Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9226/23.8T8LSB.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
LEI DA NACIONALIDADE
ACÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO DE FACTO
TRIBUNAL CÍVEL
JUÍZO LOCAL CÍVEL
JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: É ao Juízo local cível (e não ao Juízo de Família e Menores), por ser um tribunal de competência especializada em matéria cível, que compete conhecer da ação declarativa cível, intentada contra o Estado Português, para reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à aquisição da nacionalidade portuguesa (pelo autor litisconsorte de nacionalidade estrangeira), nos termos do art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade (conjugado com o art.º 130.º da LOSJ).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

A. e B. intentaram a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra o ESTADO PORTUGUÊS, pedindo que seja declarado o reconhecimento da união de facto entre os Requerentes, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 3.º da Lei 37/81, de 03-10 (Lei da Nacionalidade).
Na Petição Inicial, os Autores alegaram, para tanto e em síntese, o seguinte:
- O Requerente tem 42 anos de idade, é solteiro, natural do Brasil, de nacionalidade portuguesa, e a Requerente tem 45 anos;
- Ambos os Requerentes vivem em união de facto desde meados do ano 2011 e têm uma filha comum, oriunda da sua relação estável e duradoura, sendo a filha natural do Brasil e igualmente de nacionalidade portuguesa;
- Desde o início coabitam, ininterruptamente, numa moradia familiar, no Brasil, que foi escolhida conjuntamente pelos Requerentes;
-  A relação pautou-se sempre pelo respeito recíproco, sendo as decisões do casal tomadas no interesse da família, nunca tendo havido desentendimentos para além dos normais verificados entre todos os casais;
- Desde o início da relação que ambos assumiram responsabilidades recíprocas dentro do seio familiar, compatíveis com os horários de trabalho e rendimentos de cada um, ajudaram-se e apoiaram-se, financeiramente e afetivamente, fizeram férias e festas familiares em conjunto;
- Vivem assim há quase 11 anos num projeto familiar comum, como se casados fossem;
- A Requerente deseja obter a nacionalidade portuguesa, sendo um dos requisitos formais para instruir o processo administrativo apresentar uma sentença judicial nos termos do art.º 3.º da Lei 37/81, de 03-10, alterada pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17-04, que, em razão da matéria, define este Juízo cível como sendo o competente para declarar ambos os Requerentes como unidos de facto;
-  O Requerente também tem interesse em provar a sua situação de unido de facto, existindo um litisconsórcio ativo na presente ação, onde quem responde é o Estado português, nos termos do art.º 27.º do CPC.
O Réu, representado pelo Ministério Público, apresentou Contestação, com defesa por impugnação, alegando ainda que, na presente ação, o Ministério Público atua em nome próprio, no âmbito das suas especiais atribuições para defesa dos interesses do Estado-Coletividade, pelo que está isento de custas, nos termos do art.º 4.º, n.º 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais, uma vez que a ação proposta pelos Autores é instrumental, relativamente à ação de aquisição de nacionalidade portuguesa, decorrendo a competência do Ministério Público para impugnação, nesse âmbito, diretamente da lei, porquanto lhe incumbe, nos termos legais, a tutela do ordenamento jurídico na vertente da concessão da cidadania e nacionalidade portuguesas.
Foi proferido despacho que convidou as partes a pronunciarem-se sobre a verificação da exceção da incompetência absoluta, em razão da matéria, tendo sido apresentados pelas partes requerimentos em que se pronunciaram no sentido da competência do Juízo cível.
Em 19-12-2023, foi proferido o Despacho (recorrido) com o seguinte teor:
“Da incompetência material deste juízo:
Nos presentes autos, vieram os autores A. e B. peticionar, contra o ESTADO PORTUGUÊS, o reconhecimento judicial da união de facto (para os efeitos do art.º 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade).
Notificados para tanto, pronunciaram-se as partes no sentido da competência dos Juízos Cíveis, com a argumentação aí expendida e que se dá por reproduzida (sendo analisada por referência à tese infra detalhada).
Apreciando.
Prevê o art.º 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade que o estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.
Em sede de interpretação do enunciado normativo transcrito, pergunta-se qual o sentido a atribuir ao conceito de «tribunal cível», designadamente se respeita a uma clarificação de que os tribunais administrativos não têm jurisdição sobre essa matéria, sem prejuízo de estar em causa uma relação processual entre um particular e o Estado, tipicamente administrativa (cf. art.º 212.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), ou se, por outro lado, o legislador entendeu que os Juízos Cíveis têm preferência face aos Juízos de Família e Menores na apreciação da mesma.
Antecipando conclusão que se clarificará infra, afigura-se que se deverá dar preferência à primeira hipótese.
De facto, é a única que apresenta lógica do ponto de vista sistemático – isto é, na definição da jurisdição competente, tendo em consideração que, no mesmo diploma, se prevê, cf. art.º 26.º que «ao contencioso da nacionalidade são aplicáveis, nos termos gerais, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e demais legislação complementar», justificando-se excepcionar a jurisdição dos tribunais comuns,  quando exista; apresentado a única teleologia útil que parece poder-se atribuir-lhe: esclarecer que, sem prejuízo de o sujeito passivo da relação processual ser o Estado, neste caso em excepcional, são competentes os tribunais judiciais.
E essa interpretação é ainda contida nos significados possíveis da noção descrita, sendo congruente com a letra da lei – uma vez que «tribunal cível» compreende, enquanto significado possível, tribunal que aplica a lei civil, confundindo-se com o conceito de «tribunal judicial».
Uma interpretação diversa, puramente fundada numa pretensa letra da lei (e diz-se pretensa uma vez que a menção «tribunais civis» é polissémica, não apresentado significado unívoco, como se viu) não é, desde logo, coerente com o sistema normativo globalmente considerado.
De facto, em 2006, aquando da aprovação da disposição normativa transcrita, não existiam «tribunais civis» - compulsada a Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (a «LOFTJ»), previa-se a existência de varas cíveis e juízos cíveis.
Por outro lado, cria uma quebra sistemática difícil de justificar: os juízos de família e menores, competentes para conhecer de todas as questões tipicamente «familiares» não seriam considerados dotados de aptidão técnica para conhecer destes litígios que são, materialmente, da mesma natureza.
A irracionalidade da solução é facilmente perceptível se considerarmos que, subscrevendo-a, as acções propostas ao abrigo do art.º 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade e outras, propostas por cidadãos nacionais, em que estes pretendam o simples reconhecimento de que vivem numa situação de união de facto – cf. art.º 10.º, n.º 2, al. a) do CPC (que são indiscutivelmente da competência dos juízos de família e menores) –, serão conhecidas por tribunais com competência material distinta.
Face ao exposto, e com os fundamentos descritos, consideramos dever extrair-se daquele enunciado a seguinte norma: (i) para as acções de reconhecimento da união de facto previstas no art.º 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade (ii) têm jurisdição (iii) os tribunais judiciais (por oposição aos administrativos).
Por seu turno, estabelece o art.º 65.º do CPC que as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada.
O diploma para o qual se remete é a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (a «LOSJ»), nos termos da qual são definidas, como competências dos juízos locais cíveis, e a título residual, «quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada».
