Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3705/19.9T8FNC.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A deserção da instância decorre, nos termos do art.º 281.º, n.º 1, do CPC, da falta de impulso processual, por negligência das partes, decorridos mais de 6 meses, tratando-se de uma causa de extinção da instância [cf. art.º 277.º, al. c), do CPC] cuja razão de ser se prende com os princípios do dispositivo, da celeridade processual e da autorresponsabilidade das partes.
II - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, tal como previsto no art.º 3.º, n.º 3, do CPC. Mas quando da tramitação do processo já resultar objetivamente evidenciado que os autos ficaram a aguardar que a parte viesse praticar um ato de que dependia o normal andamento do processo, não há que notificá-las, de novo, para se pronunciarem especificamente a respeito de uma questão cujo conhecimento já estava, por assim dizer, “na calha”.
III - É o que sucede no caso dos autos, tendo sido proferido e notificado aos mandatários das partes o despacho que determinou a suspensão da instância em virtude do óbito do Autor [cf. artigos 269.º, n.º 1, al. a), e 276.º, n.º 1, al. a), do CPC]. Efetivamente, muito embora com a morte do mandante se verifique, em regra, a caducidade do mandato, fica ressalvada a manutenção dos seus efeitos quando dessa caducidade possam resultar prejuízos para o mandante ou seus herdeiros (cf. art.º 1175.º do CC), sendo de considerar que se está perante um caso de pós-eficácia das obrigações ou um dever decorrente do princípio geral da boa fé consagrado no art.º 762.º, n.º 2, do CC, ficando o mandatário obrigado a informar os herdeiros em termos tais que estes possam atuar em conformidade com os seus interesses.
IV - Como decorridos mais de seis meses após aquela notificação, nenhum dos ora identificados herdeiros do falecido Autor veio deduzir o referido incidente, em ordem a que fossem habilitados para, na posição deste último, prosseguir o processo, ou requerer fosse o que fosse em ordem à superação de eventual dificuldade prática, é de concluir - sem que tal constitua uma afronta aos princípios do processo equitativo e da tutela jurisdicional efetiva (artigo 20.º, n.º 4 da CRP) - que a paragem do processo se deveu à negligência dos herdeiros do falecido Autor, estando verificados todos os pressupostos da deserção.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO

HERANÇA JACENTE ABERTA POR ÓBITO DE A., interpôs o presente recurso de apelação da decisão que declarou deserta a instância, proferida na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, o referido A. intentou contra B., S.A. e a C. - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A..
Os autos tiveram início em 17-07-2019, com a apresentação de Petição Inicial, em que, com fundamento em responsabilidade civil por acidente de viação, o referido Autor peticionou a condenação das Rés no pagamento da quantia indemnizatória de 39.359,44€, acrescida de juros de mora, bem como de sanção pecuniária compulsória.
Cada uma das Rés apresentou a sua Contestação.
Foi proferido despacho saneador que absolveu da instância a Ré B., S.A., por ser parte ilegítima, bem como despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Foi realizado exame médico-legal ao Autor (cf. ofício de 27-05-2022) e designado o dia 06-02-2023 para realização da audiência de julgamento (data que veio a ser dada sem efeito).
Em 23-01-2023, o mandatário do Autor apresentou requerimento em que informou que o Autor tinha falecido e juntou cópia do assento de óbito.
Em 13-02-2023, foi proferido despacho com o seguinte teor (sublinhado nosso):
“Ref.: 5068435
Encontra-se junta aos autos a certidão de assento de óbito do autor A., que faleceu em 05.12.2022, no estado de casado.
Assim sendo, declaro suspensa a instância, em conformidade com o disposto no n.º 1 do art.º 270.º do Código de Processo Civil, até à notificação da decisão que considere habilitados os sucessores do falecido, nos termos previstos na al. a) do n.º 1 do art.º 269.º do mesmo diploma legal.
