Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3465/23.9T9SNT.L1-9
Relator: FERNANDA SINTRA AMARAL
Descritores: REPARAÇÃO DO ILÍCITO CONTRAORDENACIONAL
ATENUANTE
ERRO SOBRE A PROIBIÇÃO
NEGLIGÊNCIA
ERRO NÃO CENSURÁVEL
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NULIDADE DA SENTENÇA
Sumário: (da responsabilidade da relatora):
I. No que concerne à rectificação do ilícito contra-ordenacional imediatamente após a fiscalização, tal circunstância apenas pode relevar em sede de determinação da medida concreta da pena, servindo de atenuante, enquanto conduta posterior aos factos, destinada a reparar o ilícito, mas não pode, de forma alguma, ser valorada para fundamentar o afastamento da culpa.
II. Em caso de contra-ordenação, existindo um erro sobre a proibição, nos termos do art.º 8.º do regime geral das contra-ordenações, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27/10, existe necessariamente falta de consciência da ilicitude do facto, nos termos do art.º 9.º do mesmo diploma, mas, se a conduta for punível a título de negligência, como ressalvado no n.º 3 daquela primeira norma, a mesma só se tem por excluída se o erro não for censurável, nos termos do n.º 1 da segunda norma.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
I.1 Nos autos de Recurso de Contraordenação com o nº 3465/23.9T9SNT, que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em que é arguida AA, melhor identificada nos autos, foi proferida sentença, na qual se decidiu [transcrição]:
“(…)
Decisão
Pelo exposto, decido revogar a decisão impugnada e, em consequência, absolver a arguida das contra-ordenações de que vinha acusada.
*
Sem custas.
Registe e notifique.
Comunique à respetiva autoridade administrativa - artigo 70º., nº. 4, do Regime Geral das Contraordenações.
Deposite.
(…)”
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I.2 Recurso da decisão final
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respectiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“(…)
Conclusões
1- O Tribunal deu como assentes os factos da forma supra descrita, tendo em consideração a prova produzida em audiência e aquela documental junta aos autos, as quais foram apreciadas livremente, de acordo com as regras da lógica, da racionalidade e da experiência.
2- Assim, foram desde logo atendidas as declarações prestadas pelo representante legal da arguida, o qual confirmou ser seu sócio e o gerente único e descreveu a atividade que exerce na respetiva oficina automóvel; confrontado com as fotografias tiradas aquando da fiscalização confirmou que retratam o que ali foi visto pelas autoridades, mas explicou que os resíduos se encontram ali devidamente separados e acondicionados, em conformidade com as indicações que sempre lhe foram dadas com uma empresa que lhe presta assessoria em matéria ambiental; esclareceu, no que respeita aos bidons que se encontram no exterior (fls. 21), que os mesmos se encontram debaixo do telheiro que ali se mostra retratado, localização que sempre considerou ser a suficiente, não só por se encontrar protegida das condições climatéricas, como por estar em conformidade com as indicações que a referida empresa lhes deu e que controla a oficina de forma regular.
3- BB explicou, ainda, que as fichas de segurança das substâncias perigosas que produz e manuseia não lhe foram logo solicitadas pela PSP, motivo pelo qual apenas as remeteu após a sua expressa notificação para o efeito.
4- Pelo exposto, reiterou não ter praticado as infrações que lhe foram apontadas pela autoridade administrativa, à exceção da garantia financeira/seguro ambiental, por se tratar de uma exigência que desconhecia, mas que retificou imediatamente após a fiscalização.
5- As suas declarações encontraram sustentação no testemunho de CC, sua funcionária administrativa, a qual descreveu que a empresa sempre cumpriu as indicações que a empresa ...que contrataram lhes dava em matéria de tratamento de resíduos, cuja gestão também está assegurada; por sua vez, as testemunhas DD, EE e FF, Agentes da PSP que participaram na fiscalização, também não limitaram-se a descrever o que viram nas passagens dos autos que lhes foram exibidas na audiência, o que não foi suficiente para colocar em crise as explicações do representante da arguida.
6- Também a prova documental constante do processo corroborou o relato de BB, em concreto as fichas de segurança de fls. 14 a 20 remetidas; o contrato com a empresa ... de fls. 39 a 40; e o seguro ambiental de fls. 36 a 38;
7- Perante os factos provados e não provados, e olhando ainda à profissão de bate-chapa do seu sócio-gerente, entendeu-se, quanto à culpa da arguida, que BB – seu líder e, por isso, quem atuou em sua representação, desconhecia a situação de incumprimento em que se encontrava e diligenciou conforme era capaz para respeitar as obrigações legais impostas em matéria ambiental – veja-se que a empresa se mostra inscrita na plataforma do SIRER; contratou empresas especializadas nesta matéria que a assessoram; possuía as fichas de segurança das substâncias perigosas que manuseava; e, quanto à omitida garantia financeira – a única que admitiu desconhecer ser obrigatória e, estar, assim, a ser incumprida – diligenciou de imediato pelo seu cumprimento após a fiscalização; por esse motivo, assim se deu como não provada a sua violação de deveres de cuidado.
8- Nos termos do artº 15º do Cód. Penal:
- «Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a)- Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b)- Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.»
9- Quanto, à reposição da situação em momento posterior à pratica do facto de natureza contra-ordenacional, não pode aniquilar a existência do facto punível, não o pode apagar, fazer tabua rasa, sobre a análise da conduta do arguido sobre o facto punível.
10 - O arguido era bate chapas, montou um negócio de oficina de automóveis e, portanto, era –lhe exigível tomar todas as providencias junto das autoridades competentes para que fosse informado do que necessário para que o referido negócio que além do mais era o seu modo de vida, funcionasse de acordo com as regras impostas pelo Estado Português. Era o exigível, de acordo com as regras da experiência e da normalidade e daí a sua violação do dever de cuidado, e em consequência a punição da sua conduta como negligente.
