Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
689/20.4T8CSC-B.L1-2
Relator: ANTÓNIO MOREIRA
Descritores: BENS PRÓPRIOS
PROCESSO DE INVENTÁRIO
PARTILHA
RELAÇÃO DE BENS
CRÉDITO ENTRE CÔNJUGES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 - Os bens próprios de cada um dos ex-cônjuges, ainda que correspondam a valores em dinheiro, a saldos de depósitos bancários, ou a outros activos de natureza financeira, não passam a assumir a natureza de créditos do ex-cônjuge titular sobre o ex-cônjuge detentor dos mesmos, pela circunstância de se encontrarem nessa situação de detenção por este último.
2 - Estando reconhecida a existência de uma quantia que corresponde a um bem próprio de um ex-cônjuge, e que se encontra na detenção do outro, a primeira operação da partilha em sede de inventário judicial consiste na sua entrega ao ex‑cônjuge titular da mesma, e não havendo tal bem próprio que integrar a relação de bens, porque desta devem constar os bens comuns existentes à data em que se consideram cessadas as relações patrimoniais conjugais, após prévia separação dos bens próprios de cada um dos ex-cônjuges.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

Em 6/3/2018 BB requereu a abertura de inventário notarial, para partilha dos bens comuns do ex-casal por si formado com AA.
Tendo o requerido sido nomeado cabeça de casal, e tendo requerido prorrogação de prazo para a apresentação da relação de bens, a requerente veio opor-se a tal prorrogação, com fundamento na existência de dois arrolamentos, a determinar o conhecimento, pelo requerido, dos bens a relacionar e a correspondente desnecessidade da prorrogação requerida.
A requerente juntou certidões dos procedimentos cautelares de arrolamento.
O requerido apresentou escusa do cargo de cabeça de casal, a qual foi admitida, tendo a requerente sido nomeada como cabeça de casal.
Em 22/2/2019 a requerente apresentou relação de bens, constando no item B) da mesma (com a epígrafe “Relação de bens que a cabeça de casal não considera comuns, mas próprios de cada um dos cônjuges, não obstante se encontram nos imóveis comuns ou titulados em nome de ambos os cônjuges ou apenas de um dos cônjuges”) o ponto 1.1. (com a epígrafe “Disponibilidades financeiras herdadas por BB”), aí estando relacionadas 52 verbas, com o valor global de €1.536.094,87, e bem ainda o ponto 1.2. (com a epígrafe “Bens adquiridos com os citados dinheiros próprios da requerente constantes das verbas anteriores de 1 a 51 (art.º 1723º al c) do Código Civil), mas registados em nome de ambos os cônjuges ou apenas em nome do cônjuge marido), aí estando relacionadas 13 verbas, com o valor global de €1.536.094,87.
Na reclamação que apresentou a tal relação de bens o requerido veio concluir, para além do mais, que “ficando desde já impugnada toda a relação constante do citado ponto 1.2 do ponto 1 da alínea B), o ora requerente entende que apenas deve ser relacionado como crédito da cabeça‑de-casal a ser pago pelo acervo objecto das alíneas a) a g) supra a quantia de €1.348.251,00 que é o total das verbas que se não impugnam constantes do ponto 1.1 do ponto 1 daquela alínea B)”.
A requerimento do requerido o inventário foi remetido ao tribunal de primeira instância, nos termos do nº 2 do art.º 12º da Lei 117/2019, de 13/9, aí passando a ser tramitado como inventário judicial.
Já no tribunal de primeira instância a cabeça de casal apresentou em 27/11/2020 resposta à reclamação à relação de bens, aí concluindo, para além do mais, que “Sendo aceite por ambas as partes que estes consubstanciam bens próprios da Requerente, devem ser, de imediato, entregues a esta os bens móveis e valores acima referidos e conforme vem discriminado na alínea B pontos 1.1., 1.2. e 1.3 da Relação de Bens, requerendo-se que seja ordenada a entrega, imediata, desses bens e valores cuja propriedade exclusiva da Requerente é aceite pelo Requerido”.
Em 5/4/2022 a cabeça de casal apresentou requerimento em que renova o pedido de entrega dos bens móveis e valores, nos termos formulados em 27/11/2020.
Em resposta (requerimento de 27/4/2022) o requerido pronuncia-se pelo indeferimento da pretendida entrega, sustentado, em síntese, que:
. Foi constituído depositário dos bens móveis no âmbito de um dos procedimentos cautelares de arrolamento, assim se devendo manter enquanto o inventário não cessar, pelo que não se justifica a pretendida entrega de tais bens móveis;
. Quanto à identificada quantia de €1.348.251,00, na reclamação que apresentou não considerou a mesma como bem próprio da cabeça de casal, mas como crédito da mesma, a ser pago nos termos indicados na mesma reclamação à relação de bens, nada justificando que a cabeça de casal escolha como é que tal quantia lhe deve ser entregue, enquanto a relação de bens não se mostrar estabilizada e não estiver decidido se se trata de um crédito ou de bem próprio da cabeça de casal.
