinação de um preço inferior ao custo, no caso concreto, um abuso dessa posição destinado a impedir, falsear ou restringir a concorrência no mercado relevante, falham as razões para uma reacção jurídica inspirada pela defesa da estrutura concorrencial do mercado.
7. Não há deslealdade no facto de se deduzirem ao preço de compra efectivo descontos reais e legitimamente obtidos.
8. A dimensão interpretativa da venda com prejuízo efectuada pela sentença recorrida é manifestamente restritiva, abalando irremediavelmente o direito fundamental de liberdade de iniciativa privada, na sua vertente de liberdade de gestão e actividade da empresa, consagrado no artigo 61º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
9. A interpretação do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 370/93, de 29 de Outubro, feita pela sentença, não respeitou dois dos pressupostos materiais para a restrição legítima dos direitos, liberdades e garantias ou de direitos fundamentais análogos: a salvaguarda de um outro direito ou interesse constitucionalmente protegido e sobretudo o princípio da proporcionalidade.
10. As relações comerciais entre a recorrente e as três sociedades comerciais fornecedoras em causa nos autos estavam disciplinadas por diferentes convénios negociais, onde se encontravam claramente identificados todos os descontos e percentagens em vigor entre as partes, donde era lícita e legítima a aplicação desses descontos aos preços das mercadorias efectivamente adquiridas, fazendo-os incidir sobre os preços de venda ao pública.
11. Na determinação do preço de compra efectivo e do preço de venda ao público do “Vinho tinto maduro Terras Frescas 1 Lt” é manifestamente excessivo e inadmissível que se tenham utilizado centésimas de euro para arredondar o cálculo e desse modo chegar matematicamente ao valor de € 0,66 e, assim, confabular uma contra-ordenação à custa de uma “regra” inexistente.
12. Todos os descontos considerados pelo recorrente estavam directamente relacionados com as transacções subjacentes aos fornecimentos das mercadorias tituladas pelos documentos, razão pela qual se observou, sem reparo, o disposto no n.º 2 do artigo 3º do Decreto-Lei n.º 370/93, de 29-10, com a redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 140/98, de 16 de Maio.
13. A recorrente não actuou com qualquer culpa, maxime na forma de dolo directo. 
14. Admitindo, por hipótese de raciocínio que tivessem sido praticadas as contra-ordenações em análise, sempre haveria que reduzir a coima única para o mínimo, atento o critério determinante da concreta medida da coima fixado no artigo 18º do Decreto-lei n.º 433/82, de 27 de Outubro.
15. Nos termos do disposto no artigo 5º do Decreto-lei n.º 370/93, de 29 de Outubro, cabia à recorrente fazer a prova da venda do preço de compra efectivo, isto é, a prova de que não vendia com prejuízo e, por conseguinte, que a sua conduta não integrava ilícito contra-ordenacional.
16. Tal asserção integra uma inadmissível inversão do ónus da prova, que é incompatível e inconciliável com o princípio constitucional da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2, CRP, na sua dimensão da proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido.
17. A aplicação do preceito legal em apreço comporta inconstitucionalidade material por violação do disposto no artigo 32º, n.º 2, da CRP.


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O Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência do recurso.

Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.


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As principais questões suscitadas pelo recorrente são, em síntese, as seguintes:
1. Nulidade da sentença;
2. Erro na interpretação do disposto no artigo 3º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 379/93, de 29 de Outubro;
3. Violação da liberdade de iniciativa económica privada prevista pelo artigo 61º, n.º 1, da CRP;
4. Erro na imputação de culpa à recorrente;
5. Erro na fixação da medida da coima única;
6. Violação do princípio constitucional da presunção de inocência. 

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O primeiro fundamento do recurso é constituído pela alegação de que a sentença é nula porque não faz a “menor menção aos factos provados e não provados”. Juridicamente, a recorrente estribou a sua pretensão no disposto no artigo 205º, n.º 1, da CRP, nos artigos 64º, n.ºs 3 e 4, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro[1], e nos artigos 379º, n.º 1, alínea a), e 374º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal (CPP), aplicáveis ao processo de contra-ordenação por força do disposto no artigo 41º do RGCO.

Na resposta, o Ministério Público opôs-se à nulidade da decisão.

Para tanto alegou que, como não tinha sido requerida a realização de audiência de julgamento, os factos relevantes sobre os quais se podia debruçar a sentença eram os que foram dados como provados pela decisão da autoridade administrativa, factos que não foram postos em causa pela arguida.

Assiste razão à recorrente ao afirmar que a decisão não contem a menção aos factos provados e não provados.

Como se procurará demonstrar esta omissão faz com que a decisão seja nula.

Por ser útil para a compreensão do litígio façamos um breve percurso pelos antecedentes da decisão recorrida.

A Autoridade da Concorrência condenou a arguida como autora de 3 contra-ordenações previstas e punidas pelos artigos 3º, n.º 1, e 5º, n.º 2, alínea a), ambos do Decreto-Lei n.º 370/93, de 29 de Outubro, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 140/98, de 16 de Maio, na coima única de € 17 000,00. Para tanto considerou que a sociedade C…, SA, tinha exposto para venda, em 10 de Novembro de 2004, no estabelecimento Hipermercado …, situado na Avenida …, …., Vila … , 3 produtos (um detergente máquina roupa Ariel líquido sabão natural, 40 doses, vinho tinto maduro Terras Frescas, 1 Lt, e Leite meio gordo Vales, 1 Lt) por preços inferiores ao preço de compra efectivo.

Não se conformando com esta decisão da Autoridade da Concorrência, a sociedade Carrefour impugnou-a judicialmente.