11- E nem o acordo com a empresa ..., e a ... a qual a primeira procede à recolha dos óleos usados que, por aquela, são produzidos e no âmbito do qual, assumiu o compromisso de os armazenar e separar de forma adequada, e a segunda que presta acessória em matéria ambiental, o pode excluir da responsabilidade contra-ordenacional.
12- Com efeito o documento analisado e constante de fls 39 apenas refere no seu conteúdo como relevante que existiu um protocolo de colaboração do produtor de óleo usado que se limita a recolher o óleo lubrificante usado pelo produtor desde que esteja dentro das especificações que indica no documento.
13- Mais, o documento refere ainda que o produtor de óleos lubrificantes é legalmente responsável pela correcta armazenagem de acordo com as boas praticas ambientais vigentes e entrega ao circuito de recolha de óleos usados. E ainda dele consta que o produtor de óleos lubrificantes usados no cumprimento do Dec lei 153/ 2003 de 11.07, comprometendo-se a não misturar nos óleos quaisquer produtos. Por último os depósitos e locais de armazenamento de óleos usados terão de permitir a sua recolha por aspiração para o camião cisterna em condições de segurança.
14- E o mesmo se diga em relação à contratação de uma empresa que lhes indicava a forma de agir em matéria ambiental. O relatado e visionado pelas autoridades competentes, na fiscalização permite concluir que independentemente da celebração do contrato com as referidas empresas, não se pode considerar transferida a responsabilidade de actuação do autor dos factos. O suposto aconselhamento não exclui a responsabilidade individual do arguido, não exclui a conduta do produtor dos óleos nos termos do que a lei o impõe, e até o contrato o definia, porque esta responsabilidade é individual. E de acordo com as regras da experiência comum, dado o cenário verificado pelas autoridades em total desconformidade com o que a lei impõe é de concluir que o arguido podia e devia ter agido de outra forma.
16- Quanto à violação do não cumprimento da obrigação de não reunir e manter a informação nos termos do artigo 36º do Regulamento da CE nº 1907/2006 de Parlamento Europeu, tal como consta como consta do seu artigo 36º o seu titular deve disponibilizar de imediato a referida informação, o que não ocorreu no acto de fiscalização, tal como consta do auto de noticia, que deu origem, e que a demais prova não pode por em crise.
17- Aqui mais uma vez, o arguido tinha o referido conhecimento, e estava em condições de ter agido de outra forma.
18- Em termos de critério do homem comum, aquela que não escapa a observação de um homem de formação média, sendo o arguido além do mais bate-chapas e portanto de formação de no ramo de negocio de oficinas, era previsível a verificação dos factos ilícitos como possíveis, e por incúria e ou desleixo acreditou na sua não verificação, não tendo tomado as providências necessárias para a sua não verificação.
19- Pelo exposto a decisão recorrida enferma da violação do artigo 410º nº 2 c) do C.P.P., uma vez que a sua apreciação probatória é contra as regras da experiência comum, e em consequência em violação do artigo 15º a) do C.P..
20 – Resulta por isso que a douta sentença padece do vício a que alude o artigo 410º nº 2 c) do Código de Processo Penal, porque escapa às regras da experiência comum e observação de um homem médio.
21 -, A decisão deve ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela totalidade das contra-ordenações de que se encontrava acusado.
No entanto Vossas Excelências Farão como for de Lei e Justiça
(…)”
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O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido em 14 de Janeiro de 2024, com os efeitos de subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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I.3 Resposta ao recurso
Efectuada a legal notificação, a arguida respondeu ao recurso interposto pelo Ministério Público, pugnando pela sua improcedência apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
“(…)
Conclusões.
1.ª
Tal como acima se tentou demonstrar, a R. decisão “sub judice”, não padece do vicio que lhe vem apontado.
2ª.
A decisão proferida, é uma decisão justa e ajustada aos factos provados e não provados.
3ª.
Não ocorrendo, no caso, o vicio de qualquer erro notório na apreciação da prova.
4ª.
Pelo que, se entende que o recurso deverá ser rejeitado.
Ad cautelam,
5ª.
Considerando que:
a) Foi imputado à Arguida, a título de negligência, a prática de quatro contraordenações ambientais.
b) Tendo em vista o acima exposto, e se deu como provado, a arguida não praticou factos típicos das contraordenações mencionadas nas alíneas “b, c e d” do relatório.
c) Que, tal como acima se referiu e se deu como provado, a Arguida não tem averbado no seu cadastro, qualquer registo de anteriores condenações.
d) O comportamento que vem imputado a arguida, não causou qualquer perigo para a saúde ou ambiente.
e) Prova disso esta no facto da atuante não ter aplicado à Arguida qualquer sanção acessória;
f) Os factos provados referidos no relatório, justificam:
i. A manutenção da R. decisão recorrida.
Ad, cautelam
ii. Sem prejuízo de que, à luz do disposto no artigo 20.º A da “LQCA”, sempre seria de ordenar em caso de alteração da decisão, a suspensão da execução total da coima única aplicada, à semelhança do decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05.11.2018, cujo núcleo fundamental de facto e do direito, é exatamente o mesmo.
Na rejeição do recurso, farão V. Exªs,
J U S T I Ç A
(…).”
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I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição da Digna Magistrada do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido da procedência do recurso.
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I.5 Resposta
Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao sobredito parecer, pelo arguido, que, em síntese, renovou todas as considerações já tecidas na sua peça recursiva.
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I.6 Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
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II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ1], e da doutrina2, são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal ad quem, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal3, relativas a vícios que devem resultar directamente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito), ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do C.P.P.).