Em 20/11/2022 foi proferido o seguinte despacho:
Atento o teor dos requerimentos apresentados pelas partes, parece-nos de toda a utilidade determinar a realização da audiência prévia prevista no art.º 1109.º do Código de Processo Civil, com vista a resolver algumas das questões controvertidas, nomeadamente proceder-se à estabilização da relação de bens, para que o inventário possa prosseguir.
Assim, e para o efeito, designo o dia 6 de Fevereiro de 2023, às 09:30h.
Até lá, as partes podem e devem proceder à entrega recíproca de bens que reconheçam ser bens próprios do outro”.
Em 6/2/2023 teve lugar a audiência prévia convocada, aí resultando infrutífera a conciliação tentada entre as partes.
Nessa audiência prévia a cabeça de casal renovou o seu pedido de entrega da quantia de €1.348.251,00, tendo o requerido renovado a sua oposição a tal pretensão, concluindo que “porque os montantes referidos nas al. a) e g) [do ponto 1º da reclamação à relação de bens] já não correspondem à verdade, quando houve levantamento de várias daquelas quantias por parte de um e outro, incluindo os juros, não é possível satisfazer, o requerido a pretensão ora formulada pela requerente, havendo por isso de apurar quais as quantias movimentadas e recebidas quer de capital quer de juros”.
Relativamente a tal questão foi então proferido o seguinte despacho, na mesma audiência prévia:
Relativamente ao segundo requerimento, atendendo ao teor da resposta do apresentada pelo Ilustre Mandatário do interessado e uma vez que este afirma haver necessidade de anteriormente a tomar essa decisão, aferir da actualidade dos montantes que se encontravam identificados nas al. a) e g), impõe-se que as partes afiram no prazo de 15 dias quais os montantes que realmente existem por reporte a essas al. a) e g) e informar o tribunal se em função de os montantes apurados o interessado (…) está disponível para aceitar que o valor peticionado pela cabeça de casal e que esta identifica como bem próprio, e que aquele identifica como direito de crédito da cabeça de casal, em relação ao património, se este dá o seu consentimento para que tal valor seja adiantado à cabeça de casal, sem prejuízo de o mesmo constar do mapa da partilha, no caso de se vir a comprovar ser bem comum, e não próprio.
No caso de não entrar nada sobre o acordo relativamente a tal bem, abra-me conclusão para proferir decisão sobre este requerimento em concreto, bem como, para nos pronunciarmos relativamente ao prosseguimento dos autos”.
Tendo a cabeça de casal e o requerido expressado a falta de acordo sobre a entrega da quantia de €1.348.251,00, em 29/10/2023 foi proferido despacho com o seguinte teor:
Decorrido todo este tempo, constatamos que se mantém o litígio relativamente à entrega à Cabeça-de-Casal, da quantia de €1.348.251,00.
A Cabeça de Casal mantém ser bem próprio seu.
O Interessado alega que tal valor corresponde a um crédito da Cabeça-Casal, invocando para o efeito:
“concluiu que apenas podia ser relacionado como crédito da mesma a ser pago pelo acervo objecto das alíneas a) e b) do ponto 5. da reclamação a dita quantia de €1.348.251,00.
O ora requerente não manifestou disponibilidade para fazer entrega daquele montante à cabeça‑de-casal, não estando estabilizada a relação de bens, nomeadamente se aquele montante não será necessário para compensação entre o património comum e o património próprio de qualquer um dos cônjuges.
Nos termos do art.º 1689.º n.º 1 do Código Civil, cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes recebem os seus bens próprios e a sua meação do património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.
Ora, não estando sequer ainda apurado o património comum, bem como aquilo que a cabeça‑de-casal retirou daquele património, não é possível proceder à compensação respectiva sobre tal património, o que impede que lhe seja entregue a aludida quantia.
Insiste-se, consequentemente, - como se expôs na reclamação à relação de bens, - que o aludido montante seja apenas relacionado como crédito da cabeça-de-casal a ser pago pelo património comum.”
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A esse requerimento, a Cabeça de Casal respondeu:
“1. No citado requerimento, o Interessado vem pedir a não disponibilização à cabeça-de-casal da quantia de €1.348.251,00 ou de qualquer outra quantia, apesar de reconhecer que a cabeça de casal tem direito a que lhe seja reconhecido um crédito daquele valor - por se tratar de um bem próprio desta - a ser pago pelo acervo dos bens comuns.