*
Notifique as partes (incluindo o Ilustre Mandatário do autor) para os termos previstos no n.º 1 do art.º 351.º do Código de Processo Civil, com expressa advertência dos termos e efeitos previstos no n.º 1 do art.º 281.º do mesmo diploma legal.
Notifique.”
Foram notificados os mandatários das partes (notificação elaborada em 15-02-2023).
Em 03-10-2023, foi proferido o Despacho (recorrido) com o seguinte teor:
“Da deserção da instância
Na decorrência do despacho antecedente, sem que se tenha verificado qualquer impulso processual tendente à habilitação de herdeiros do autor falecido, declaro a instância deserta e, por conseguinte, extinta, nos termos do disposto no artigo 281.º, n.º 1 e 277.º, alínea c), ambos do Código de Processo Civil.
Custas a cargo da herança aberta por óbito do autor (artigo 527.º, n.º 1 do supracitado diploma legal).
Notifique.”
É com esta decisão que a Apelante não se conforma, tendo nas conclusões da sua alegação recursória formulado as seguintes conclusões:
I A herança jacente aberta por óbito de A. é representada pelos herdeiros seguintes: D., sua esposa, no estado de viúva e cinco filhos, a saber: E., solteiro, maior, F., casada, G., casada, H., divorciada, I., divorciado, todos naturais da freguesia do Monte, concelho do Funchal, onde residem na (…), conforme resulta de uma certidão de casamento e de cinco certidões de nascimento que se protestam juntar e que só agora podem ser juntas atento o falecimento do autor e por só presentemente representarem a herança jacente de seu marido e pai, respectivamente.
II Ora, o autor A. faleceu e como tal não poder-lhe-ia ser assacada qualquer negligência em impulsionar o presente processo, pelo que a decisão ora recorrida ao sancionar a pseudo negligência do autor falecido comete erro de julgamento que aqui se invoca, tudo para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências.
III Por outro lado, com o falecimento do autor A. extinguiram- se os poderes forenses que o falecido tinha confiado ao ora mandatário, pelo que o Tribunal recorrido poderia e deveria ter procurado diligenciar pela identificação dos respectivos herdeiros e pela subsequente notificação (para o que poderia ordenar notificar os herdeiros do autor falecido na morada do autor falecido e existente no presente processo judicial) para que pudessem, querendo, vir representar a herança jacente que ocupa a posição processual do respectivo autor falecido, pelo que não o tendo feito o Tribunal ad quo praticou nulidade que ora se argui e de que ora se reclama, tudo com todas as legais consequências, e que por poder influir no exame e na decisão da causa fere de nulidade a decisão ora recorrida, o que aqui se invoca, tudo para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências.
IV É inconstitucional e constitui uma compressão intolerável dos direitos de defesa da herança jacente aberta por óbito de A. a interpretação, com violação do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa e do princípio da tutela jurisdicional efectiva, da norma do artigo 281.º, n.º 1 e da noma do artigo 277.º, alínea c), ambos do CPC, no sentido de sancionar a inexistente negligência do autor falecido em impulsionar o presente processo e em consequência declarar a instância deserta e extinta, inconstitucionalidade que aqui se invoca, tudo para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências.
V Por outro lado, a herança jacente aberta por óbito do autor A. não foi notificada para deduzir o incidente de habilitação de herdeiros, pelo que a decisão recorrida ao sancionar a não inexistente negligência da dita herança jacente comete erro de julgamento, que aqui se invoca, tudo com todas as legais consequências, pelo que a decisão ora recorrida constitui uma decisão surpresa e que não facultou a possibilidade do exercício de prévio contraditório por parte da dita herança jacente, razão pela qual a decisão recorrida é ferida de nulidade por decidir deserta e extinta a instância sem facultar o prévio exercício do contraditório à herança jacente do falecido autor o que configura a prática de acto que a lei não admite e que por influir no exame e na decisão da causa mostra-se ferida de nulidade que ora se argui e de que ora se reclama, tudo para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências.