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II.2- Apreciação do recurso
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, a questão decidenda a apreciar é a seguinte:
- se a sentença recorrida padece do vício do erro notório na apreciação da prova, a que alude o artigo 410º, nº 2, c), do Código de Processo Penal, uma vez que a sua apreciação probatória é contra as regras da experiência comum, e em violação do artigo 15º, a), do C.P., devendo, em consequência, ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela totalidade das contra-ordenações de que se encontrava acusado.
Vejamos.
II.3 - Da decisão recorrida [transcrição]:
“ (…)
Relatório
AA, arguida nos presentes autos, veio impugnar judicialmente a decisão administrativa de fls. 100. e seguintes dos autos, através do recurso constante de fls. 64 e seguintes dos autos, o qual foi admitido.
Nessa decisão, a recorrente foi condenada numa coima única de €24.000, 00 (vinte e quatro mil euros), acrescida de custas no valor de €75,00 (setenta e cinco euros) pela prática, a título negligente, de:
a) uma contra-ordenação ambiental muito grave prevista e punida pelos artigos 22.º e 26.º, n.º 1, alínea f), do Decreto-Lei n.º 147/2008, de 29/07, por inexistência de seguro/garantia financeira relativos à responsabilidade ambiental, na coima de €12.000,00;
b) uma contra-ordenação ambiental grave prevista e punida pelo artigo 36.º, do Regulamento (CE) n.º 1907/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho de 18/12 e alínea u), do n.º 2, do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 293/2009, de 13/10, por incumprimento da obrigação de reunir, manter disponível e disponibilizar a informação aí descrita (relativa a substâncias perigosas), na coima de €6.000,00;
c) uma contra-ordenação ambiental grave prevista e punida pelo n.º 1 do artigo 21 - A.º e alínea g), do n.º 2 do artigo 67.º, Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, por recolha e transporte de resíduos perigosos em violação do disposto no n.º 1 do artigo 21.º-A (norma que impõe a sua realização em condições que assegurem a proteção do ambiente e da saúde nos termos do artigo 6.º, observando medidas de garantia da rastreabilidade desde a produção até ao destino final), na coima de €12.000,00;
d) uma contra-ordenação ambiental leve prevista e punida pelo n.º 4 do artigo 7.º e alínea a), do n.º 3, do artigo 67.º, do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, por incumprimento da obrigação de separar na origem os resíduos, por forma à sua valorização, na coima de €2.000,00;
*
Em sede de recurso, veio a arguida negar a prática das contra-ordenações graves e leve que lhe foram imputadas, pugnando pela absolvição da sua prática e, quanto à contra-ordenação muito grave, requerer a suspensão da coima aplicada, por verificação dos respetivos pressupostos.
Juntou documentos e arrolou testemunhas em sua defesa.
*
A instância mantém-se válida.
II. Decisão da matéria de facto
A. Factos provados
Da prova produzida, com interesse para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia 23 de abril de 2019, pelas 16h55, a PSP realizou uma fiscalização no estabelecimento da arguida, sito na ....
2. O estabelecimento estava aberto ao público e a laborar, aí desenvolvendo a arguida a atividade de manutenção e reparação de veículos automóveis.
3. No local estava BB, sócio gerente da entidade exploradora do estabelecimento.
4. No interior do estabelecimento são produzidos resíduos, designadamente: resíduos de tintas e vernizes contendo solventes ou outras substâncias perigosas; óleo usado; filtros de óleo; absorventes e panos contaminados; embalagens contaminadas com resíduos de substâncias perigosas, nomeadamente embalagens metálicas e plásticas contaminadas, embalagens de metal, incluindo recipientes vazios sob pressão, plástico, metais ferrosos, metais não ferrosos, catalisadores usados contendo ouro, prata, rénio, ródio, paládio, irídio ou platina.
5. A deposição e separação dos resíduos não estava a ser feita por fluxos e fileiras, havia contaminação dos restantes resíduos, uma vez que não se encontravam em recipientes isolados, havendo mistura de resíduos, embalagens de metal, incluindo recipientes vazios sob pressão com metais ferrosos, havendo ainda óleo usado e plástico armazenados no exterior das instalações, sujeitos às condições climatéricas.
6. A arguida procede ao armazenamento e à utilização de embalagens metálicas e plásticas, bem como embalagens e metal, incluindo recipientes sob pressão contendo produtos e substâncias perigosas, designadamente embalagens de sprays, óleos, diluentes e tintas de uso profissional.
7. A lavagem do pavimento interior do estabelecimento é feita com recurso a um balde e uma esfregona, sendo a água contaminada despejada nas instalações sanitárias, não existindo equipamento de separação de hidrocarbonetos de águas residuais oleosas ou de areias e lamas.
8. Não foi apresentado pedido ou licença de envio de águas industriais/residuais para o sistema de águas urbanas.
9. A atividade da arguida encontra-se inscrita no SIRER.
10. À data da fiscalização a arguida não dispunha de garantia financeira ou seguro de responsabilidade ambiental.
*
Mais se provou que:
11. A arguida tem, desde novembro de 2014, um acordo com a empresa ..., a qual procede à recolha dos óleos usados que, por aquela, são produzidos e no âmbito do qual, assumiu o compromisso de os armazenar e separar de forma adequada.
12. Contratou, também, uma empresa denominada ...” que lhe presta assessoria em matéria ambiental e realiza visitas anuais ao seu estabelecimento, em que lhe transmite os procedimentos a adotar.
13. A arguida é detentora de licença de utilização da atividade que exerce, a qual foi emitida em 17.11.2000, pela autarquia.