2. Na verdade, retira-se, claramente, entre o mais, dos presentes autos:
2.1. O divórcio entre os Interessados foi decretado por sentença transitada em julgado em 02/10/2017;
2.2. O Interessado AA ficou na posse dos bens comuns do casal e da maioria dos bens próprios da cabeça de casal, incluindo imóveis, bens móveis, depósitos bancários, valores mobiliários, certificados de aforro e do tesouro, cadernetas e extractos bancários, documentos entregues na Autoridade Tributária e outros entidades públicas e privadas, etc;
2.3. De então para cá, mostra-se sistemático e persistente o comportamento do Interessado AA, no sentido de impedir tudo o que possa significar uso ou fruição dos bens próprios ou comuns por parte da ora Requerente;
2.4. Apenas, em 27/02/2023, foi possível à cabeça de casal recuperar os seus bens móveis próprios que ficaram retidos na casa morada de família do dissolvido casal que, embora seja um bem comum, está a ser exclusivamente utilizado pelo Interessado AA;
2.5. Todos os bens móveis comuns se mantêm, exclusivamente, na disposição do Interessado AA, com excepção da fracção autónoma sita no Algarve que é utilizada por ambos;
2.6. O atrevimento do ex-marido chegou ao ponto de registar em seu nome, em certificados de aforro e do tesouro, o montante da herança recebida dos pais da cabeça de casal, embora não tenha tido a coragem de, em juízo, negar a evidência, de que se trata de bens próprios dela a quantia de €1.348.251,00;
2.7. Ainda assim, não se coíbe, abusivamente, de considerar tais bens como crédito da cabeça de casal a ser pago pelos bens comuns;
2.8. A ora requerente vive em casa arrendada, paga rendas elevadas, vive apenas do seu ordenado, quando tem direito a receber a quantia de €1.348.251,00, além da sua meação nos bens comuns;
2.9. O Interessado AA vive numa fracção autónoma que é um bem comum, não paga renda até à data da outorga da partilha e tem a disponibilidade e uso exclusivo de todos os bens móveis comuns ali existentes;
2.10. Não é, por isso, admissível, por consubstanciar abuso de direito e grave injustiça, o pedido pelo Interessado AA, no requerimento a que se responde;
2.11. Ou seja, que a Interessada tenha de continuar, indefinidamente, à espera de poder usar e fruir dos seus bens próprios - €1.348.251,00 - enquanto o Interessado AA conseguir alimentar as intermináveis discussões sobre os bens comuns que, sem qualquer fundamento, pretende protelar;
2.12. É óbvio que os bens comuns por partilhar (quantias monetárias, móveis e imóveis) suportam qualquer dívida que qualquer dos cônjuges possa invocar contra o outro;
2.13. Não fazendo qualquer sentido a retenção dos bens próprios da Interessada, para garantia de qualquer espécie de dívida;
2.14. Não há dívidas do casal perante terceiros.”
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Da análise dos autos, resulta que a CC há muito que pede que lhe seja entregue tal quantia, por ser sua, uma vez que lhe adveio de herança e quantias que lhe foram doadas pelos seus ascendentes – art.º 1722.º, als. b) e c) do Código Civil.
Mais invoca que sendo proprietária de tal quantia, não pode dispor da mesma, nem de qualquer imóvel comum, tendo de estar a pagar uma renda, pela casa onde se encontra a residir, enquanto o Interessado permanece a residir naquela que foi a Casa de morada de família, sem pagar qualquer valor à CC.
Resulta também que o Interessado não nega a origem de tal valor e que a CC é a proprietária do mesmo. O que o Interessado tem, é receio, de que sendo entregue tal valor à CC, que depois já não existam bens suficientes para lhe pagar a ele, valores que este possa vir a ter a receber, ainda que não concretize tais valores.
Ora, os bens próprios de cada um dos cônjuges, não devem figurar numa relação de bens comuns, como forma de garantir à posteriori, a liquidez necessária para o pagamento de créditos entre cônjuges.
Impõe-se ter presente o disposto no art.º 1689.º, n.º 3 do Código Civil, segundo o qual:
“Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor.”
Ora, no caso dos autos, não faltam bens comuns, nomeadamente imóveis. Pelo que, mesmo que a CC tenha movimentado qualquer quantia de qualquer conta do casal, o valor da meação dos bens, dará para que esta pague àquele qualquer montante que tenha movido.
Acresce que, tendo sido efectuados arrolamentos, é possível saber que valores existiam nas contas em 25 de Novembro de 2016, data em que cessaram as relações patrimoniais.
Mas, também desde já se refere que mesmo que não se tivessem efectuado os arrolamentos, que quando se está perante produtos financeiros, sejam eles depósitos, certificados de aforro, fundos de investimentos, etc., é sempre possível saber quais os valores que existiam por reporte a uma data específica, pelo que, é sempre possível, refazer o percurso do dinheiro e aferir quanto é que existia em cada momento.
Pelo que, mesmo que CC tenha retirado qualquer valor de qualquer conta, o mesmo sempre será objecto de contabilização à data de 25 de Novembro de 2019, para efeito de aferição do património comum.
Pelo exposto, a entrega de um bem próprio à CC, cuja propriedade não se pode considerar litigiosa, pela forma como o Interessado se posicionou nos autos relativamente a tal quantia, isto é, a entrega à mesma do seu dinheiro no valor de €1.348.251,00, não faz perigar a entrega que esta, no futuro, possa ter de fazer ao Interessado de qualquer quantia.
Note-se que mesmo que o Interessado tenha um qualquer crédito sobre a CC, este sempre será pago pela meação do património comum da CC, sendo que o valor dos bens comuns será seguramente suficiente para o efeito.
Acresce que, estamos perante uma relação de bens, em que não há qualquer passivo, pelo que, as contas sempre serão feitas apenas e tão-só entre a CC e o Interessado.
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Pelo exposto, determino que a referida quantia seja entregue à CC, porquanto se trata de bem próprio seu, nos moldes em que esta o requereu.