VI É inconstitucional e constitui uma compressão intolerável dos direitos de defesa da herança jacente aberta por óbito de A. a interpretação, com violação do artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa e do princípio da tutela jurisdicional efectiva, da norma do artigo 281.º, n.º 1 e da noma do artigo 277.º, alínea c, ambos do CPC, no sentido de sancionar a inexistente negligência da herança jacente aberta por óbito do autor em impulsionar o presente processo judicial e em consequência declarar a instância deserta e extinta sem facultar previamente o exercício do contraditório à dita herança jacente, inconstitucionalidade que aqui se invoca, tudo para todos os efeitos legais, tudo com todas as legais consequências.
Terminou a Apelante requerendo que com a procedência do recurso sejam declaradas as nulidades, os erros de julgamento e as inconstitucionalidades invocadas, e revogada a decisão recorrida.
Não foi apresentada alegação de resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

***

II - FUNDAMENTAÇÃO

Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se a decisão recorrida é nula;
2.ª) Se não devia ter sido declarada a deserção da instância, por não se verificarem os respetivos pressupostos.

Da nulidade da decisão

Defende a Apelante que a decisão recorrida está ferida de nulidade: por julgar deserta a extinta a instância sem facultar o prévio exercício do contraditório à herança jacente do falecido Autor; e uma vez que o Tribunal recorrido deveria ter procurado diligenciar pela identificação dos respetivos herdeiros e pela sua subsequente notificação (na morada do falecido Autor).
Vejamos.
É sabido que a deserção da instância decorre, nos termos do art.º 281.º, n.º 1, do CPC, da falta de impulso processual, por negligência das partes, decorridos mais de 6 meses. Trata-se de uma causa de extinção da instância [cf. art.º 277.º, al. c), do CPC] cuja razão de ser se prende com os princípios da celeridade processual, do dispositivo e da autorresponsabilidade das partes.
Conforme se retira da definição legal, a deserção da instância depende da verificação dos seguintes pressupostos: (i) uma omissão de ato da parte, que é causal da paragem objetiva do processo; (ii) a negligência da parte onerada com o impulso processual; (iii) e o decurso do tempo (contado desde o momento em que a parte devia ter praticado o ato omitido). Neste sentido, exemplificativamente, veja-se o acórdão do STJ de 12-07-2018, proferido no proc. n.º 411/15.7T8FNC-B.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, em particular o ponto II do respetivo sumário, com o seguinte teor: “A deserção da instância, actualmente prevista no art.º 281.º do CPC, depende da verificação de dois pressupostos: (i) o decurso de um período de tempo superior a 6 meses em que o processo, sem andamento, esteja a aguardar o impulso processual das partes; e (ii) a negligência das partes na promoção dos seus termos.”
É pacífico que o Tribunal deve conhecer oficiosamente da deserção. Neste sentido, a título exemplificativo, avulta, na doutrina, o estudo de Paulo Ramos de Faria, in “O julgamento da deserção da instância declarativa (breve roteiro jurisprudencial)”, disponível para consulta na Julgar online, em que o autor conclui (pág. 23) sobre a “Atendibilidade da deserção – Atualmente, o reconhecimento da deserção produz-se ope judicis, e não ope legis. O juiz conhece da deserção ex officio.
Natureza da decisão – O julgamento da deserção é meramente declarativo do facto jurídico processual extintivo da instância, tendo a decisão efeitos constitutivos ex tunc sobre o processo. Após a ocorrência da deserção, e antes de ser ela judicialmente reconhecida, os atos espontaneamente praticados pelas partes são potencialmente desprovidos do seu efeito jurídico processual típico. Se o tribunal praticar atos processuais, poderá ficar impedido de, oficiosamente, declarar extinta a instância”.
Ante a objeção suscitada pela Apelante, importa desde logo apreciar se o Tribunal de 1.ª instância deveria previamente, antes da prolação do despacho recorrido, ter auscultado as partes a respeito da deserção, sob pena de, não fazendo, a decisão ser nula, por violar o princípio do contraditório.