14. A arguida apresentou as fichas de segurança das substâncias perigosas que manuseia e produz.
15. Em 18.08.2019 (após a fiscalização) a arguida celebrou seguro de responsabilidade civil ambiental.
16. O sócio-gerente da arguida é bate-chapa, encontra-se de baixa e aufere, por mês, cerca de €850,00.
B. Factos não provados:
A. A arguida agiu sem a diligência necessária e de que era capaz.
*
C. Fundamentação
O Tribunal deu como assentes os factos da forma supra descrita, tendo em consideração a prova produzida em audiência e aquela documental junta aos autos, as quais foram apreciadas livremente, de acordo com as regras da lógica, da racionalidade e da experiência.
Assim, foram desde logo atendidas as declarações prestadas pelo representante legal da arguida, o qual confirmou ser seu sócio e o gerente único e descreveu a atividade que exerce na respetiva oficina automóvel; confrontado com as fotografias tiradas aquando da fiscalização confirmou que retratam o que ali foi visto pelas autoridades, mas explicou que os resíduos se encontram ali devidamente separados e acondicionados, em conformidade com as indicações que sempre lhe foram dadas com uma empresa que lhe presta assessoria em matéria ambiental; esclareceu, no que respeita aos bidons que se encontram no exterior (fls. 21), que os mesmos se encontram debaixo do telheiro que ali se mostra retratado, localização que sempre considerou ser a suficiente, não só por se encontrar protegida das condições climatéricas, como por estar em conformidade com as indicações que a referida empresa lhes deu e que controla a oficina de forma regular.
BB explicou, ainda, que as fichas de segurança das substâncias perigosas que produz e manuseia não lhe foram logo solicitadas pela PSP, motivo pelo qual apenas as remeteu após a sua expressa notificação para o efeito.
Pelo exposto, reiterou não ter praticado as infrações que lhe foram apontadas pela autoridade administrativa, à exceção da garantia financeira/seguro ambiental, por se tratar de uma exigência que desconhecia, mas que retificou imediatamente após a fiscalização.
As suas declarações encontraram sustentação no testemunho de CC, sua funcionária administrativa, a qual descreveu que a empresa sempre cumpriu as indicações que a empresa ...” que contrataram lhes dava em matéria de tratamento de resíduos, cuja gestão também está assegurada; por sua vez, as testemunhas DD, EE e FF, Agentes da PSP que participaram na fiscalização, também não limitaram-se a descrever o que viram nas passagens dos autos que lhes foram exibidas na audiência, o que não foi suficiente para colocar em crise as explicações do representante da arguida.
Também a prova documental constante do processo corroborou o relato de BB, em concreto as fichas de segurança de fls. 14 a 20 remetidas; o contrato com a empresa ... de fls. 39 a 40; e o seguro ambiental de fls. 36 a 38;
Perante os factos provados e não provados, e olhando ainda à profissão de bate-chapa do seu sócio-gerente, entendeu-se, quanto à culpa da arguida, que BB – seu líder e, por isso, quem atuou em sua representação, desconhecia a situação de incumprimento em que se encontrava e diligenciou conforme era capaz para respeitar as obrigações legais impostas em matéria ambiental – veja-se que a empresa se mostra inscrita na plataforma do SIRER; contratou empresas especializadas nesta matéria que a assessoram; possuía as fichas de segurança das substâncias perigosas que manuseava; e, quanto à omitida garantia financeira – a única que admitiu desconhecer ser obrigatória e, estar, assim, a ser incumprida – diligenciou de imediato pelo seu cumprimento após a fiscalização; por esse motivo, assim se deu como não provada a sua violação de deveres de cuidado.
Fixados os factos, passemos ao seu enquadramento jurídico.
*
III. Do Direito
Enquadramento jurídico
A recorrente foi condenada pela prática, a título negligente, de:
a) uma contra-ordenação ambiental muito grave prevista e punida pelos artigos 22.º e 26.º, n.º 1, alínea f), do Decreto-Lei n.º 147/2008, de 29/07, por inexistência de seguro/garantia financeira relativos à responsabilidade ambiental, na coima de €12.000,00;
b) uma contra-ordenação ambiental grave prevista e punida pelo artigo 36.º, do Regulamento (CE) n.º 1907/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho de 18/12 e alínea u), do n.º 2, do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 293/2009, de 13/10, por incumprimento da obrigação de reunir, manter disponível e disponibilizar a informação aí descrita (relativa a substâncias perigosas), na coima de €6.000,00;
c) uma contra-ordenação ambiental grave prevista e punida pelo n.º 1 do artigo 21 - A.º e alínea g), do n.º 2 do artigo 67.º, Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, por recolha e transporte de resíduos perigosos em violação do disposto no n.º 1 do artigo 21.º-A (norma que impõe a sua realização em condições que assegurem a proteção do ambiente e da saúde nos termos do artigo 6.º, observando medidas de garantia da rastreabilidade desde a produção até ao destino final), na coima de €12.000,00;
d) uma contra-ordenação ambiental leve prevista e punida pelo n.º 4 do artigo 7.º e alínea a), do n.º 3, do artigo 67.º, do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, por incumprimento da obrigação de separar na origem os resíduos, por forma à sua valorização, na coima de €2.000,00;
*
Ora, em face da matéria provada e não provada não se mostram preenchidos os elementos típicos objetivos e subjetivos da contra-ordenação imputada à arguida em b). Por sua vez, no que respeita às restantes infrações, não estão preenchidos os elementos típicos subjetivos, tendo-se entendido que a arguida não agiu com falta de zelo e diligência.
(…)”
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II.4- Apreciemos, então, a questão a decidir.
II.4.1- Considerações gerais
Veio o recorrente Ministério Público invocar que a sentença recorrida padece do vício do erro notório na apreciação da prova, a que alude o artigo 410º, nº 2, c), do Código de Processo Penal.