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Notifique.
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Decorrido que foi todo este período temporal, e em face das cadernetas que recebeu do Interessado e tendo podido peticionar os outros elementos bancários, junto das respectivas entidades bancárias, impõe-se que, a CC, apresente, no prazo de 30 dias, Relação de Bens corrigida e expurgada daquilo que são os seus bens próprios, bem como do que são os bens próprio do Interessado.
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Para Conferência de Interessados, designo o dia 6 de Fevereiro de 2024, às 13:30h, devendo até lá, as partes acompanhadas pelos seus Ilustres Mandatários, tentarem, no interesse dos próprios, chegar a acordo em relação a outros bens que queiram desde já expurgar ou atribuir/adjudicar entre si, por forma ao bom andamento dos presentes autos de inventário”.
O requerido recorre deste despacho, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
a) Sendo um dos fundamentos da reclamação apresentada pelo recorrente contra a relação de bens o de que a quantia de € 1.348.251,00, bem próprio da interessada cabeça-de-casal, deve ser relacionada como crédito da mesma a ser pago pelo acervo comum do ex-casal, não podia a Mmª Juíza a quo, sem que qualquer prova incidental fosse produzida, determinar a entrega da mesma, pura e simplesmente, àquela;
b) E não foi, aliás, produzida qualquer prova da indicada pelas partes relativamente a qualquer um dos objectos da reclamação;
c) A decisão recorrida pronunciou-se, pois, sobre uma questão de que na fase processual em que se encontrava o incidente não lhe era lícito conhecer ou, por outro lado, deixou de tomar conhecimento das demais questões suscitadas no âmbito incidental, padecendo, em qualquer um dos casos, da nulidade prevista na alínea d) do nº 1 do art.º 615º do CPC que constitui fundamento do presente recurso nos termos do nº 4 do mesmo artigo;
d) Face ao disposto no nº 1 do art.º 1689º do Código Civil encimado sob a epígrafe “Partilha do casal. Pagamento de dívidas.”, cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património, não podem os bens próprios de qualquer um dos ex-cônjuges deixar de ser relacionados no inventário para partilha;
e) E invocando-se que um determinado bem próprio constitui crédito de um deles sobre o património comum, por força do nº 3 do mesmo art.º 1689º, como tal não pode deixar de ser relacionado;
f) Assim, não podia a decisão recorrida fazer expurgar da relação de bens os bens próprios de qualquer um dos cônjuges como, em consequência, não podia, antes de produzida qualquer prova a propósito, determinar a entrega pelo recorrente da referida quantia de €1.348.251,00 à cabeça-de-casal;
g) Imputa-se, consequentemente, à decisão recorrida a violação, por erro de interpretação e de aplicação, do disposto nos nºs 1 e 3 do art.º 1689º do Código Civil, a interpretar e a aplicar conforme sustentado na presente alegação e respectivas conclusões;
h) Porém, a entender-se que os bens próprios de qualquer um dos cônjuges não devem constar da relação de bens do inventário de partilha, este processo não constitui meio processual adequado para determinar a entrega de um bem próprio a um dos interessados por parte do outro interessado devendo, assim, querendo, recorrer à acção declarativa comum;
i) Ao determinar aquela entrega, e na hipótese supra aludida, também a decisão recorrida padece da já referida nulidade da alínea d) do nº 1 do art.º 615º do CPC – conhecimento de questão de que não podia conhecer – que igualmente se deixa invocada à cautela como fundamento desta apelação;
j) Face a todo o exposto, o presente recurso não poderá deixar de merecer provimento com a consequente revogação da decisão apelada.
Pela cabeça de casal foi apresentada alegação de resposta, aí pugnando pela improcedência do recurso.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem-se com:
. A nulidade do despacho, por omissão e excesso de pronúncia;
. A qualificação de bens próprios da cabeça de casal como créditos da mesma sobre o requerido, e a correspondente necessidade de relacionação dos mesmos, para os efeitos do disposto no nº 3 do art.º 1689º do Código Civil.
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A factualidade com relevo para o conhecimento do objecto do presente recurso é a que decorre das ocorrências e dinâmica processual expostas no relatório que antecede.
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Das nulidades do despacho
Segundo a al. d) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil a sentença é nula quando aí deixe de ser apreciada questão que devesse ser apreciada, ou quando se conheça de questões de que não se podia tomar conhecimento. E tal regime estende-se aos despachos, com as necessárias adaptações, face ao disposto no nº 3 do art.º 613º do Código de Processo Civil.
Com efeito, decorre do art.º 608º do Código de Processo Civil que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não podendo ocupar-se senão dessas questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras questões.
A este respeito importa recordar que, como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 737), existe “uma frequente confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou mesmo entre a omissão de pronúncia (relativamente a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento dos muitos que florescem nas alegações de recurso”.
Mais explicam tais autores (pág. 738) que “é pacífica a jurisprudência de que o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas, e bem assim as questões de conhecimento oficioso, mas que não obriga a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com “questões” (STJ 27‑3-14, 555/2002)”.