Por seu turno, quanto aos juízos de família e menores, prevê o art.º 122.º da LOSJ que «1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:
a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;
b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;
c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;
d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;
e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966;
f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;
g) Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família».
A noção de estado civil, como já é pacificamente assumido na doutrina e jurisprudência, deve ser interpretada de forma a integrar o «“conceito de família alargada”, fruto da evolução recente das condições sócio-familiares, incluindo as relações de união de facto» - v., por todos, o Ac. do TRC de 15-07-2020, proc. 160/20.4T8FIG.C1.
Ora, tendo em conta o exposto, necessariamente se conclui que dali se extrai a seguinte norma: (i) para as acções relativas, entre outros, à união de facto (ii) têm competência (iii) os juízos de família e menores.
Assim sendo, e conjugando ambas a regras já identificadas, sendo a competência dos juízos cíveis residual e não dispondo o art.º 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade sobre a questão da competência material dentro dos tribunais judiciais, facilmente se conclui que os Juízos de Família e Menores são competentes para conhecer da presente acção.
Ressalva-se que não se desconhece tese diversa, que podemos resumir da seguinte forma: «dispondo o art.º 3.º/3 da Lei da Nacionalidade que a competência pertence aos tribunais cíveis, não é possível aplicar a regra geral constante do art.º 122.º/1/ da LOSJ e, considerar competente os juízos de família e menores, uma vez que o disposto numa norma especial prevalece sobre uma norma geral» - cf. Ac. do TRL de 27-10-2022, proc. 14919/21.1T8LSB.L1-2.
Não obstante, e salvo o devido respeito, afigura-se-nos que tal tese se sustenta num erro metodológico que torna inválida a sua conclusão, aplicando uma regra de resolução de conflitos de leis com vista a interpretar uma controvérsia, questão diversa e prévia àquela.
É que pressupor que a menção a tribunais cíveis se confunde com juízos cíveis é uma petição de princípio nunca devidamente justificada (e, como vimos supra, existe interpretação, fundada na letra da lei, com resultados diversos). E a aplicação das regras de conflitos normativos pressupõe a prévia definição da norma aplicável, só podendo concluir-se pela relação de especialidade se os pressupostos de aplicação da norma, extraída de um enunciado normativo por via da sua interpretação (uma vez que um não se confunde com o outro), coincidirem parcialmente.
Ora, justificado o caminho interpretativo que nos leva a concluir no sentido exposto supra, é fácil concluir que as normas (a) (i) para as acções de reconhecimento da união de facto previstas no art.º 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade (ii) têm jurisdição (iii) os tribunais judiciais (por oposição aos administrativos) e (b) (i) para as acções relativas, entre outros, à união de facto (ii) têm competência (iii) os juízos de família e menores não se sobrepõem nem total nem parcialmente, regulando questões manifestamente diversas – jurisdição e competência material.
Face ao exposto, torna-se evidente que inexiste qualquer relação de antinomia normativa entre as a norma que se extrai do enunciado normativo plasmado no art.º 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade e a norma que se extrai do art.º 122.º, n.º 1, al. g) da LOSJ.
Neste sentido, com argumentação parcialmente diversa, v.g., por todos (expondo as teses em conflito e acórdãos em ambos os sentidos), o Ac. do TRL de 06-12-2022, proc. 1163/22.0T8FNC.L1-7 «V - O artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade-LN (conjugado com o artigo 14.º, n.ºs. 2 e 4, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa) não pode ser interpretado como constituindo uma norma especial que derroga lei geral (o artigo 122.º, n.º 1, alínea g)) uma vez que:
a - o objectivo da norma foi apenas o de obstar a que estas acções ficassem sob a égide da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais (como decorreria do artigo 26.º da LN que, por via da legislação aplicável, atribui o contencioso da nacionalidade aos Tribunais Administrativos e Fiscais);
b - no momento da publicação da LN inexistia norma semelhante à da alínea g) do artigo 122.º da LOSJ e a acção sempre seria da competência dos Tribunais Cíveis, não se tendo pretendido efetuar uma atribuição diferente daquela que na altura resultava da aplicação das regras gerais da LOFTJ;
c - podendo o legislador atribuir competência material para o tipo de processos que entender e nos instrumentos legislativos que tiver por convenientes, é linear que a Lei da Nacionalidade não constitui a sede legal natural, normal ou mesmo óbvia, para delimitar a competência material dos juízos dos tribunais judiciais para uma determinada acção, sendo esse o motivo pelo qual no n.º 3 do artigo 3.º, a Lei aceitou, se conformou e se adequou ao que a LOFTJ regulava, não constituindo a escolha dos Tribunais Cíveis uma opção autónoma, mas apenas um sancionar da realidade normativa existente;
d - se o legislador não criou nenhuma norma especial que contrariasse o que decorria da lei geral não faz sentido que, com a vigência da alínea g) do artigo 122.º da LOSJ, se passe a considerar ex post o n.º 3 do artigo 3.º da LN, como norma especial, quer por não haver dúvidas de que está em causa matéria de Direito da Família, quer por não haver razões materiais e substantivas que apontem para isso;
e - tal interpretação constituiria forçar o legislador a, décadas depois, dizer o que não quis dizer no momento da elaboração da norma, e contrariar a sua opção inicial de respeitar a opção da LOFTJ (hoje LOSJ) e sem qualquer razão de fundo que o justificasse;
f - tal interpretação tornaria a norma inconstitucional, porque teria o resultado de discriminar entre as várias formas de constituir família, contra o disposto na primeira parte do n.º 1 do artigo 36.º da CRP.
V - Também pelo critério operacional da “Natureza das Coisas”, no processo de valoração das normas de definição da competência, a consideração de que a acção de reconhecimento judicial da existência de união de facto para efeitos de atribuição da nacionalidade, pudesse ser da competência dos juízos cíveis (existindo uma norma como a da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, com o enquadramento constitucional que representa), daria ao nosso edifício jurídico uma traça desconforme à que resulta da Constituição e à que decorre do sistema jurídico enquanto unidade (por colocar matérias de Direito da Família fora da competência dos Tribunais de Família, sem uma justificação substantiva minimamente compreensível)».
Destarte, verifica-se uma excepção dilatória de incompetência (absoluta) em razão da matéria, que é de conhecimento oficioso – cf. arts. 96.º, al. a), 278.º, n.º 1, al. a), 577.º, al. a) e 578.º, todos do CPC – determinando a extinção da instância – cf. art.º 99.º, n.º 1 do CPC.
Os autores são responsáveis pelas custas do processo, cf. art.º 527.º, n.º 1 do CPC.
Valor da causa: €30.000,01, cf. art.º 296.º e 303.º, n.º 1 do CPC.
Pelo exposto, julga-se verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, e, em consequência:
(i) Absolve-se o Réu ESTADO PORTUGUÊS da instância;
(ii) Condenam-se os Autores A. e B. em custas.
Registe e notifique, sendo o autor, ainda, para efeitos do disposto no artigo 99.º, n.º 2 do CPC.
Registe e notifique.”
Inconformados com esta decisão, tanto os Autores como o Réu vieram interpor recurso de apelação.