Em matéria de arguição dos vícios formais que se encontram previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal (de conhecimento oficioso), também designados de vícios decisórios, devem os mesmos resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento4. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário. São, tais vícios, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova (als. a), b) e c), do nº 2, do citado art.º 412º, do CPP.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não com a falta de prova para a decisão da matéria de facto provada[10].
Trata-se de uma insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, de um “vício de confecção da matéria de facto”, (…) impeditivo de bem se decidir, tanto no plano objectivo como subjectivo, o julgador quedou –se por uma investigação lacunar, deixou de indagar factos essenciais à decisão de direito, figurando na acusação, defesa ou resultantes da decisão da causa, impedindo de bem decidir no plano do direito, comprometendo a conclusão final do silogismo judiciário”.[11]
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal, consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. O que ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Finalmente, o erro notório na apreciação da prova, vício previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis.
Trata-se de um erro de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.
“Com a invocação do vício de erro notório questiona-se, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o tribunal valorizou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados ou então quando da decisão se extrai de modo óbvio que optou por decidir, na dúvida, contra o arguido”.
Resumindo, “o erro notório traduz-se, basicamente, em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando determinado facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo”.
Tal erro já não se verifica se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vício.
Importa, porém, não esquecer, quando a este vício – erro notório na apreciação da prova – que, salvo no caso de prova vinculada, o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, tal como o dispõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Rege, pois, o princípio da livre apreciação da prova, significando este princípio, por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova [salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial] e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal.
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada, sempre sem esquecer que a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável.
Por fim, relembre-se, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detectar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
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II.4.2- - Apreciando o caso concreto
Como vimos, veio o recorrente Ministério Público alegar que a sentença recorrida padece do vício do erro notório na apreciação da prova, a que alude o artigo 410º, nº 2, c), do Código de Processo Penal, uma vez que a sua apreciação probatória é contra as regras da experiência comum, e em violação do artigo 15º, a), do C.P., devendo, em consequência, ser revogada e substituída por outra que condene o arguido pela totalidade das contra-ordenações de que se encontrava acusado.
Cumpre apreciar.
Revisitando a decisão recorrida, da leitura da mesma decorre, que o Tribunal a quo fundamentou a matéria de facto nos moldes seguintes:“(…) foram desde logo atendidas as declarações prestadas pelo representante legal da arguida, o qual confirmou ser seu sócio e o gerente único e descreveu a atividade que exerce na respetiva oficina automóvel; confrontado com as fotografias tiradas aquando da fiscalização confirmou que retratam o que ali foi visto pelas autoridades, mas explicou que os resíduos se encontram ali devidamente separados e acondicionados, em conformidade com as indicações que sempre lhe foram dadas com uma empresa que lhe presta assessoria em matéria ambiental; esclareceu, no que respeita aos bidons que se encontram no exterior (fls. 21), que os mesmos se encontram debaixo do telheiro que ali se mostra retratado, localização que sempre considerou ser a suficiente, não só por se encontrar protegida das condições climatéricas, como por estar em conformidade com as indicações que a referida empresa lhes deu e que controla a oficina de forma regular.
BB explicou, ainda, que as fichas de segurança das substâncias perigosas que produz e manuseia não lhe foram logo solicitadas pela PSP, motivo pelo qual apenas as remeteu após a sua expressa notificação para o efeito.
Pelo exposto, reiterou não ter praticado as infrações que lhe foram apontadas pela autoridade administrativa, à exceção da garantia financeira/seguro ambiental, por se tratar de uma exigência que desconhecia, mas que retificou imediatamente após a fiscalização.
As suas declarações encontraram sustentação no testemunho de CC, sua funcionária administrativa, a qual descreveu que a empresa sempre cumpriu as indicações que a empresa ...” que contrataram lhes dava em matéria de tratamento de resíduos, cuja gestão também está assegurada; por sua vez, as testemunhas DD, EE e FF, Agentes da PSP que participaram na fiscalização, também não limitaram-se a descrever o que viram nas passagens dos autos que lhes foram exibidas na audiência, o que não foi suficiente para colocar em crise as explicações do representante da arguida.
Também a prova documental constante do processo corroborou o relato de BB, em concreto as fichas de segurança de fls. 14 a 20 remetidas; o contrato com a empresa ... de fls. 39 a 40; e o seguro ambiental de fls. 36 a 38;
Perante os factos provados e não provados, e olhando ainda à profissão de bate-chapa do seu sócio-gerente, entendeu-se, quanto à culpa da arguida, que BB – seu líder e, por isso, quem atuou em sua representação, desconhecia a situação de incumprimento em que se encontrava e diligenciou conforme era capaz para respeitar as obrigações legais impostas em matéria ambiental – veja-se que a empresa se mostra inscrita na plataforma do SIRER; contratou empresas especializadas nesta matéria que a assessoram; possuía as fichas de segurança das substâncias perigosas que manuseava; e, quanto à omitida garantia financeira – a única que admitiu desconhecer ser obrigatória e, estar, assim, a ser incumprida – diligenciou de imediato pelo seu cumprimento após a fiscalização; por esse motivo, assim se deu como não provada a sua violação de deveres de cuidado.
(…)”
Ora, analisado o texto da decisão recorrida, ressalta, desde logo, à evidência, e antes de qualquer outra enfermidade jurídica, a sua nulidade por falta de fundamentação.
Senão vejamos.
Prevê o artigo 379.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, “nulidade da sentença”, e no que ao caso interessa, que:
«1 - É nula a sentença:
a. Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b. Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c. Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
(…)».
O citado artigo 379º estabelece um regime específico das nulidades da sentença.
Assim, de acordo com as três alíneas do seu nº 1, é nula a sentença penal quando, não contenha as menções previstas no nº 2 e na alínea b) do nº 3 do art.º 374º, quando condene por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, fora dos casos previstos nos arts. 358º e 359º, e quando o tribunal omita pronúncia ou exceda pronúncia.