É inquestionável que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem – cf. art.º 3.º, n.º 3, do CPC. Este comando é, aliás, uma decorrência do princípio mais abrangente da tutela jurisdicional efetiva contido no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa e do direito a um processo equitativo consagrado no art.º 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Tem sido entendido que a inobservância desse princípio pode gerar nulidade processual, nos termos do art.º 195.º, n.º 1, do CPC (com o seguinte teor: “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”), a qual, quando coberta por decisão judicial, poderá implicar a própria nulidade dessa decisão, a arguir no respetivo recurso.
Com efeito, o meio próprio para reagir contra as nulidades processuais cobertas por uma decisão judicial (despacho) que ordenou, autorizou ou sancionou (ainda que só de modo implícito) o respetivo ato ou omissão é o recurso desse despacho, como já explicava Manuel de Andrade, referindo a “doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se; contra as nulidades reclama-se” (in “Noções elementares de Processo Civil”, Reimpressão, Coimbra Editora, pág. 183).
Nos casos de deserção, é particularmente importante atentar na tramitação do processo, em ordem a perceber se, no caso concreto, se está (ou não) perante uma situação em que seja aplicável a ressalva legal (“salvo caso de manifesta desnecessidade”).
Assim, se da tramitação do processo já resultar objetivamente evidenciado que se estava a aguardar que a parte viesse praticar um ato de que dependia o normal andamento do processo, como sucede, por exemplo, desde já o adiantamos, na sequência de uma decisão de suspensão da instância em virtude do óbito de uma das partes [cf. artigos 269.º, n.º 1, al. a), e 276.º, n.º 1, al. a), ambos do CPC], não haveria que notificar as partes para se pronunciarem especificamente a respeito de uma questão que já estava, por assim dizer, “na calha”, se nada fosse dito/requerido em contrário durante o aludido prazo de 6 meses.
Ao invés, quando isso não seja expetável, não estando evidenciado que o andamento do processo dependia do impulso processual da parte, já se mostra necessário um despacho para alertar/advertir as partes disso mesmo, sendo até aconselhável, para obviar a eventuais dúvidas sobre as consequências da falta desse impulso, incluir no mesmo uma referência ao disposto no art.º 281.º do CPC ou ao decurso do prazo da deserção (em casos mais duvidosos, porventura até explicitando a data por referência à qual se conta o prazo de 6 meses).
Em qualquer dos casos, decorrido o prazo legal, constatando o juiz não terem sido praticados os atos que, como já evidenciado nos autos, se mostravam indispensáveis para impulso do processo, não será necessário dar (de novo) às partes a possibilidade de se pronunciarem a respeito da deserção.
Neste sentido, acompanhamos e remetemos, por economia, para as considerações feitas por Paulo Ramos de Faria, no citado artigo, em que conclui (pág. 23) a respeito do “Princípio da cooperação e dever de gestão processual – O juiz tem o dever de comunicar às partes que o processo aguarda o seu impulso, esclarecendo-as sobre os efeitos da sua conduta.
Contraditório prévio à decisão – Se as partes já tiverem sido alertadas para a consequência da omissão do impulso pelo prazo de deserção, a lei não exige a sua audição após o decurso de tal prazo”.
Seguimos também, de perto, a posição que tem sido preconizada pelo STJ, em sucessivos arestos, conforme exemplificativamente ilustrado pelo acórdão de 19-09-2017, proferido na Revista n.º 1572/07.4TBCTX.E1.S1, cujo sumário, disponível em www.stj.pt, passamos a citar:
«I - A deserção da instância e dos recursos prevista no art.º 281.º do CPC visa impedir um desperdício de recursos em processos em que o próprio comportamento negligente de uma das partes indicia o seu escasso interesse genuíno no processo em causa. 
II - Para que se verifique a deserção da instância não se exige o carácter mais ou menos fundamental do acto omitido, mas apenas que, cabendo à parte o impulso processual este tenha sido omitido com negligência. 
III - Mesmo advertida da necessidade de impulso processual da sua parte, a autora/recorrente prolongou a sua inacção por mais de seis meses, pelo que ocorre negligência processual fundamento da deserção da instância devidamente declarada por despacho judicial. 