Os Autores formularam na sua alegação as seguintes conclusões:
A) O presente recurso, interposto contra a douta sentença que, a invocar exceção dilatória de incompetência (absoluta) em razão da matéria, extinguiu a instância e, via de consequência, absolveu o Réu ESTADO PORTUGUÊS da instância e condenou os Autores, ora Recorrentes, em custas, visa a reforma de referida sentença, com o reconhecimento e determinação da competência do tribunal cível para apreciação da matéria trazida pela ação apresentada pelos ora Recorrentes, e o retorno dos autos ao MM. Juízo a quo para retomada e julgamento de mérito do feito.
B) As Recorrentes questionam a interpretação dada pelo MM. Juízo Local, ao disposto no artigo 3º, nº 3, da Lei nº Lei n.º 37/81, de 03 de Outubro (Lei da Nacionalidade), em conjunção com o artigo 122º, nº 1, letra g, da Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ), que concluiu pela competência especial dos Juízos de Família e Menores, para conhecer da acção, tendo deixado aquele MM. Juízo de considerar a natureza específica do reconhecimento da união de facto para fins de aquisição da nacionalidade portuguesa e da especificidade da norma (Lei da Nacionalidade), não revogada pela LOSJ, e passando ao largo do disposto no art.º 7º, nº 3 do Código Civil.
C) O reconhecimento desta união de facto tem um propósito específico e ocorre no contexto de pedido de nacionalidade portuguesa da Recorrente Sra. B..
D) Como bem pontuou o Ministério Público, em manifestação nos autos, na primeira instância "3. Por outro lado, os interesses que a presente ação visa alcançar não são atinentes ao conteúdo das relações familiares, mas à consequente aquisição de nacionalidade portuguesa; 4. Tal desiderato assume um relevo e uma natureza de caráter público, que justifica a atribuição da competência ao tribunal cível".
E) A Lei da Nacionalidade é lei especial, na qual o reconhecimento da união de facto tem um propósito específico, de relevo e natureza de caráter público (questão fundamental e importantíssima, de aquisição de nacionalidade portuguesa, por estrangeiros, com tudo o que isto implica), não sendo cabível seu reducionismo às relações familiares puras (estas últimas sim, de competência dos Juízos de Família e Menores).
F) a LOSJ (lei geral), não revogou a lei especial (Lei da Nacionalidade, em seu artigo 3º, nº 3).
G) A douta sentença recorrida violou, por má interpretação, o disposto no artigo 3º, nº 3, da Lei nº 37/81, de 03 de Outubro (Lei da Nacionalidade), devendo ser revogada.
Por sua vez, o Ministério Público formulou na sua alegação as seguintes conclusões:
1.ª - Autores instauraram ação de reconhecimento de união de facto contra o Estado Português, com vista à subsequente aquisição de cidadania portuguesa por um deles, nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade.
2.ª- O Tribunal a quo absolveu o Réu da instância por entender ser o tribunal cível materialmente incompetente para julgar a ação.
3.ª- O MP entende, ao invés, que o tribunal cível é o competente para a apreciação da presente ação de reconhecimento de união de facto.
4.ª- Nesse sentido, aponta o argumento da letra da lei, contido no disposto no artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 3/10, e diversa jurisprudência.
5.ª- A referida norma é uma lei especial em sede de atribuição de competência material para a instauração desta específica ação.
6.ª- O legislador, no âmbito da LOSJ (lei geral), não manifestou uma intenção revogatória de forma inequívoca, nos termos do artigo 7.º, n.º 3, do Código Civil.
7.ª- Por outro lado, deve ter-se em consideração que os interesses que a presente ação visa alcançar não são meramente atinentes ao conteúdo das relações familiares, mas à consequente aquisição da cidadania portuguesa.
8.ª- Tal objetivo assume um relevo e uma natureza de caráter público, que justifica a atribuição da competência ao tribunal cível.
9.ª- O Tribunal a quo cometeu um erro de julgamento e de aplicação do direito, ao aplicar lei geral e afastar a norma especial aplicável.
10.ª- Destarte, violou o Tribunal o disposto nas normas constantes dos artigos 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, e 7.º, n.º 3, do Código Civil.
11.ª- Deverá, assim, a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos no Juízo Local Cível de Lisboa, por ser o tribunal materialmente competente para o conhecimento da presente ação.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II - FUNDAMENTAÇÃO

Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
A única questão a decidir é a de saber se não se verifica a exceção dilatória de incompetência absoluta, em razão da matéria.

A presente ação foi intentada por força do disposto no art.º 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 03-10 (Lei da Nacionalidade), na redação introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17-04, nos termos do qual: O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.”
Este artigo deve ser conjugado, entre outros normativos, com o disposto no art.º 14.º, n.ºs 2, 4 e 5, do Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14-12, que, além do mais, aprovou o Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, estabelecendo os n.ºs 2 e 4, sob a epígrafe “Aquisição em caso de casamento ou união de facto mediante declaração de vontade”, que:
“2 - O estrangeiro que coabite há mais de três anos com português em condições análogas às dos cônjuges, independentemente do sexo, se quiser adquirir a nacionalidade deve declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto.
(…) 4 - No caso previsto no n.º 2, a declaração é instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do cidadão português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto.”
Como é sabido, a interpretação e aplicação do citado n.º 3 do art.º 3.º da Lei da Nacionalidade tem suscitado, em anos recentes, divergência na jurisprudência, com o surgimento de uma corrente jurisprudencial, inicialmente minoritária, mas que foi ganhando adeptos, que defende uma espécie de interpretação atualista (para os defensores da tese contrária, uma interpretação ab-rogante ou revogatória) no sentido de considerar que a competência para estas ações é dos Juízos de Família e Menores, por força do disposto no art.º 122.º, n.º 1, al. g), da Lei n.º 62/2013, de 26-08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário), nos termos do qual compete aos juízos de família e menores preparar e julgar “Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”.
Esta corrente jurisprudencial surge, pelo menos de forma mais expressiva, quase 10 anos volvidos após a entrada em vigor da LOSJ, sendo certo que já desde o ano 2009 vigorava nas denominadas três “comarcas piloto” uma norma exatamente igual, o art.º 114.º, al. h), da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - NLOFTJ). Parece-nos útil lembrar que apenas gerou inicialmente alguma controvérsia a questão de saber se a alínea h) do art.º 114.º da Lei n.º 52/2008 conferia competência, em razão da matéria, aos Juízos de Família e Menores, para preparar e julgar as ações de interdição, acabando por prevalecer o entendimento de que a competência cabia aos Juízos de grande instância cível, com alguns argumentos passíveis de serem transpostos para a análise da questão que ora nos ocupa. A título exemplificativo, veja-se o acórdão desta 2.ª Secção da Relação de Lisboa de 18-10-2012, proferido no proc. n.º 12983/12.3T2SNT.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, pela sua explanação sobre o sentido da expressão “ações relativas ao estado civil das pessoas e família”, aí se referindo designadamente que: «reponderando o problema e recolhendo os contributos trazidos pela jurisprudência desta Relação entretanto publicada (…), afigura-se-nos mais curial a posição defendida pelo apelante, ou seja, a exclusão das ações de interdição do quadro de competência dos tribunais de família, mesmo à luz da LOFTJ de 2008.