Do mesmo modo, explica Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, volume II) que “devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe estão submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe caiba conhecer (art.º 660º/2), o não conhecimento do pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade (…)”.
No caso concreto sustenta o requerido que apresentou reclamação contra a relação de bens, com apresentação das provas respectivas, e nenhuma delas foi produzida, designadamente no que respeita ao fundamento por si apresentado para sustentar que “a quantia de €1.348.251,00, bem próprio da interessada cabeça‑de‑casal deve ser relacionada como crédito da mesma a ser pago pelo acervo comum do ex-casal”. Pelo que entende que o tribunal recorrido não podia conhecer dessa questão sem a produção da prova indicada, o que configura excesso de pronúncia, por violação do princípio do contraditório, aqui na sua dimensão do direito à prova.
No seu acórdão nº 86/88 (relatado por Messias Bento e disponível www.tribunalconstitucional.pt) o Tribunal Constitucional afirmou que o “direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos é, entre o mais, um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder «deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras» (…)”.
Assim, o princípio do contraditório encerra em si a “garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio” (José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil - Conceitos e Princípios Gerais à Luz do Código Revisto, 1996, pág. 96), o que inclui, naturalmente, o direito a participar na demonstração dos factos relevantes à decisão da causa que se apresentem como controvertidos e carecidos de prova.
E se se está perante prova constituenda (como é a tomada de declarações às partes e a tomada de depoimentos às testemunhas arroladas), a não realização das diligências de inquirição corresponde, neste caso, à omissão da prática de um acto processual que a lei prescreve, a qual produz nulidade na medida em que tal omissão tenha influência no exame ou na decisão da causa (art.º 195º do Código de Processo Civil).
Por outro lado, e como explica António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 25-26), “sempre que o juiz, ao proferir alguma decisão, se abstenha de apreciar uma situação irregular ou omita uma formalidade imposta por lei, a parte interessada deve reagir através da interposição de recurso sustentado na nulidade da própria decisão, nos termos do art.º 615º, nº 1, al. d). Afinal, designadamente quando a sentença traduza para a parte uma verdadeira decisão‑surpresa (não precedida do contraditório imposto pelo art.º 3º, nº 3), a mesma nem sequer dispôs da possibilidade de arguir a nulidade processual correspondente à omissão do acto, pelo que o recurso constitui a via ajustada a recompor a situação, integrando-se no seu objecto a arguição daquela nulidade”.
Delimitada assim conceptualmente a violação do princípio do contraditório que conduz a uma decisão que não podia ser proferida, com a consequente nulidade da mesma por excesso de pronúncia, a ser arguida em sede do respectivo recurso, importa densificar tal conceito com respeito ao caso concreto.
Assim, na reclamação à relação de bens que apresentou, o requerido reconheceu (ponto 24.) a existência de verbas no valor global de €1.348.251,00, identificadas na relação de bens como bens próprios da cabeça de casal, por corresponderem a “disponibilidades financeiras herdadas”, e admitindo expressamente que não impugnava tal valor, mas entendia que devia o montante em questão ser relacionado como crédito da cabeça de casal para ser pago pelos bens comuns do ex-casal. Aliás, a posição do requerido, nesta parte, mantém-se imutável, já que na conclusão a) do recurso refere-se expressamente à quantia de €1.348.251,00 como “bem próprio da interessada cabeça‑de‑casal”, mas devendo ser “relacionada como crédito da mesma a ser pago pelo acervo comum do ex-casal”.
Ou seja, tal como o requerido delimitou a reclamação à relação de bens, nesta parte, não se tornava necessário produzir qualquer prova para determinar que a quantia em questão era bem próprio da cabeça de casal, pois foi aceite pelo mesmo requerido que tal quantia adveio à cabeça de casal por sucessão (sendo o regime de bens do casamento o da comunhão de adquiridos). E quanto à questão suscitada pelo requerido na reclamação à relação de bens, no sentido de tal quantia dever ser relacionada como crédito da cabeça de casal, e não como bem próprio da mesma, torna-se evidente que não carecia de ser produzida qualquer prova sobre essa controvérsia, por não se tratar de uma controvérsia de facto, mas apenas de direito.
Pelo que, à face do disposto no nº 3 do art.º 1105º do Código de Processo Civil, essa questão podia ser decidida de imediato, sem precedência da produção da prova constituenda indicada pelo requerido.
Recuperando a doutrina de Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, volume III, 4ª edição, Coimbra, pág. 189-190), afirma este autor que se é “muito conveniente que a justiça seja pronta; (…) é muito mais conveniente que ela seja justa”, mais explicando que “a lei quer que certas questões se arrumem e liquidem no despacho saneador; isto em obediência ao princípio da celeridade e da economia processual. Mas não sacrificou a este princípio uma outra exigência, mais alta e mais preciosa: a da justiça da decisão”. E, na esteira desse entendimento, conclui o mesmo autor que “o mérito da causa será julgado no despacho saneador se a questão puder ser decidida neste momento com perfeita segurança, se o processo contiver todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa”, mais concluindo que “todas estas precauções se resumem num mandamento superior: a segurança não deve ser sacrificada à celeridade”, e concluindo ainda que “segurança, neste caso, quer dizer acerto e justiça. Julga com segurança o tribunal que só emite a sua decisão quando está de posse de todos os elementos necessários para proferir um veredictum consciencioso, ponderado e justo. Se o juiz, na ânsia de andar depressa, julgar uma questão que ainda não está devidamente instruída e amadurecida, sacrificará a justiça à rapidez”.