IV - Inexiste fundamento legal para a “audição” das partes (seja ou não a expensas do princípio do contraditório) em ordem à formulação de um juízo sobre essa negligência, a qual se apresentada retratada objectivamente no processo». 
Nesta linha, veja-se, ainda, a título exemplificativo, o acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 24-10-2019, proferido no processo n.º 2165/17.3T8CSC.L1.L1-2, em que a ora Relatora teve intervenção como Desembargadora-adjunta e do qual consta uma abundante resenha jurisprudencial, acórdão este disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:
“I - Para além dos casos em que tal decorre por força de um despacho judicial, há casos, excepcionais, em que a lei impõe às partes o ónus de um impulso processual. Um desses poucos, casos é o da habilitação dos sucessores da parte falecida. Se a parte onerada com a necessidade de requerer a habilitação não o fizer, por negligência, durante um período de 6 meses, a instância será declarada deserta (art.º 281/1 do CPC).
II - Salvo casos excepcionais, o tribunal deverá alertar a parte para a consequência da deserção da instância por negligência no cumprimento daquele ónus durante aquele período de tempo, o que normalmente será feito com a referência expressa a essa possibilidade, ou com a menção de que o processo fica à espera da prática do acto sem prejuízo do decurso do prazo do art.º 281/1 do CPC.
III - Se a parte onerada com esse ónus nada fizer nesse prazo, nem vier ao processo, no decurso do prazo, justificar o facto, tal será suficiente para se concluir pela sua negligência e, por isso, o tribunal poderá declarar a deserção sem ter que ouvir as partes sobre isso”.
De referir que este acórdão veio a ser confirmado por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-01-2021, proferido no proc. n.º 3820/17.3T8SNT.L1.S1, em cujo sumário se afirma que: “Decorridos mais de seis meses sobre a suspensão da instância, motivada pelo falecimento de uma das partes, e sem que tenha sido promovida a respetiva habilitação de herdeiros (ou requerido o que quer que fosse), impõe-se declarar a deserção da instância, nos termos do nº 1 do artigo 281º do CPC, sem necessidade da prévia audição das partes.”
Ainda no mesmo sentido, a propósito de situação próxima da que nos ocupa, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 04-11-2021, proferido no proc. n.º 1039/14.4T8ALM.L1-2, disponível no blog https://outrosacordaostrp.com/, em que a ora relatora teve intervenção como 2.ª Adjunta, conforme se alcança da seguinte passagem do respetivo sumário:
“I - O advogado da exequente, falecida (em Julho de 2012) no decurso do processo, deve (i) dar notícia dessa morte logo que dela tenha conhecimento, (ii) providenciar pela junção ao processo de documento comprovativo dessa morte e (iii) fazer o necessário para que a execução não seja julgada deserta antes de os herdeiros poderem requerer a sua habilitação em substituição da falecida, se essa deserção se mostrar potencialmente prejudicial aos interesses dos herdeiros, como por regra o será (artigos 270/1-2 do CPC e 1175/2 do CPC).
II - Não o fazendo, verifica-se a negligência como pressuposto da deserção da instância (art.º 281/5 do CPC) e para a sua constatação não há que ouvir previamente aquele advogado.”
No caso dos autos, os mandatários das partes foram expressamente advertidos, com a notificação do despacho que declarou suspensa a instância, de que os autos ficavam a aguardar pelo decurso do prazo de deserção (“com expressa advertência dos termos e efeitos previstos no n.º 1 do art.º 281.º do mesmo diploma legal”), sendo certo que até nos parece que isso sempre decorreria da lei [cf. art.º 276.º, n.º 1, al. a), do CPC], pelo que não havia que os notificar novamente para se pronunciarem sobre a deserção.