Efetivamente, na linguagem corrente “estado civil” reporta-se ao posicionamento dos cidadãos face ao matrimónio (casado, solteiro, divorciado, separado, viúvo), nada tendo a ver com as situações de incapacidade para o governo da sua pessoa e dos seus bens. Por outro lado, o próprio legislador utiliza por vezes o conceito com esse sentido mais restrito, como se indicou supra. Acresce que, constituindo a passagem das ações de interdição da área de competência dos tribunais cíveis para os de família uma inovação significativa, seria de esperar que tal fosse sinalizado nos trabalhos preparatórios – o que, como se viu supra, não ocorreu. Caso fosse essa a intenção do legislador, também seria mais curial que, em consonância com a técnica utilizada na parte restante do artigo 114.º, as ações de interdição fossem expressamente enunciadas como espécies processuais alvo da jurisdição dos tribunais de família (como, de resto, sucedeu com as ações de investigação de maternidade e de paternidade). Finalmente, como se salientou no acórdão desta Relação datado de 12.7.2012, processo 21777/11.2T2SNT.L1-1, a referida alínea, mesmo com este sentido mais restrito, tem desde logo o efeito útil de albergar a competência para as ações para o reconhecimento ou o não-reconhecimento das decisões de divórcio, separação ou anulação do casamento proferidas pelas autoridades competentes dos Estados da União Europeia, as quais, segundo comunicação do Estado Português, no espaço português competem ao “Tribunal de Comarca” e, nas áreas sob a sua jurisdição territorial, ao “Tribunal de Família e Menores” (vide arts. 21.º, 22.º e 68.º do Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27.11.2003 e lista dos tribunais publicada no Jornal Oficial da União Europeia n.º C 40, de 17 de fevereiro de 2005).»
A corrente jurisprudencial adotada na decisão recorrida é ilustrada, entre outros, pelo acórdão do STJ de 16-11-2023, proferido no proc. n.º 546/22.0T8VLG.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, conforme se alcança do respetivo sumário, com o seguinte teor:
«I - A lei da nacionalidade ao referir-se, no n.º 3 do artigo 3.º, a tribunal “cível”, deve ser entendida como uma norma remissiva para as regras que definem a competência material dos tribunais judiciais, aceitando os critérios de especialização da jurisdição cível.
II - Cabendo à competência dos juízos cíveis e dos juízos de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado, é de concluir que, estando as ações relativas aos requisitos e efeitos da união de facto legalmente atribuídas a juízo especializado, como o é o Juízo de Família e Menores, por força do artigo 122.º, n.º 1, alínea g) da LOSJ, também será este Juízo especializado em matéria cível competente para julgar as ações de reconhecimento de união de facto para o efeito de aquisição da nacionalidade por um dos companheiros que seja cidadão estrangeiro.»
Ainda neste sentido - afirmando que o tribunal materialmente competente para a tramitação e decisão das ações de simples apreciação positiva de reconhecimento da existência de uma situação de união de facto, para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa, nos termos previstos no art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, é o Juízo de Família e Menores, de acordo com a regra legal inscrita na alínea g) do n.º 1 do art.º 122.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) - merece destaque o recente acórdão da 2.ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa de 08-02-2024, proferido no proc. n.º 20621/23.2T8LSB.L1-2, disponível em www.dgsi.pt, com um voto de vencido, acórdão que contém uma extensa resenha de jurisprudência, para a qual, por economia, remetemos.
Em sentido contrário, que nos parece ser maioritário, na jurisprudência do STJ, entendendo que face à atribuição específica de competência constante do art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, os tribunais de família e menores não são competentes para julgar as ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa, veja-se, a título exemplificativo os seguintes acórdãos (todos disponíveis em www.dgsi.pt), de que citamos os respetivos sumários:
- o acórdão de 17-06-2021, no proc. n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1: “Face à atribuição específica de competência constante do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, os tribunais de família e menores não são competentes para julgar as ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa.”
- o acórdão de 22-06-2023, no proc. n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1: “Os Juízes Cíveis são competentes para apreciar e julgar um pedido de reconhecimento judicial da uma situação de união de facto com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa”;
- o recente acórdão de 08-02-2024, no proc. n.º 8894/22.2T8VNG.P1.S1: “Os juízos de família e menores não são competentes para julgar as acções de reconhecimento judicial da situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade portuguesa.”
Destaque ainda para o acórdão desta 2.ª Secção da Relação de Lisboa de 27-10-2022, proferido no proc. n.º 14919/21.1T8LSB.L1-2, também com um voto de vencido, bem como para a recente decisão do Sr. Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-03-2024, proferida no proc. n.º 2703/23.2T8FNC.L1-2 (Conflito de competência), disponíveis em www.dgsi.pt, afirmando ser o Juízo local cível - e não o Juízo de família e menores - o tribunal competente, para, em razão da matéria, apreciar e decidir das ações de reconhecimento judicial da situação de união de facto, para aquisição de nacionalidade portuguesa, a que se referem o art.º 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 3 de outubro, e o art.º 14.º, n.ºs 2 e 4, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa (aprovado pelo DL n.º 237-A/2006, de 14-12).
Deste já adiantamos que esta nos parece ser a resposta acertada à questão que nos ocupa, pela interpretação que fazemos do referido art.º 3.º, n.º 3, tendo em atenção os critérios consagrados no art.º 9.º do CC, sob a epígrafe “Interpretação da lei”, nos termos do qual:
“1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.
3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”
Há, portanto, que buscar e atender, na interpretação destas normas, ao elemento literal (a letra ou texto da lei), bem como aos elementos histórico, teleológico (a ratio da norma) e sistemático, sendo certo que todos devem ser conjugados.
Importa, pois, ter presente que o n.º 3 do art.º 3.º em apreço foi introduzido pelo art.º 1.º da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17-04, que também alterou a epígrafe do art.º 3.º, a qual antes apenas se referia à aquisição da nacionalidade em caso de casamento. Em abril de 2006, vigorava a Lei n.º 3/99, de 13-01 (Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - LOFTJ), que já previa a criação de tribunais de competência especializada, de família e de menores, bem como a criação de juízos de competência especializada cível, estabelecendo, a respeito das varas e juízos de competência específica, que podiam ser, além do mais, varas cíveis, juízos cíveis e juízos de pequena instância cível. É sabido que estavam em funcionamento, no que ora importa, varas cíveis (e varas com competência mista) e tribunais de família e menores.
 No plano literal, parece ser evidente que a expressão “tribunal cível” constante do referido art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade não se refere a estes últimos. Aliás, mesmo os defensores da tese adotada na decisão recorrida reconhecem que os elementos literal e histórico de interpretação apontam para que a competência seja dos juízos cíveis. Consideram, todavia, que o legislador não soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, pois quando se referiu ao “tribunal cível” estaria a referir-se ao “tribunal que tramita e decide questões de natureza cível dentro da orgânica judiciária”, que é definida pela lei de organização em vigor; e que, em face da organização judiciária resultante da Lei n.º 62/2013, os Juízos de família e menores são os tribunais de competência especializada mais apetrechados e preparados para proceder à análise da prova apresentada nestas ações. Efetivamente, afirma-se no referido acórdão do STJ de 16-11-2023, que os demais elementos de interpretação justificam que se considere que a competência passou a ser dos juízos de família, pela “necessidade de a causa ser decidida por tribunais dotados de conhecimentos e formação para as mesmas, promovendo a qualidade das decisões. É esta a finalidade da afetação das questões da família, incluindo o reconhecimento da união de facto, a tribunais de competência especializada. Era esta a razão de ser do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, quando a Lei Orgânica n.º 2/2006 decidiu atribuir a competência aos tribunais cíveis, na falta de uma norma, à época, semelhante ao o atual artigo 122.º, n.º 1, al. g) da LOSJ” e que “o objetivo da norma do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, foi apenas o de obstar a que estas ações ficassem sob a égide da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais, sendo certo que, inexistindo à data norma semelhante à da alínea g) do artigo 122.º da LOSJ, a indicação dos Tribunais Cíveis era a que se justificava, por ser a que decorria da Lei que regulava essa matéria.”