Sendo a sentença o acto decisório do juiz por excelência, dispõe o nº 2, do art.º 374º do CPP o seguinte:
Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”.
O dever de fundamentação das decisões judiciais é hoje um imperativo constitucional, dispondo o art.º 205º, nº 1, da Lei Fundamental que, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
A fundamentação deve conter as razões da bondade da decisão, permitindo que ela se imponha, dentro e fora do processo, sendo uma exigência da sua total transparência já que através dela se faculta aos respectivos destinatários e à comunidade, a compreensão dos juízos de valor e de apreciação levados a cabo pelo julgador.
Para além disso, é ainda através da fundamentação da sentença que é viabilizado o controlo da actividade decisória pelo tribunal de recurso designadamente, no que respeita à validade da prova, à sua valoração, e à impugnação da matéria de facto.
Na lei ordinária o dever de fundamentação encontra-se genericamente consagrado no art.º 97º, nº 5, do C. Processo Penal – os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
A fundamentação da sentença penal, como decorre desta norma, é composta por duas vertentes: uma delas consiste na enumeração dos factos provados e não provados e outra consiste na exposição, concisa, mas completa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que contribuíram para a formação da convicção do tribunal.
Consiste, pois, tal fundamentação, na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão.
As decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz (Cfr. Germano Marques da Silva, "Curso de processo penal", III, pág. 289).
No que tange à enumeração dos factos provados e dos factos não provados, mais não é do que a narração de forma metódica, dos factos que resultaram provados e dos factos que não resultaram provados, com referência aos que constavam da acusação ou da pronúncia, da contestação, e do pedido de indemnização, e ainda dos factos provados que, com relevo para a decisão, e não constando de nenhuma daquelas peças processuais, resultaram da discussão da causa. É esta enumeração de factos que permite concluir se o tribunal conheceu ou não, de todas as questões de facto que constituíam o objecto do processo.
Já relativamente à exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, trata-se de enunciar de forma concisa as provas que serviram para fundar a convicção alcançada pelo tribunal – sem que tal tenha de passar no que tange à prova por declarações pela assentada dos depoimentos produzidos em audiência – bem como de proceder a uma análise crítica de tais provas.
Esta análise crítica deve consistir na explicitação do processo de formação da convicção do julgador, concretizada na indicação das razões pelas quais, e em que medida, determinado meio de prova ou determinados meios de prova, foram valorados num certo sentido e outros não o foram, ou seja, a explicação dos motivos que levaram o tribunal a considerar certos meios de prova como idóneos e/ou credíveis e a considerar outros meios de prova como inidóneos e/ou não credíveis, e, ainda, na exposição e explicação dos critérios, lógicos e racionais, utilizados na apreciação efectuada (neste sentido, Ac. da Relação de Lisboa, de 18/1/2011, em que foi Relator o Juiz Desembargador Vasques Osório).
Volvendo-nos ao caso concreto, como vimos, a sociedade arguida, através da sentença recorrida, foi absolvida da decisão administrativa que a condenara pela prática, a título negligente, de:
a) uma contra-ordenação ambiental muito grave prevista e punida pelos artigos 22.º e 26.º, n.º 1, alínea f), do Decreto-Lei n.º 147/2008, de 29/07, por inexistência de seguro/garantia financeira relativos à responsabilidade ambiental, na coima de €12.000,00;
b) uma contra-ordenação ambiental grave prevista e punida pelo artigo 36.º, do Regulamento (CE) n.º 1907/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho de 18/12 e alínea u), do n.º 2, do artigo 11.º do Decreto-Lei n.º 293/2009, de 13/10, por incumprimento da obrigação de reunir, manter disponível e disponibilizar a informação aí descrita (relativa a substâncias perigosas), na coima de €6.000,00;
c) uma contra-ordenação ambiental grave prevista e punida pelo n.º 1 do artigo 21 - A.º e alínea g), do n.º 2 do artigo 67.º, Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, por recolha e transporte de resíduos perigosos em violação do disposto no n.º 1 do artigo 21.º-A (norma que impõe a sua realização em condições que assegurem a proteção do ambiente e da saúde nos termos do artigo 6.º, observando medidas de garantia da rastreabilidade desde a produção até ao destino final), na coima de €12.000,00;
d) uma contra-ordenação ambiental leve prevista e punida pelo n.º 4 do artigo 7.º e alínea a), do n.º 3, do artigo 67.º, do Decreto-Lei n.º 178/2006, de 5 de Setembro, por incumprimento da obrigação de separar na origem os resíduos, por forma à sua valorização, na coima de €2.000,00.
Dispõe o art.º 15º do Código Penal, sob a epígrafe “Negligência”, que:
«Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.»
O tipo de crime negligente e a qualificação da conduta negligente incluem, como elemento base, o desvalor de acção, com a infracção de dever objectivo de cuidado, a que podem acrescer a previsibilidade, a cognoscibilidade e a evitabilidade do resultado. A violação do dever de cuidado, ou a contrariedade ao cuidado devido, constitui o desvalor de acção.
O preenchimento da tipicidade objectiva do crime negligente exige, pois, a verificação dos seguintes requisitos: a) A existência de um dever objectivo de cuidado; b) Uma acção ou omissão objectivamente violadora daquele dever; c) Um resultado típico; d) A imputação objectiva do resultado ao agente por sua vez exige que a acção ou omissão violadora do dever objectivo de cuidado seja adequada à produção do resultado, que o resultado pudesse ser evitável pela conduta adequada à observância do dever objectivo de cuidado e, ainda que o resultado caia no âmbito de protecção da norma.
Para se verificar o tipo de culpa inerente à negligência é necessário, assim, que se verifiquem três elementos: 1) A possibilidade de prever o perigo de realização do tipo; 2) A actuação que não observe o cuidado objectivamente requerido; 3) A produção do resultado típico.