Não colhe a argumentação da Apelante a respeito da caducidade do mandato forense pelo qual o Autor havia conferido poderes de representação ao seu Advogado. Na verdade, não deixou de estar suspensa a instância a aguardar o impulso processual por parte de quem nisso tivesse interesse. Muito embora com a morte do mandante se verifique, em regra, a caducidade do mandato, sempre há que ressalvar a manutenção dos seus efeitos quando, como nos parece ser o caso, dessa caducidade possam resultar prejuízos para o mandante ou seus herdeiros, conforme previsto art.º 1175.º do CC. Neste sentido, veja-se o aludido acórdão da Relação de Lisboa de 04-11-2021, com abundantes referências de doutrina, sendo de considerar que se está perante um caso de pós-eficácia das obrigações ou um dever decorrente do princípio geral da boa fé consagrado no art.º 762.º, n.º 2, do CC, estando o mandatário obrigado a informar os herdeiros em termos tais que estes possam atuar em conformidade com os seus interesses.
Portanto, ao contrário do que a Apelante defende, o princípio do contraditório foi respeitado com a prolação da decisão recorrida, não se estando perante uma decisão surpresa, uma vez que os advogados das partes tiveram oportunidade de se pronunciar sobre a eventualidade da deserção da instância, mormente quanto à necessidade concreta de impulso processual evidenciada no despacho de 13-02-2023. Não tinha cabimento legal, por tal se mostrar manifestamente desnecessário, notificá-los para se pronunciarem a respeito dos pressupostos da deserção, pelo que não se pode considerar que tenha sido omitido um ato ou formalidade que a lei prescreva.
O mesmo se diga, aliás, quanto à suposta necessidade de o Tribunal oficiosamente indagar a respeito da identificação dos herdeiros do falecido Autor e determinar a sua notificação na morada deste último, pois é manifesto que não está prevista na lei a prática de um tal ato, de nada valendo invocar o dever de gestão processual ou o princípio da cooperação quando nem sequer cuidaram o mandatário do Autor ou os herdeiros deste de vir aos autos requerer seja o que fosse tendo em vista a (indispensável) dedução do incidente de habilitação dos sucessores (cf. artigos 6.º e 7.º do CPC).
Neste sentido, veja-se o acórdão da Relação de Coimbra de 06-07-2016, proferido no proc. n.º 4278/10.3TBLRA.C1, disponível em www.dgsi.pt, em que, numa situação muito próxima da que nos ocupa, se entendeu que: “(…) ao contrário do que defendem as apelantes, dentro dos poderes de gestão processual do juiz não lhe caberia substituir-se às partes e pela sua própria iniciativa proceder à prática de atos que àquelas incumbam e, muito menos, quanto tal prática corresponda a uma faculdade que a parte pode, ou não, exercer.
No silêncio total das partes, e tendo já sido advertidas de que os autos ficavam a aguardar o decurso do prazo da deserção, não incumbia ao tribunal a prática de qualquer ato, a não ser aguardar que algum dos eventuais interessados no prosseguimento da ação viesse deduzir incidente de habilitação de herdeiros da falecida autora ou requeresse algo relacionado com a dedução de tal incidente (ex., requerendo a concessão de um prazo suplementar para deduzirem o incidente, comunicando as dificuldades que tivessem encontrado, requerendo ao tribunal que procedesse a alguma diligência no sentido de as ajudar a alcançar a identificação dos sucessores da autora ou o respetivo paradeiro, etc.).”
Mais adiante se retomará este aspeto, na medida em que esta linha de argumentação também se traduz na invocação de erro de julgamento.
Improcedem as conclusões da alegação de recurso atinentes à nulidade da decisão recorrida.
           
Dos pressupostos da deserção

A Apelante defende, em síntese, que nem ao falecido Autor, nem à sua Herança pode ser assacada qualquer negligência em impulsionar o presente processo, sendo inconstitucional a interpretação em contrário, por violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva consagrado no art.º 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa.
Vejamos.