Não podemos acompanhar (pelo menos não inteiramente) esta linha de pensamento, pelas razões que passamos a expor, começando por lembrar os trabalhos legislativos que antecederam a aprovação da referida Lei Orgânica. Assim, através da consulta da página na Internet da Assembleia da República, designadamente em https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=2096, podemos constatar que a aprovação da Lei Orgânica n.º 2/2006, que introduziu profundas alterações na Lei da Nacionalidade, foi o culminar de diferentes iniciativas parlamentares, tendo sido feita a discussão conjunta da Proposta de Lei n.º 32/X/1, da autoria do Governo - da qual, sublinhe-se, nada consta a respeito da equiparação da união de facto ao casamento para efeito de aquisição da nacionalidade -, e diferentes projetos, a saber:
- Projeto de Lei n.º 18/X/1 (do BE) – em cuja Exposição de motivos se refere que se pretende a “Equiparação da união de facto ao casamento para efeitos de aquisição de nacionalidade por efeito de vontade”; nesse sentido, a redação do art.º 3.º passaria a ser a seguinte (mantinha-se a epígrafe): “1.O estrangeiro casado há mais de dois anos com português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, mediante declaração de vontade feita na constância do casamento. 2.(…). 3.O estrangeiro que vive em união de facto há mais de dois anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante acção de simples declaração a intentar no tribunal competente.”
- Projeto de Lei n.º 31/X/1 (do PEV “Os Verdes”) – em cuja “Nota justifica” (sic) se refere que importa “Equiparar a união de facto ao casamento, para efeitos de aquisição de nacionalidade, fixando a obrigatoriedade de um período mínimo de dois anos de vigência daquela relação familiar, prevenindo assim eventuais fraudes”; nessa senda a epígrafe do art.º 3.º passaria a ser “Aquisição em caso de casamento ou união de facto” e a redação a seguinte: “1 - O(a) estrangeiro(a) casado(a) com cidadão português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração de vontade feita a qualquer tempo, na vigência do casamento. 2 - O(a) estrangeiro(a) que vive em regime de união de facto há mais de dois anos com cidadão português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, mediante declaração nesse sentido e comprovativo da sua situação familiar. 3 - A declaração de nulidade ou anulação do casamento ou da união de facto não prejudica a nacionalidade adquirida pelo cônjuge que o contraiu de boa fé.”
- Projeto de Lei n.º 40/X/1 (do PCP) – em cujo Preâmbulo se refere que “importa equiparar as situações de união de facto ao casamento para efeitos de aquisição da nacionalidade, embora neste caso com as cautelas necessárias para prevenir eventuais fraudes; nesse sentido, a redação do art.º 3.º (cuja epígrafe era mantida) seria a seguinte: “1. O estrangeiro casado com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do casamento. 2. O estrangeiro que vive em união de facto há mais de dois anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.
- Projeto de Lei n.º 170/X/1 (PSD) – em que nada consta a respeito da união de facto;
- Projeto de Lei n.º 173/X/1 (CDS-PP) – em que nada consta quanto à união de facto.
Após votação, no texto de substituição da Proposta de lei n.º 32/X e dos Projetos de lei n.ºs 18, 31, 40, 170 e 173/X, ficou a constar para o art.º 3.º a seguinte redação: “Artigo 3.º (Aquisição em caso de casamento ou união de facto) 1 — (...) 2 — (...) 3 — O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português, pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.” De salientar, pois, que o legislador não aprovou a redação constante do projeto de lei do Bloco de Esquerda, que se referia apenas ao “tribunal competente”.
Resulta claro ter sido intenção do legislador equiparar o casamento à união de facto e, para prevenir a fraude, considerou ser necessário que um tribunal previamente tivesse declarado que existia uma situação de união de facto, numa ação judicial que, sendo prévia ao início do procedimento de aquisição da nacionalidade, não se inclui ainda no contencioso da nacionalidade propriamente dito, mais funcionando como uma espécie de “antecâmara” - cf. artigos 25.º e 26.º da Lei da Nacionalidade.
Muito embora a competência para esta ação, de reconhecimento judicial da união de facto, coubesse, desde já o salientamos, aos tribunais judiciais (tribunais comuns ou tribunais de comarca), não deixou o legislador, avisadamente, para evitar dúvidas a esse respeito, de explicitar que a competência cabia ao tribunal cível [optando por essa redação em detrimento da constante do Projeto de Lei n.º 18/X/1 (do BE)], não se podendo dizer (nem isso resulta do Preâmbulo do referido projeto de lei) que a razão de ser desta disposição tenha sido, tão-só, afastar a resolução desta questão dos tribunais administrativos e fiscais, muito menos que estes, à luz do artigo 26.º da Lei da Nacionalidade, que remetia para “legislação administrativa”, seriam os competentes.
Na verdade, não havia que afastar a competência dos tribunais administrativos, porque estes tribunais não seriam os competentes para julgar estas ações, sendo inaceitável ver no referido art.º 26.º uma norma especial de atribuição de competência, quando se trata apenas de norma atinente à  “Legislação aplicável” ao contencioso da nacionalidade, estabelecendo que “Ao contencioso da nacionalidade são aplicáveis, nos termos gerais, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e demais legislação complementar”.
Que a presente ação não se insere no Contencioso da nacionalidade tal como se apresenta pela organização sistemática da lei, resulta tanto da Lei da Nacionalidade, como do seu respetivo Regulamento. Assim, na Lei da Nacionalidade é no Capítulo III que se refere o “Contencioso da nacionalidade”, capítulo esse que consta do Título II intitulado “Registo, prova e contencioso da nacionalidade” - cf. arts. 25.º e seguintes. No Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, a esta matéria é dedicado o Capítulo II, atinente ao “Contencioso da nacionalidade”, do Título III relativo à “Oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade e contencioso da nacionalidade” - cf. arts. 61.º e seguintes. Veja-se, por exemplo, o que dispõe o art.º 62.º do Regulamento quanto ao “Meio processual”: “Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a impugnação judicial de quaisquer atos relativos à atribuição, aquisição ou perda da nacionalidade portuguesa segue os termos da ação administrativa, regulada no Código de Processo nos Tribunais Administrativos.”
Como é fácil de ver, pelo âmbito de aplicação destes normativos e pela sua anterioridade, não regulam a ação declarativa comum para reconhecimento judicial da união de facto prevista nos artigos 3.º e 14.º da referida Lei e Regulamento, a qual, sublinhe-se, não tem por objeto nenhum litígio emergente de uma relação jurídica administrativa ou fiscal nos termos dos artigos 1.º e 4.º do ETAF, na redação então em vigor (ou na atual), sede própria onde se encontram as disposições gerais que delimitam o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais.