Reconduzindo tal doutrina ao caso concreto, com as necessárias adaptações, e tendo presente que a não produção da prova constituenda indicada pelo requerido não colocava em causa a segurança da decisão a tomar sobre esta concreta questão, da qualificação jurídica da quantia em apreço, como bem próprio da cabeça de casal ou como crédito da mesma a ser satisfeito pelos bens comuns do ex-casal, torna‑se evidente que o conhecimento imediato da mesma, desde logo em obediência ao princípio da celeridade, não corresponde a qualquer violação do princípio do contraditório, na sua dimensão do direito à prova, já que a questão em apreço podia (e devia) ter sido decidida no momento processual em que o foi.
O que equivale a concluir que, nesta parte, é de afastar a invocada nulidade do despacho recorrido por excesso de pronúncia.
Ainda no que ao excesso de pronúncia respeita, sustenta também o requerido que a entender-se (como se entendeu) que a referida quantia de €1.348.251,00 corresponde a um bem próprio da cabeça de casal e, por isso, não deve constar da relação de bens, o meio processual adequado para ser determinada a sua entrega à cabeça de casal não é o inventário, mas antes a acção declarativa comum através da qual a cabeça de casal invoque a titularidade dessa quantia e peça a sua entrega pelo requerido.
Importa não esquecer que a pretensão da cabeça de casal no sentido de lhe ser entregue a quantia em questão foi formulada na sequência da posição assumida pelo requerido na reclamação à relação de bens, onde, recorde-se, “entende que apenas deve ser relacionado como crédito da cabeça‑de-casal a ser pago pelo acervo objecto das alíneas a) a g) supra a quantia de €1.348.251,00 que é o total das verbas que se não impugnam constantes do ponto 1.1 do ponto 1 daquela alínea B)”.
E o requerido exerceu o contraditório relativamente a tal pretensão da cabeça de casal, concluindo pelo indeferimento da mesma porque “não se mostra (…) estabilizada a relação de bens, e nem mesmo que a aludida quantia de €1.348.251,00 deva ser relacionada como crédito da cabeça‑de‑casal ou se o pode ser autonomamente como bem próprio da mesma”.
Essa mesma posição foi reafirmada pelo requerido na audiência prévia realizada em 6/2/2023, agora argumentando que a movimentação superveniente de disponibilidades financeiras próprias e comuns, por ambas as partes, impossibilitava a entrega, nos termos requeridos, por haver que “apurar quais as quantias movimentadas e recebidas quer de capital quer de juros”.
E tendo nessa mesma audiência prévia sido anunciado pelo tribunal recorrido que ia “proferir decisão sobre este requerimento em concreto [o pedido de entrega da quantia de €1.348.251,00]”, não existiu da parte do requerido qualquer requerimento ou manifestação no sentido de não ser em sede de inventário que tal questão havia de ser conhecida.
Ou seja, não só se torna evidente que a questão da entrega da quantia de €1.348.251,00, enquanto bem próprio da cabeça de casal, foi configurada pelo tribunal recorrido como um incidente susceptível de ser tramitado no âmbito do inventário, como também o requerido assim o configurou, já que não veio, em momento algum até a mesma ser decidida, suscitar a questão da impropriedade do meio processual incidental utilizado.
E, nessa medida, quando o tribunal recorrido conheceu de tal questão da entrega, no âmbito do referido incidente tramitado nos autos do inventário judicial, não se pode afirmar que estava impedido de o fazer, não só porque as partes a configuraram como respeitando à definição dos seus direitos enquanto interessados directos na partilha, mas igualmente porque em momento algum invocaram que se tratava de questão que carecia de ser decidida fora do inventário, em sede de acção declarativa comum.
Pelo que, também por esta via não se verifica a invocada nulidade do despacho recorrido por excesso de pronúncia.
Já no que respeita à invocada omissão de pronúncia, sustenta o requerido que a mesma se verifica porque o tribunal recorrido não conheceu das demais questões suscitadas em sede de reclamação à relação de bens, limitando-se “oficiosamente – já que a cabeça-de-casal os havia relacionado – a entender que os bens próprios não devem ser relacionados acrescentando que, sendo própria a já referida quantia de €1.348.251,00, o ora recorrente dela devia fazer entrega à cabeça-de-casal”.
Recorde-se que a reclamação à relação de bens incidiu sobre a errada qualificação de bens comuns, por serem bens próprios (do requerido), e de bens próprios (da cabeça de casal), por serem créditos da mesma ou por serem bens comuns. Do mesmo modo, a reclamação incidiu sobre a falta de relacionação de disponibilidades financeiras da titularidade de terceiro (o filho do ex-casal), a par da falta de relacionação de um saldo bancário como bem comum.