É, assim, necessário que o agente tenha omitido um dever de cuidado, que se tivesse sido acatado, teria impedido a produção de um evento danoso em si previsível.
Existe previsibilidade quando o agente nas circunstâncias em que se encontrava podia, tendo em conta as circunstâncias em que o evento se produziu, ter representado como possível o resultado ocorrido.
Assim sendo, em sede do tipo de culpa, a negligência pressupõe o não uso da diligência devida, segundo as circunstâncias em concreto, para evitar o resultado.
A negligência consiste, pois, em qualquer das suas modalidades, consciente e inconsciente na omissão de um dever objectivo de cuidado e de diligência: o dever de não confiar leviana ou precipitadamente na não produção do facto ou o dever de ter previsto tal facto e de ter tomado as diligências necessárias para o evitar.
Descendo à situação in casu, temos que a Mmª Juiz a quo, no âmbito da fundamentação da matéria de facto, limita-se a concluir [para dar como não provada a violação dos deveres de cuidado, por parte da arguida] que o seu representante legal desconhecia a situação de incumprimento em que se encontrava, porque o mesmo, para além de ser bate-chapas de profissão, contratou empresas que lhe prestavam serviços de assessoria nessa área.
Ora, uma tal fundamentação é manifestamente insuficiente para se considerar como não provado que o arguido agiu sem a diligência necessária e de que era capaz, relativamente às contra-ordenações por que foi condenado.
Não se percebe como é que o Tribunal recorrido concluiu naquele sentido, parecendo que ali chegou de forma automática, apenas na decorrência daquelas circunstâncias, sem uma explicação inequívoca e suficientemente explicativa que permita perceber-se a conclusão a que chegou.
O Tribunal recorrido também não examinou criticamente o conteúdo dos documentos juntos aos autos, mormente os contratos celebrados pela arguida, com aquelas empresas, de forma a perceber-se da justeza ou não da pretensão desta em escudar-se na celebração desses contratos, pretendendo, com eles, justificar o seu alegado desconhecimento da situação de incumprimento.
A fundamentação dos factos não responde a várias questões que se levantam, designadamente se tais empresas, por força dos contratos com as mesmas celebrados, é que ficaram incumbidas de diligenciar, em vez da arguida, pelo cumprimento das obrigações decorrente da legislação aplicável à sua actividade, em matéria ambiental? A arguida, a partir do momento em que contratou com tais empresas, já não teria que se preocupar mais com tais matérias, delegando tal cuidado naquelas? Tais empresas alguma vez comunicaram à arguida que toda a actividade desta estava a ser desenvolvida em total respeito ou cumprimento pelas obrigações legais, em matéria de legislação ambiental, que a levasse, por isso, a desconhecer que estava em incumprimento, relativamente às contraordenações em que foi condenada? Porque razão tal contratação de assessoria técnica levou o Mmº Juiz a concluir pelo desconhecimento, por parte da arguida, da situação de incumprimento em que se encontrava? Nada disto é explicado na fundamentação da matéria de facto, no sentido de permitir perceber-se uma tal conclusão, por parte do Tribunal recorrido.
Há, pois, aqui, desde logo, uma manifesta falta de fundamentação legal, o que constitui uma nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no art.º 379º, n.º 1, al. a) e 374º, nº 2, do Código Penal.
Por outro lado, fundamentou a Mmª Juiz a quo, quanto à contra-ordenação ambiental muito grave atinente à inexistência de seguro/garantia financeira relativos à responsabilidade ambiental, que o representante legal da arguida admitiu desconhecer ser a mesma obrigatória e, estar, assim, a ser incumprida, tendo diligenciado de imediato pelo seu cumprimento após a fiscalização, pelo que “por esse motivo, assim se deu como não provada a sua violação de deveres de cuidado”.
Desde logo, no que concerne à rectificação do ilícito contra-ordenacional imediatamente após a fiscalização, tal circunstância apenas poderia relevar em sede de determinação da medida concreta da pena, servindo de atenuante, enquanto conduta posterior aos factos, destinada a reparar o ilícito, mas não poderia, de forma alguma, ser valorada para fundamentar o afastamento da culpa.
Por outro lado, quanto a este ilícito contraordenacional, o Tribunal recorrido deu como provado, no seu ponto 10, que:
À data da fiscalização a arguida não dispunha de garantia financeira ou seguro de responsabilidade ambiental.”
Mais deu como provado, no seu ponto 15, que:
“Em 18.08.2019 (após a fiscalização) a arguida celebrou seguro de responsabilidade civil ambiental.”
E, como vimos, foi dado como não provado, sob a al. A (relativo a todos os ilícitos contraordenacionais), que:
“A arguida agiu sem a diligência necessária e de que era capaz.”
Ora, em sede de fundamentação de facto, lê-se assim no texto da decisão recorrida, a propósito das declarações de BB, representante legal da arguida:
“(…) reiterou não ter praticado as infrações que lhe foram apontadas pela autoridade administrativa, à exceção da garantia financeira/seguro ambiental, por se tratar de uma exigência que desconhecia, mas que retificou imediatamente após a fiscalização. (…)”
E mais ali se escreve, que:
“(…) quanto à omitida garantia financeira – a única que admitiu desconhecer ser obrigatória e, estar, assim, a ser incumprida – diligenciou de imediato pelo seu cumprimento após a fiscalização; por esse motivo, assim se deu como não provada a sua violação de deveres de cuidado.”
Portanto, a Mmª Juiz a quo, quanto a este ilícito contraordenacional, fundamentou a não prova da conduta negligente com base nas declarações do representante legal da arguida, no sentido de que desconhecia tal obrigação legal e que logo que soube, tratou de a cumprir.