Portanto, à partida, a competência para a ação prevista no art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade pertencia aos tribunais comuns - cf. artigos 211.º, n.º 1, e 212.º, n.º 3, da CRP, e art.º 66.º do CPC de 1961 (a que hoje corresponde o art.º 64.º do CPC de 2013).
Logo, apenas se poderá entender que uma das razões de ser daquela norma (que não a única) era clarificar que a competência caberia aos tribunais judiciais, que são efetivamente os tribunais comuns em matéria cível. Mas isso não é motivo para considerar que a expressão “a interpor no tribunal cível” (ainda que não seja a mais rigorosa, até porque o verbo “interpor” é mais apropriado para se referir à apresentação de requerimento de interposição de recurso, que não à instauração ou propositura de ação judicial) significa “tribunal que tramita e decide questões de natureza cível dentro da orgânica judiciária”.
Efetivamente, salvo o devido respeito, esta última expressão parece-nos demasiado vaga e até desprovida de sentido útil, sendo sabido que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal, que exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (cf. art.º 211.º, n.º 1, da CRP) - aliás, até os “tribunais criminais” tramitam e decidem questões de natureza cível quando conhecem os pedidos de indemnização civil.
Sendo de presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, parece-nos forçoso concluir que o legislador quis atribuir competência aos tribunais cíveis, pois considerou que se estava perante matéria cível, afirmando-o expressamente, de modo a evitar eventuais dúvidas.
Na verdade, a expressão “tribunal cível” evidencia uma intenção clara do legislador, ante a novidade da matéria, no sentido de considerar que se estava perante uma ação declarativa cível, da competência dos tribunais (judiciais) - de competência específica (na atual LOSJ de competência especializada) - aos quais competia preparar e julgar os processos de natureza cível. Este é claramente o sentido inculcado pela letra da lei, bem como pelos elementos histórico, sistemático e teleológico, parecendo-nos evidente que o legislador entendeu, pela relevância e novidade da matéria, ser essa a sede própria para delimitar a competência, em razão da matéria, dos tribunais judiciais quanto a tais ações (além de estabelecer o foro competente para outras ações – cf. art.º 32.º da Lei da Nacionalidade e artigos 55.º, 56.º, 57.º, 61.º e 69.º do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa).
Não tivesse o legislador tido o cuidado de dispor sobre essa matéria e, por certo, logo teria surgido a controvérsia jurisprudencial em torno da questão de saber quais os tribunais competentes para tais ações. Ainda que se possa criticar a opção do legislador, dizendo que a Lei da Nacionalidade não constitui a sede legal própria e natural para definir a competência material de juízos/varas dos tribunais judiciais para uma determinada ação (crítica que nem nos parece justa), o certo é que foi muito clara a opção do legislador em fazê-lo, ao estabelecer um requisito específico do procedimento de aquisição da nacionalidade mediante declaração de vontade, em caso de união de facto, prevendo a necessidade de sentença judicial a proferir em ação declarativa da competência dos tribunais cíveis, o que configura uma norma especial de atribuição da competência, uma vez que dispõe para uma situação restrita de casos (as aludidas ações de reconhecimento da união de facto), sem estar em direta oposição com a disciplina geral (não se trata de norma excecional). Não significa isto que não tenhamos de recorrer aos demais critérios de aferição da competência, mormente o do valor da causa [critério que determinou que a competência já tenha sido das Varas cíveis e, nas aludidas comarcas piloto, dos Juízos de Grande Instância Cível].
Mesmo admitindo que o sentido da norma é o de atribuir competência ao “tribunal que tramita e decide questões de natureza cível dentro da orgânica judiciária”, o certo é que na atual organização judiciária, os Juízos locais cíveis são os tribunais de competência especializada que conhecem das ações de natureza cível que não estejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada (cf. art.º 130.º, n.º 1, da LOSJ), estando também expressamente previsto, no art.º 130.º, n.º 2, al. f), da LOSJ, que lhes cabe exercer as demais competências conferidas por lei. Portanto, são competentes os Juízos cíveis, precisamente por estar em causa uma ação de natureza cível que, desde já o adiantamos, não se enquadra na previsão da alínea g) do n.º 1 do art.º 122.º da LOSJ (“Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”), norma geral da qual não resulta seguramente uma intenção inequívoca do legislador na revogação daquela (cf. art.º 7.º, n.º 3, do CC), não tendo assim a virtualidade de revogar ou alterar tacitamente a norma especial do n.º 3 do art.º 3.º em apreço.
Com efeito, a ação em apreço, além da sua reconhecida natureza cível, insere-se no conceito de “ações sobre o estado das pessoas”, vulgarmente denominadas “ações de estado”, que (i) versam sobre o estatuto individual/familiar da pessoa (status familiae ou estatuto jurídico-familiar), designadamente filiação, casamento, divórcio, ou (ii) têm por objeto o estatuto político (status civitatis ou condição jurídica de cidadão), como as relacionadas com cidadania e nacionalidade, não se confundindo com o conceito, mais restrito, de ações relativas “ao estado civil das pessoas”. A ação de reconhecimento judicial da união de facto tendo em vista a aquisição da nacionalidade portuguesa (pelo unido de facto estrangeiro) não visa dirimir nenhum conflito relativo ao estado civil das pessoas, pois, no nosso ordenamento jurídico, a união de facto não releva para o estado civil de uma pessoa (cf. art.º 1.º do Código do Registo Civil).
Por outro lado, não parece ter sido intenção do legislador que na citada alínea g) caibam todas e quaisquer ações que tenham por objeto matérias de Direito da Família. Não pode ser esse o sentido da norma, tendo sim uma aceção mais estrita, sob pena de serem inúteis todas as demais alíneas do art.º 122.º (e até o art.º 123.º) da LOSJ. Seria mesmo incompreensível que o legislador optasse por um conceito tão abrangente e, do mesmo passo, por critérios tão minuciosos.
É fora de dúvida que os Juízos de Família e menores têm competência em matéria cível (veja-se, por exemplo, o art.º 6.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível, aprovado pela Lei n.º 141/2015, de 08-09). Porém, nos diferentes artigos da LOSJ em que está prevista a competência dos Juízos de Família e Menores, a mesma não é designada como tal, tendo o legislador optado por a distribuir como “Competência relativa ao estado civil das pessoas e família” (art.º 122.º em apreço), “Competência relativa a menores e filhos maiores” (art.º 123.º) e “Competências em matéria tutelar educativa e de protecção” (art.º 124.º). É atribuída competência para as ações cíveis aos Juízos (Centrais e Locais) cíveis, reconhecendo-se ainda expressamente competência em matéria cível aos Juízos do Trabalho (cf. art.º 126.º) e aos Juízos de Execução (e fora do quadro dos tribunais judiciais, aos Julgados de Paz).
É também significativo que, na alínea b) do art.º 122.º, se faça menção expressa aos “Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto”, norma que seria inútil, se o sentido da alínea g) fosse tão abrangente (como se entendeu na decisão recorrida), pois um processo de jurisdição voluntária relativo a uma situação de união de facto caberia na previsão de uma ação “relativa ao estado civil das pessoas e família”. Se essa abrangência fosse pretendida pelo legislador, teria bastado indicar, na referida alínea b), “Processos relativos a situações de união de facto”.
Nesta linha de pensamento, ainda que a propósito de uma situação distinta da que nos ocupa, merece destaque a apreciação feita no acórdão do Tribunal dos Conflitos de 22-11-2023, proferido no proc. n.º 03962/22.3T8VCT.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt, em que se considerou, conforme consta do respetivo sumário, que: “I - Compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais a apreciação dos pedidos de condenação da Caixa Geral de Aposentações no reconhecimento de uma situação de união de facto e da consequente atribuição da pensão de sobrevivência. II - Cabe aos Tribunais Judiciais e, dentro destes, aos Tribunais Cíveis, a competência para julgar o pedido dirigido contra um particular para que seja condenado a reconhecer uma situação de união de facto, como pressuposto da atribuição de pensão de sobrevivência.” Entendeu-se que, nesse caso, «o reconhecimento da união de facto “funciona apenas como a averiguação judicial de um pressuposto (…) a verificar para o reconhecimento de um direito de natureza extrafamiliar”, não estando em causa “a resolução de qualquer litígio familiar”, tal como sucedia no acórdão de que se retiraram estes trechos, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Junho de 2023, www.dgsi.pt, proc. n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1, proferido a propósito da justificação (ali, da manutenção) da atribuição aos tribunais cíveis da competência para apreciar a existência de união de facto, enquanto pressuposto da aquisição da nacionalidade portuguesa. Com efeito, e como ali também se escreveu, “Existe, aliás, um largo número de ações em que a existência de um casamento ou de uma união de facto é apenas um pressuposto a verificar para o reconhecimento de um direito extrafamiliar (v.g. um direito de crédito de terceiro), competindo o seu julgamento aos tribunais cíveis.”».
Esta argumentação parece-nos ser da maior relevância, pois embora um dos objetivos da organização judiciária delineada pela LOSJ tenha sido a tendencial - que não absoluta - especialização “em razão da matéria” dos processos que os tribunais tramitam (na esteira da experiência já alcançada com a aplicação da Lei n.º 52/2008), não chegou ao ponto de retirar competência aos Juízos cíveis para o conhecimento de uma série de ações cujo objeto do litígio também diz respeito às relações familiares, parecendo-nos evidente que se a intenção fosse incluir uma categoria tão específica de ações, como as previstas no art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, isso não podia deixar de estar claramente previsto.
Aliás, até se compreende que o legislador não o tenha feito, por não se lhe ter apresentado como vantajosa essa alteração no confronto com o regime vigente, uma vez que, considerando o âmbito geral das competências dos Juízos cíveis e dos Juízos de família e menores, inexiste uma efetiva vantagem ou justificação, do ponto de vista teleológico e da unidade do sistema, em considerar que é nestes últimos que deve ser demandado o Estado Português, numa “ação de estado” destinada a obter sentença de reconhecimento judicial da união de facto, tida pelo legislador como pressuposto prévio do procedimento de aquisição da nacionalidade portuguesa.
Discordamos, pois, da fundamentação desenvolvida no referido acórdão do STJ de 16-11-2023, quando aí se refere que os demais elementos de interpretação justificam que se considere que a competência passou a ser dos juízos de família, sustentando que “Conflitos em torno do reconhecimento da união de facto em casos de rutura e/ou quanto aos efeitos da mesma têm dado lugar a processos judiciais que correm termos nos tribunais de família para apurar não só a existência ou inexistência de união de facto, mas também os seus efeitos: a divisão de bens aquando da rutura, adjudicação da casa de morada de família ou transmissão do arrendamento da mesma em caso de separação ou de morte, obrigação de alimentos da herança do falecido, etc. Assim, argumentos de lógica e de unidade do sistema jurídico impõem que a competência para as ações em que se pede o reconhecimento da união de facto, tendo em vista a aquisição da nacionalidade por um dos seus membros, seja atribuída àqueles tribunais (isto é, aos tribunais de família), que, por terem a natureza de tribunais de competência especializada, estão mais apetrechados e preparados para proceder à análise da prova apresentada. (…) o interesse público em combater a possibilidade de estarmos perante uma união de facto simulada unicamente com o objetivo de permitir a um cidadão estrangeiro a aquisição da nacionalidade portuguesa fica mais protegido se os tribunais competentes para julgar a causa tiverem mais experiência em analisar a prova. Ora, é indiscutível que são os juízos de família que estão mais preparados para este efeito.”
Efetivamente, salvo o devido respeito, que é muito, não podemos acompanhar este entendimento. Os Juízos locais cíveis também são tribunais de competência especializada [cf. art.º 81.º, n.º 3, al. b), da LOSJ] e estão, como sempre estiveram, igualmente apetrechados e preparados para proceder à análise da prova no que concerne ao reconhecimento da união de facto.
Ademais, na atual organização judiciária, são da competência dos Juízos locais cíveis as ações de divisão de coisa comum (mormente de imóvel de que os ex-membros da união de facto são comproprietários) e correm termos nos Juízos cíveis diversas ações em que o objeto do litígio inclui apurar da existência de união de facto, sobretudo quando, como é o caso da presente ação (em que é demandado o Estado Português), o conflito extravasa o âmbito estritamente familiar, envolvendo um “terceiro”, que também é sujeito processual, caso das seguradoras (por exemplo, quando se discute a atribuição de indemnização nos termos art.º 496.º, n.º 3, do CC), dos senhorios (que não reconheçam a existência da união de facto - cf. artigos 1072.º, 1093.º e 1106.º do CC) e dos herdeiros (litígios relativos ao direito real de habitação e disposições testamentárias - cf. art.º 5.º da Lei n.º 7/2001, de 11-05, e art.º 2192.º, n.º 2, do CC; veja-se, por exemplo, o ac. da RL de 08-03-2022, no proc. n.º 5508/19.1T8LRS.L1-7 disponível em www.dgsi.pt).
Não se nega que o Juízo de família e menores, enquanto tribunal especializado, está (igualmente) vocacionado para apurar se existe uma união de facto, mas já não nos parece ser inteiramente correto acrescentar (como se faz, por exemplo, no acórdão da RL de 11-10-2022, proferido no proc. n.º 18030/21.7T8LSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt) que as regras aplicáveis às diferentes ações não divergem pela sua finalidade, mormente pela simples circunstância de se pretender, em última instância, obter a aquisição da nacionalidade.
Na verdade, ainda que aos diferentes casos seja aplicável a Lei n.º 7/2001, de 11-05, o mesmo não sucede, no que concerne a importantes regras de direito processual, precisamente pela natureza do litígio em questão, pois estamos no âmbito das “ações sobre o estado das pessoas” (cf. art.º 303.º, n.º 1, do CPC) e, como bem se percebe pelo propósito do legislador ao prever, no art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, a necessidade de ação judicial (evitar a fraude), perante uma ação em que a vontade das partes é ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela mesma se pretende obter [cf. art.º 568.º, al. c), do CC].