Recorde-se igualmente que o inventário foi precedido de dois arrolamentos, um incidente sobre diversas disponibilidades financeiras, correspondentes a bens próprios da cabeça de casal, e o outro incidente sobre os bens móveis que compõem o recheio da casa de morada de família.
Estando-se perante arrolamentos requeridos e decretados nos termos do art.º 409º do Código de Processo Civil, daí resulta que o disposto no nº 2 do art.º 408º do Código de Processo Civil há-de ser interpretado no sentido de tais arrolamentos terem “como finalidade essencial garantir que tais bens existam no momento em que se efectue a partilha” (na expressão do acórdão de 25/11/1998 do Supremo Tribunal de Justiça, relatado por Pinto Monteiro e disponível em www.dgsi.pt, acompanhando a doutrina de Lopes Cardoso, in Partilhas Judiciais, III).
Ou seja, relativamente aos bens identificados nos dois autos de arrolamento, decorre da especial natureza dos procedimentos cautelares respectivos que a existência de tais bens, enquanto próprios da cabeça de casal (no caso daquele incidente sobre disponibilidades financeiras), e enquanto comuns do ex-casal (no caso daquele incidente sobre o recheio da casa de morada de família) está já determinada, para efeitos da sua consideração na relação de bens e na subsequente partilha.
Isso mesmo decorre da economia do despacho recorrido, quando aí se afirma que “tendo sido efectuados arrolamentos, é possível saber que valores existiam nas contas em 25 de Novembro de 2016, data em que cessaram as relações patrimoniais”.
Do mesmo modo, quando no despacho recorrido se sintetizam as posições das partes, no que respeita à qualificação dos bens próprios da cabeça de casal, por lhe terem advindo por sucessão, e se toma posição sobre a exclusão dos bens próprios da relação de bens (sejam da cabeça de casal, sejam do requerido), decidindo-se então que a relação de bens deve ser “corrigida e expurgada daquilo que são os seus bens próprios, bem como do que são os bens próprio do Interessado”, mais não se faz que cumprir o disposto no art.º 608º do Código de Processo Civil (devidamente adaptado à circunstância de se tratar da decisão sobre a relação de bens apresentada e respectiva reclamação à mesma), ainda que não haja pronúncia expressa sobre todos e cada um dos argumentos apresentados por cada uma das partes.
Ou seja, igualmente está afastada a invocada nulidade do despacho recorrido, por omissão de pronúncia.
Em suma, e no que respeita à nulidade do despacho recorrido, por excesso e omissão de pronúncia, improcedem as conclusões do recurso do requerido.
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Da necessidade de relacionação da quantia de €1.348.251,00, para os efeitos do disposto no nº 3 do art.º 1689º do Código Civil
Para impugnar o decidido quanto à entrega da quantia em questão pelo requerido à cabeça de casal, aquele sustenta a natureza do processo de inventário na sequência de divórcio, daí retirando que o mesmo se destina igualmente à “liquidação definitiva das responsabilidades entre os cônjuges” e bem ainda a liquidar as dívidas do casal, comunicáveis ou não, o que justifica que também os bens próprios de cada um dos ex‑cônjuges devam ser relacionados, como créditos sobre o outro, e só assim se cumprindo o disposto no art.º 1689º do Código Civil.
Torna-se evidente que a argumentação do requerido se apresenta ininteligível, por ambígua, já que tenta “transformar” bens próprios em créditos, através da utilização distinta de conceitos que a lei toma por indistintos.
Assim, e sendo o regime de bens do casamento o da comunhão de adquiridos, a par da existência de um património comum existe (ou pode existir) um património singular de cada um dos cônjuges. E tal património singular é integrado por todos aqueles bens enumerados nos art.º 1722º e 1723º do Código Civil, sendo que, como ensina Antunes Varela (Código Civil anotado, volume IV, 2ª edição revista e actualizada, 1992, pág. 422), “os bens, a que a lei se refere no presente caso, não são só as coisas de que o cônjuge seja proprietário, mas também os direitos reais de qualquer outra natureza e os direitos de crédito, tanto os que tenham por objecto uma prestação pecuniária, como os que incidam sobre prestação de natureza diferente”.
Do mesmo modo, e como se observa a partir do disposto nestes dois preceitos legais, a marca distintiva da propriedade singular de cada um dos cônjuges não parte de qualquer distinção entre o carácter corpóreo ou incorpóreo das situações activas singulares de cada cônjuge, mas antes da origem das mesmas.
Ou seja, o acervo de bens próprios de cada cônjuges tanto pode ser integrado por coisas com existência material, como por activos financeiros ou direitos de crédito sem expressão material, mas tão só documental.
Nessa medida, e tratando-se de bens que advieram ao cônjuge depois do casamento, por sucessão ou doação (al. b) do nº 1 do art.º 1722º do Código Civil), ou que foram sub-rogados no lugar de bens próprios, ou mesmo o preço de bens próprios alienados (al. a) e b) do art.º 1723º do Código Civil), está-se sempre perante bens próprios, ainda que se trate tão só de valores em dinheiro, e mesmo que mais não correspondam que a saldos de depósitos bancários, ou a outros activos de natureza financeira.