Como refere Paulo Ramos de Faria, no artigo citado, pág. 4, a deserção da instância pressupõe uma “paragem qualificada do processo”, sendo que “Como resposta legal para o impasse processual, a extinção da instância só se justifica, no entanto, quando tal impasse não possa (não deva) ser superado oficiosamente pelo tribunal. Assim, determina a lei que a paragem do processo que empresta relevo ao decurso do tempo deve ser o efeito, isto é, o resultado (causalmente adequado) de uma conduta típica integrada por dois elementos: a omissão de um ato que só ao demandante cabe praticar; a negligência deste” (sublinhado nosso).
Mais explica este autor (artigo citado, págs. 5-6), a propósito da negligência, que “a deserção da instância prescinde de um juízo de culpa (censura) sobre a conduta do demandante. Por exemplo, ainda que não se censure o autor por, antes de praticar o ato em falta, passar largos meses tentando chegar a acordo com o réu – o que se admite, embora sem conceder, pois as demoradas tentativas de acordo devem ser ensaiadas antes de se provocar o funcionamento da pesada e onerosa máquina judiciária –, tal comportamento será de qualificar como negligente, para os efeitos que nos ocupam.
Resulta do exposto que negligente significa aqui imputável à parte (causalmente imputável), e não a terceiro – como a uma conservatória que se atrasa na entrega de uma certidão – ou ao tribunal. Em suma, a assunção pelo demandante de uma conduta omissiva que, necessariamente, não permite o andamento do processo, estando a prática do ato omitido apenas dependente da sua vontade, é suficiente para caracterizar a sua negligência.
Esta conclusão é confirmada pelo abandono da expressão empregue no Código de 1939 – a qual, de outro modo, seria mais correta. Resultando a deserção da instância da inércia das partes, e não apenas da inércia do autor, tal significa que ela ocorre porque o demandante não praticou o ato necessário ao andamento dos autos, não satisfazendo, negligentemente, o seu ónus de impulso processual, e porque o demandado não praticou qualquer ato sub-rogatório catalisador do processo, nos casos em que este ato está ao seu alcance – sem que, no caso do demandado, se possa formular, com propriedade, qualquer juízo de culpa. Ou seja, a deserção da instância resulta também (causalmente) da circunstância de o réu nada ter feito para a impulsionar – daí a lei antiga referir-se à inércia das partes –, mas não da sua negligência (hoc sensu), pois não tem este qualquer ónus ou dever de o fazer.
A conduta omissiva e negligente da parte onerada com o impulso processual só cessará com a prática do ato que, utilmente, estimule a instância, ou com a superveniência de uma circunstância que subtraia à vontade da parte a possibilidade da sua prática” (sublinhado nosso).
De igual modo a jurisprudência vem afirmando que a “negligência” prevista no art.º 281.º do CPC não é sinónimo de um juízo de culpa, antes equivalendo a uma imputabilidade à parte (e não a terceiro) da paragem do processo em face dos elementos que deste constam. Neste sentido, veja-se, a título exemplificativo, o citado acórdão da Relação de Coimbra de 06-07-2016, no proc. n.º 4278/10.3TBLRA.C1, bem como o acórdão do STJ de 08-03-2018, proferido no proc. n.º 225/15.4T8VNG.P1-A.S1, e o acórdão do STJ de 20-09-2016, proferido no proc. n.º 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1 - 6.ª Secção, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, de que citamos, pelo seu interesse, as seguintes passagens do sumário deste último:
“V - A negligência a que se refere o n.º 1 do art.º 281.º do CPC não é uma negligência que tenha de ser aferida para além dos elementos que o processo revela, pelo contrário, trata-se da negligência ali objetiva e imediatamente espelhada (negligência processual ou aparente). 
VI - Tal negligência só deixa de estar constituída quando a parte onerada tenha mostrado atempadamente estar impossibilitada de dar impulso ao processo. 
VII - Inexiste fundamento legal, nomeadamente à luz do princípio do contraditório, para a prévia audição das partes no contexto da deserção da instância com vista a aquilatar da negligência da parte a quem cabe o ónus do impulso processual”.  
Numa situação muito próxima da que nos ocupa, de novo lembramos o referido acórdão da Relação de Lisboa de 04-11-2021, proferido no proc. n.º 1039/14.4T8ALM.L1-2, em que se considerou que o advogado da exequente, falecida no decurso do processo, deveria, além do mais, fazer o necessário para que a ação não fosse julgada deserta antes de os herdeiros poderem requerer a sua habilitação em substituição da falecida, e que, não o fazendo, se verifica a negligência como pressuposto da deserção da instância, afirmando-se ainda no respetivo sumário que “III– A deserção da execução é automática quando esteja decorrido o prazo de 6 meses de negligência na actuação daquele que deve fazer alguma coisa para que o processo não se extinga, contados da notificada a declaração da suspensão.”
Transpondo estas considerações para o caso dos autos, é evidente, desde já o salientamos, a falta de razão que assiste à Apelante.
Efetivamente, depois da notificação aos advogados das partes do despacho que determinou a suspensão da instância, o processo ficou a aguardar que fosse deduzido o incidente de habilitação dos sucessores, nenhuma dúvida podendo suscitar, ante a previsão constante do art.º 276.º, n.º 1, al. a), do CPC, que a suspensão cessaria quando (e se) viesse a ser “notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida”.
Decorridos mais de seis meses após aquela notificação, nenhum dos ora identificados herdeiros do falecido Autor veio deduzir o referido incidente, em ordem a que fossem habilitados para, na posição deste último, prosseguir o processo.
Note-se que nada indica, antes pelo contrário, que aqueles herdeiros desconheciam a pendência da presente ação, muito menos que desconheciam quem eram os sucessores do falecido Autor.
Tão pouco está comprovado que não lhes foi possível em tempo útil apurarem se a sua legitimidade (para substituir a parte falecida) já estava (ou não) reconhecida em documento ou noutro processo ou obterem os documentos necessários para instruírem o incidente de habilitação (cf. artigos 351.º a 355.º do CPC).
De qualquer modo, se porventura se verificava algum concreto obstáculo, bastaria que o referido mandatário do falecido Autor ou algum dos herdeiros disso tivesse dado conta na ação, requerendo o que tivessem por pertinente em ordem à superação do mesmo, caso em que deveria, então sim, o Tribunal apreciar se havia que determinar algo a esse respeito, ao abrigo dos referidos dever de gestão processual e princípio da cooperação.
Está, pois, evidenciado nos autos que a paragem do processo se deveu à negligência dos herdeiros do falecido Autor.
Não se nos afigura que esta interpretação dos preceitos indicados afronte o princípio do processo equitativo e o princípio da tutela jurisdicional efetiva, dos quais resulta, além do mais, a importância de que as sentenças dos tribunais sejam proferidas em prazo razoável (artigo 20.º, n.º 4 da CRP).
Ao invés, a interpretação propugnada pela Apelante redundaria numa negação da figura da deserção, atentando contra os princípios da celeridade processual e da autorresponsabilidade das partes que também são decorrência do processo equitativo e da tutela jurisdicional efetiva: não é difícil antever a demora processual e o excesso de trabalho que adviriam da reclamada necessidade de os tribunais, independentemente de requerimento nesse sentido, procederem a averiguação no sentido de identificarem os herdeiros das partes que tivessem falecido e à sua ulterior notificação.
Ademais, é bom não esquecer que a extinção da instância decorrente da deserção não significa que o (invocado) direito à indemnização fique extinto, mas apenas que deverá, se for essa a vontade dos herdeiros do falecido Autor, ser feito valer numa nova ação, tendo em atenção todo o quadro legal em vigor, em especial as regras atinentes à prescrição e ao valor extraprocessual das provas.
Assim, improcedem as conclusões da alegação de recurso, ao qual será negado provimento.

Vencida a Apelante, é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).

***

III - DECISÃO

Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
Mais se decide condenar a Apelante no pagamento das custas do recurso.

D.N.

Lisboa, 04-04-2024
Laurinda Gemas
António Moreira
Orlando Nascimento