Também não se discute que a união de facto é uma forma de constituir família. Mas daí não resulta sem mais que o legislador tenha visado, na previsão da alínea g), toda e qualquer ação em que se discuta a existência de uma situação de união de facto, sendo evidente que a aceção deve ser mais restrita, conforme acima explanado, considerando precisamente a “natureza das coisas”, que não se esgota numa vertente estritamente familiar. Um instituto jurídico como a união de facto, à semelhança do casamento, tem necessariamente múltiplos efeitos, que transcendem a esfera familiar, podendo ter reflexos patrimoniais e outros, levando a que uma tal situação possa ter de ser reconhecida em diferentes sedes e por diferentes meios processuais, consoante os casos e as regras legais aplicáveis.
Nessa medida, parece-nos inaceitável considerar que uma tal previsão genérica possa abarcar uma ação prevista em lei especial, sem paralelo com as demais que são da competência dos Juízos de Família e Menores, por ser instrumental para a instrução do procedimento de aquisição de nacionalidade, instaurada contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público (um terceiro alheio à vivência e motivações familiares), de cuja causa de pedir não constam quaisquer factos relativos a um litígio familiar cuja resolução os autores (litisconsortes) pretendam e em que a vontade das partes é mesmo ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela ação se pretende obter, o que, tudo ponderado, é justificação relevante para o tratamento especial que o legislador lhe deu e continua a dar, não a incluindo no âmbito da competência dos Juízos de Família e Menores.
Em suma, a previsão da alínea g) do n.º 1 do art.º 122.º da LOSJ, pela sua razão de ser, não abrange as ações de estado em apreço, que ultrapassam, do ponto de vista dos sujeitos processuais, “o seio da família”, com a demanda do Estado Português, representado pelo Ministério Público, para defesa do interesse público.
Diga-se, para terminar, que nos parece inaceitável convocar o princípio da interpretação conforme à Constituição em abono da tese sufragada na decisão recorrida. Efetivamente, a interpretação normativa que ora se defende também se mostra conforme à Constituição, não afrontando quaisquer princípios constitucionais, mormente o princípio da igualdade, estando os direitos previstos na lei, incluindo os atinentes à aquisição da nacionalidade, a ser exercitados no quadro legal definido na Lei da Nacionalidade e no respetivo Regulamento, em que está prevista a instauração uma ação judicial, que visa evitar a fraude no âmbito dos procedimentos atinentes à aquisição da nacionalidade.
Naturalmente, ao legislador caberá, se o entender preferível, no quadro da organização judiciária vigente, revogar/alterar a norma especial de atribuição de competência prevista no art.º 3.º, n.º 3, da LN, não se enjeitando, no plano do direito a constituir, que outra solução venha a ser adotada, porventura até com o alargamento da competência dos TAF, considerando a panóplia de ações que já são da sua competência, conforme previsto no Regulamento da Nacionalidade Portuguesa – veja-se o contencioso atinente à retificação, declaração de inexistência ou de nulidade e cancelamento dos registos nos termos do art.º 55.º, as ações judiciais para efeito de oposição à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade a que se referem os artigos 56.º a 60.º, a impugnação judicial de quaisquer atos (ou omissões) praticados no âmbito dos procedimentos de atribuição, aquisição ou perda da nacionalidade nos termos dos artigos 61.º a 63.º, e a ação sobre a perda ou manutenção da nacionalidade portuguesa nos casos de naturalização imposta por Estado estrangeiro da competência do Tribunal Central Administrativo Sul, conforme previsto no art.º 68.º, em linha com o art.º 32.º da Lei da Nacionalidade (cuja redação primitiva estabelecia a competência do Tribunal da Relação de Lisboa, tendo sido alterada precisamente pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17-04); a este propósito, veja-se, num recurso interposto de decisão da Sr.ª Conservadora dos Registos Centrais no âmbito de um procedimento de atribuição da nacionalidade portuguesa, o acórdão da Relação de Lisboa de 26-10-2021, proferido no proc. n.º 11813/20.7T8LSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt, com destaque para a seguinte passagem do respetivo sumário: “1.–No âmbito da Lei da Nacionalidade, o legislador optou por concentrar o contencioso da nacionalidade na esfera dos tribunais administrativos e fiscais, afastando-se do que se prescreve quanto aos demais procedimentos constantes do Cód. do Registo Civil; 2.–Assim, todas as questões relacionadas com as decisões e procedimentos para a atribuição, aquisição ou perda de nacionalidade portuguesa no âmbito da Lei da Nacionalidade são decididas, em sede de recurso, pelos tribunais administrativos e fiscais”. Sem olvidar que aos TAF cabe igualmente analisar a prova em diversas ações em que se discute da aplicação do regime relativo aos unidos de factos, como sejam as situações de responsabilidade civil em que tenha aplicação o art.º 496.º do CC, bem como casos atinentes a direitos consagrados no art.º 3.º, alíneas b), d), e) e g), da Lei n.º 7/2001, de 11-05; a título de exemplo, veja-se o acórdão do STA de 09-01-2020, no proc. n.º 01994/16.0BEPRT, disponível em www.dgsi.pt, em que a única questão suscitada era a de saber se dois cônjuges juridicamente divorciados podem, ainda assim, unir-se de facto por forma a que um deles beneficie das medidas protetivas dessa união no tocante à pensão de sobrevivência.
Em conclusão: a presente ação foi intentada ao abrigo do disposto no art.º 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, norma da qual resulta a atribuição de competência aos tribunais cíveis, ou seja, aos Juízos cíveis, para a “ação de estado” a intentar pelos (alegadamente) unidos de facto - interessados em que a nacionalidade portuguesa seja atribuída a um deles - contra o Estado Português; trata-se de norma especial introduzida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17-04, cuja redação se manteve inalterada, não obstante as sucessivas alterações da Lei da Nacionalidade, inexistindo preceito legal de cuja interpretação resulte uma intenção inequívoca do legislador na revogação daquela; em particular, não há que convocar a regra geral de atribuição de competência aos Juízos de família e menores constante do art.º 122.º, n.º 1, al. g), da LOSJ, pois estamos perante uma ação declarativa em matéria cível e não uma ação “relativa ao estado civil das pessoas e família”; ante a plena aplicação do referido art.º 3.º, n.º 3, em conjugação com o art.º 130.º da LOSJ, resulta que o Juízo local cível (que é um juízo de competência especializada) é, no atual sistema judiciário, o tribunal competente, em razão da matéria, para julgar a presente ação.
Assim, procedem as conclusões da alegação de recurso, ao qual será concedido provimento, com a revogação da decisão recorrida.

Os Apelantes, pelo proveito obtido, são responsáveis pelas custas do seu recurso (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC), mas nada mais é devido pelos Autores para além da taxa de justiça que já pagaram e o Ministério Público beneficia de isenção legal, nos termos do art.º 4.º, n.º 1, al. a), do RCP.

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III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se conceder provimento a ambos os recursos e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, decidindo-se, em substituição, julgar competente o Tribunal recorrido e determinar que aí prossigam os autos a sua normal tramitação.
Não são devidas custas pelos Autores-Apelantes, para além da taxa de justiça que já pagaram, nem pelo Ministério Público, que está isento.

D.N.
Lisboa, 04-04-2024
Laurinda Gemas
Rute Sobral
Paulo Fernandes da Silva