Conclusos os autos ao Meritíssimo juiz, o mesmo admitiu o recurso e proferiu o seguinte despacho: “Afigurando-se que a matéria a decidir dispensa a realização de audiência de julgamento, notifique a sociedade arguida e abra vista ao M. P. a fim de que, em dez dias, se oponham querendo ao uso de tal faculdade (artigo 64º, n.º 1 e n.º 2, do diploma citado)”.

No prazo assinalado nem a arguida nem o Ministério Público fizeram qualquer declaração.

De seguida, o Meritíssimo juiz proferiu decisão, julgando improcedente a impugnação e mantendo, na íntegra, a decisão da Autoridade da Concorrência.

A exposição acabada de fazer mostra que a impugnação da decisão da autoridade administrativa foi decidida através de simples despacho (cfr. artigo 64º, n.ºs 1 e 2, do RGCO)[2].

Considerando que o juiz manteve a condenação proferida pela Autoridade da Concorrência, o n.º 4 do artigo 64º do RGCO impunha-lhe o dever de fundamentar esta decisão, tanto no que concerne aos factos como ao direito aplicado e às circunstâncias que determinaram a medida da sanção.

Qual a extensão a dar ao dever de fundamentar a decisão no que concerne aos factos?

Em primeiro lugar, este dever exigia a descrição dos factos que serviam de fundamento à manutenção da condenação. Assim o impunha o direito de defesa da arguida, que goza de tutela constitucional (artigo 32º, n.º 10º, da CRP).

Em segundo lugar, este dever exigia a indicação das provas que demonstravam os factos imputados. Vejamos.

Aos olhos da lei (artigo 62º, n.º 1, do RGCO), a apresentação do processo de contra-ordenação ao juiz vale como acusação.

Sendo este o valor que a lei atribui à apresentação do processo de contra-ordenação ao juiz, isto significa que os factos descritos na decisão condenatória da autoridade administrativa são factos a comprovar.

Esta afirmação tanto é válida para a hipótese do recurso ser decidido mediante audiência de julgamento como para a hipótese de ser decidido através de simples despacho.

Quando a decisão é tomada mediante audiência, a validade desta afirmação é atestada pelo artigo 72º do RGCO, ao dispor que “compete ao Ministério Público promover a prova de todos os factos que considere relevantes para a decisão” (n.º 1) e “compete ao juiz determinar o âmbito da prova a produzir” (n.º 2).

Quando a decisão da impugnação é feita através de simples despacho, embora não haja lugar à produção de prova, compete ao juiz indagar se as provas indicadas na decisão da autoridade administrativa demonstram os factos imputados ao arguido. É este trabalho de indagação que explica que, na decisão por despacho judicial, o juiz possa absolver o arguido por considerar não provados os factos (n.º 5 do artigo 64º, do RGCO).

 O dever do tribunal indicar as provas demonstrativas dos factos que servem de fundamento à condenação é, de resto, uma consequência do princípio da presunção de inocência do arguido, aplicável também no processo de contra-ordenação, por força do disposto no artigo 32º, n.º 10, da CRP. Na verdade, este princípio implica, além do mais, que só pode ter lugar a condenação do arguido desde que existam provas demonstrativas da sua participação nos factos.

Daí que o tribunal não pudesse, no caso dos autos, subtrair-se ao dever de averiguar se as provas indicadas na decisão da Autoridade da Concorrência demonstravam os factos e ao dever de fazer constar o resultado dessa indagação na decisão que manteve a condenação.

 Por último, não assiste razão ao Ministério Público ao afirmar, na resposta ao recurso, que a arguida não colocou em causa os factos constantes da decisão da autoridade administrativa. Com efeito, além de ter negado que tivesse actuado com culpa, maxime na forma de dolo directo, a impugnante indicou prova testemunhal, o que constituiu um sinal claro de que não aceitou o quadro de facto traçado na decisão da autoridade administrativa.

Feito este percurso conclui-se que a decisão recorrida tinha o dever de enumerar os factos que serviam de fundamento à manutenção da condenação e o de indicar as provas que demonstravam esses factos.

O RGCO não prevê directamente a sanção aplicável à inobservância destes deveres. No entanto, o artigo 41º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, ao mandar aplicar ao processo de contra-ordenação, sempre que o contrário não resultar desse diploma, os preceitos reguladores do processo criminal devidamente adaptados, remete para o artigo 379º, do CPP, que sanciona, na alínea a), do n.º 1, com a nulidade a sentença que não contiver a enumeração dos factos provados e dos não provados e a indicação das provas que serviram de fundamento à condenação.

A aplicação desta norma ao caso não é afastada pela circunstância de a decisão sob recurso não ser designada pelo RGCO por sentença. Com efeito, sob o ponto de vista substancial trata-se de uma verdadeira sentença pois tratou-se de acto decisório que conheceu a final do objecto do processo (artigo 97º, n.º 1, alínea a), do CPP). 

Sendo nula a decisão, cabe ao tribunal recorrido proferir nova decisão com observância do disposto no artigo 64º, n.º 4, do RGCO.

Assim sendo, não se conhecerão das restantes questões suscitadas pela recorrente, pois a decisão das mesmas está prejudicada pela solução dada à questão da nulidade.


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            Decisão:

Julga-se procedente o recurso e, em consequência, declara-se nula a decisão recorrida, devendo o Meritíssimo juiz proferir nova decisão que observe o disposto no artigo 64º, n.º 4, do RGCO.


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            Sem custas

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            Lisboa, 22 de Abril de 2008

Emído Santos

Nuno gomes da Silva

Santos Rita

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[1] Regime Geral das Contra-Ordenações, a partir de agora designado por RGCO.
[2] O RGCO reserva a designação de sentença à decisão da impugnação judicial mediante audiência de julgamento.