Nessa medida, não se pode afirmar, como parece pretender o requerido, que tais situações patrimoniais activas, estando na detenção do cônjuge que não é o seu titular, perdem a natureza de bens próprios do cônjuge seu titular, para passarem a corresponder a créditos desse cônjuge titular sobre o cônjuge detentor dos mesmos.
Por outro lado, e decorrendo do art.º 1688º do Código Civil a cessação das relações patrimoniais entre os cônjuges pela dissolução do casamento, emerge do nº 1 do art.º 1689º do Código Civil que cada um deles recebe os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo o que deve a este mesmo património comum. E havendo créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro, são os mesmos pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum, só respondendo os bens próprios do cônjuge devedor na falta ou insuficiência de bens comuns (nº 3 do mesmo art.º 1689º)
Como, mais uma vez, ensina Antunes Varela (Código Civil anotado, volume IV, 2ª edição revista e actualizada, 1992, pág. 322-323), “a partilha do casal desdobra-se em três operações distintas: a) a entrega dos bens próprios; b) a conferência das dívidas dos cônjuges à massa comum; c) a partilha dos bens comuns. As operações devem mesmo processar-se segundo a ordem por que acabam de ser discriminadas.
Primeiro, devem ser entregues a cada um dos cônjuges (…) os seus bens próprios.
Depois, cada um deles há-de conferir ao património comum o que lhe dever, em virtude dos pagamentos, que por esse património tenham sido efectuados, de dívidas da exclusiva responsabilidade do cônjuge devedor (art.º 1697º, nº 2) (…).
Feita a conferência dos bens devidos à massa comum, é o momento de proceder à divisão desta, entregando a cada um dos seus titulares a respectiva meação. A meação pode não ser igual a metade do património comum, por não serem forçosamente iguais as partes de cada um dos cônjuges (…)”.
Ou seja, e reconduzindo desde logo tais considerações ao caso concreto dos autos, não subsiste qualquer dúvida que a referida quantia de €1.348.251,00 corresponde a um bem próprio da cabeça de casal, porque reconhecidamente lhe adveio da herança deixada pelo seu pai.
E, nessa medida, a primeira operação da partilha passa pela sua entrega à cabeça de casal pelo requerido, tendo presente estar tal montante (ou os valores sub-rogados no lugar desse bem próprio) na detenção deste.
Ou seja, a circunstância de tal activo da titularidade exclusiva da cabeça de casal não estar na sua detenção não obsta a que o mesmo continue a ser considerado bem próprio da mesma, assim lhe devendo ser entregue pelo requerido, como consequência da extinção da comunhão conjugal.
E como a partilha carece de ser efectuada em sede de inventário judicial, é aqui que a entrega deve ser determinada, como ficou afirmado no despacho recorrido.
Neste mesmo sentido explicam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2020, pág. 628) que “o inventário visa pôr termo à comunhão de bens do casal, devendo o cabeça de casal relacionar os bens comuns existentes à data em que se consideram cessadas as relações patrimoniais entre os cônjuges, sendo previamente separados os bens próprios de cada um”.
Por outro lado, e no que respeita à necessidade de relacionação dos bens próprios, tendo presente o disposto no nº 3 do art.º 1689º do Código Civil, torna-se evidente o desacerto desta posição.
Com efeito, e como resulta de tudo o que já se disse, pelo inventário visa-se a partilha dos bens comuns do ex-casal, sendo que só depois da separação e entrega dos bens próprios de cada um dos ex-cônjuges é que há lugar ao apuramento desse património comum. O que significa que a relação de bens deve compreender os bens comuns, mas já não os bens próprios de cada um dos ex-cônjuges.
Acresce que, no caso concreto, a justificação apresentada pelo requerido para sustentar a necessidade de relacionação daquele montante de €1.348.251,00, da titularidade singular da cabeça de casal, não faz qualquer sentido.
Com efeito, tornava-se desde logo necessário que o requerido tivesse afirmado a existência de um crédito do qual fosse titular e que tivesse por devedora a cabeça de casal. Ora, o único crédito repetidamente afirmado pelo requerido é, na sua perspectiva, de sinal contrário, pois que seria aquele correspondente ao referido montante de €1.348.251,00, da titularidade da cabeça de casal e de que o requerido seria o devedor.
E em momento algum o requerido reclamou da existência de um crédito sobre a cabeça de casal, e menos ainda se consegue retirar da sua reclamação que a meação da cabeça de casal nos bens comuns tenha uma expressão pecuniária inferior ao (inexistente) crédito, só podendo o mesmo ser ressarcido desse (inexistente) crédito nos termos da parte final do nº 3 do art.º 1689º do Código Civil.
Em suma, face à improcedência das conclusões do recurso do requerido, também nesta parte, não há que fazer qualquer censura ao despacho recorrido, quando qualificou a referida quantia de € 1.348.251,00 como bem próprio da cabeça de casal e recusou a sua relacionação, a par dos demais bens próprios da mesma e do requerido, apenas aceitando a relacionação dos bens comuns do ex-casal.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente.

4 de Abril de 2024
António Moreira
Orlando Nascimento
Higina Castelo