O que vale por dizer que a arguida invocou um estado de erro sobre a ilicitude, que não foi, de todo, tratado pelo Tribunal recorrido.
Ora, em caso de contra-ordenação, existindo um erro sobre a proibição, nos termos do art.º 8.º do regime geral das contra-ordenações, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27/10, existe necessariamente falta de consciência da ilicitude do facto, nos termos do art.º 9.º do mesmo diploma, mas, se a conduta for punível a título de negligência, como ressalvado no n.º 3 daquela primeira norma, a mesma só se tem por excluída se o erro não for censurável, nos termos do n.º 1 da segunda norma.
In casu, como vimos, resultou provado que, à data da fiscalização, a arguida não dispunha de garantia financeira ou seguro de responsabilidade ambiental e que apenas celebrou o necessário seguro de responsabilidade civil ambiental, já após a fiscalização.
Porém, a Mmª Juiz a quo entendeu dar como não provado que a arguida agiu sem a diligência necessária e de que era capaz, após o representante legal da mesma ter referido que desconhecia a exigência da garantia financeira/seguro ambiental, mas que rectificou imediatamente após a fiscalização.
Não cuidou a Mmª Juiz a quo de indagar quanto à censurabilidade ou não censurabilidade do erro invocado pela arguida.
Sendo certo que, ainda que o representante legal da arguida tenha a “simples” profissão de bate-chapas, certo é também que isso não o impediu de constituir a sociedade arguida, sendo até o seu único sócio-gerente. Este, com o seu “know how” profissional, optou por explorar uma actividade lucrativa ligada ao ramo da reparação automóvel, tendo, assim e necessariamente, de se informar sobre as obrigações legais ao mesmo relacionadas. Assim, a alegada falta de consciência da ilicitude, parece-nos, com a única informação factual de que dispomos nos autos, só lhe pode ser censurável porque, ao levar a cabo a exploração de uma actividade lucrativa, devia ter-se informado previamente de todas as obrigações legais a que estava adstrito.
Como bem refere o recorrente Ministério Público, tendo o arguido montado um negócio de oficina de automóveis, era-lhe exigível tomar todas as providencias junto das autoridades competentes para que fosse informado do que era necessário para que o referido negócio funcionasse de acordo com as regras impostas pelo Estado Português. Era o exigível, de acordo com as regras da experiência e da normalidade e daí a sua violação do dever de cuidado, e em consequência a punição da sua conduta como negligente.
Ocorre que, sobre isto, o Tribunal recorrido nada disse. É que, tendo a arguida, quanto a este ilícito contraordenacional, alegado desconhecer tal obrigatoriedade, teria o Tribunal recorrido que analisar e apreciar a questão da invocada falta de consciência da ilicitude do facto, indagando sobre a censurabilidade ou não de tal erro, para, assim, fundamentar a sua decisão quanto à punibilidade (ou não) desta conduta da arguida, a título de negligência – veja-se, a propósito e ainda que relativamente a outra matéria contra-ordenacional, o Ac. da Relação de Guimarães, P. nº 367/17.1T8BRG.G1, Relatora Desembargadora Alda Martins, de 16/11/2017, in www.dgsi.pt.
Quando na decisão recorrida, concretamente na fundamentação de facto, se afirma que o arguido desconhecia o ilícito contraordenacional, sendo completamente omissa quanto ao enquadramento da situação no art.º 8º ou 9º do DL n.º 433/82, de 27/10, não se pronunciando quanto à censurabilidade de tal desconhecimento e à eventual punição pelo desconhecimento censurável, ou à não censurabilidade de tal desconhecimento, decidindo pelo desconhecimento não censurável, sendo que a análise de tais questões se impunha sendo de conhecimento oficioso, terá que se concluir que o Tribunal a quo deixou de se pronunciar quanto a questões que manifestamente devia ter apreciado, pelo que terá de ser considerada nula a sentença proferida, nos termos da alínea c), do nº 1, do artigo 379º do Código de Processo Penal, acima citado, a que é de conhecimento oficioso – veja-se, neste sentido, adaptadamente, o Acórdão da Relação de Lisboa, Relator Desembargador António Carneiro da Silva, P. nº 925/18.7TELSB.L1-9, datado de 28/10/2021, in www.dgsi.pt.
Compete ao Tribunal a quo suprir as apontadas nulidades da sentença – nº 2 do artigo 379º e nº 4 do artigo 414º, ambos do Código de Processo Penal.
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Fica, assim, prejudicada a análise do vício do erro notório na apreciação da prova, a que alude o artigo 410º, nº 2, c), do Código de Processo Penal, invocado pelo recorrente.
»
III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a) declarar a nulidade da sentença proferida nos autos, nos termos previstos no art.º 379º, nº 1, al. a), por referência ao art.º 374º, nº 2, e por omissão de pronúncia, nos termos da al. c), do nº 1, do citado artigo 379º, ambos os normativos do Código de Processo Penal;
b) determinar o suprimento de tais nulidades pelo Tribunal a quo, daí extraindo as necessárias consequências.
Sem custas.
Notifique nos termos legais.
»
Lisboa, 11 de Abril, de 2024
(O presente acórdão foi processado em computador pela relatora, sua primeira signatária, e integralmente revisto por si e pelas Exmas. Juízes Desembargadoras Adjuntas – art.º 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal - encontrando-se escrito de acordo com a antiga ortografia)
As Juízes Desembargadoras,
Fernanda Sintra Amaral
Cristina Santana
Ana Marisa Arnêdo
_______________________________________________________
1. Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de .../.../2010 e .../.../2010, in http://www.dgsi.pt.
2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, ..., 2015, pág.335; GG e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.
3. Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de .../.../1995, publicado no DR/I .../.../1995.
4. Cfr. HH, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e GG e II, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss..