Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
631/21.5T9MTJ.L1-5
Relator: LUÍSA MARIA DA ROCHA OLIVEIRA ALVOEIRO
Descritores: CRIME ESTRADAL DE HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
DINÂMICA DO ACIDENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I.–No âmbito do julgamento de um crime estradal de homicídio por negligência e na ausência de testemunhas que tenham presenciado o acidente, a prova da respetiva dinâmica terá de resultar da conjugação das declarações do arguido com os demais elementos testemunhais e documentais do processo, em obediência às regras da ciência, da lógica e da experiência.

II.–Impõe-se efetuar a ponderação de factos conhecidos (precisos, concordantes e incontroversos), com base nas regras da lógica e da experiência, e deles retirar ilações baseadas num juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado na lógica e em regras da experiência comum que permitam chegar a um resultado plausível (próximo da certeza ou para além de toda a dúvida razoável), verificando se os mesmos são demonstrativos da dinâmica do acidente.

III.–Sendo a prova produzida demonstrativa da dinâmica do acidente e inexistindo uma encruzilhada dubitativa, não há que fazer apelo ao princípio in dubio pro reo.

(Sumário da responsabilidade da relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 5ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–RELATÓRIO


No Processo nº 631/21.5T9MTJ.L1 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Criminal do Montijo – Juiz 2, consta da parte decisória da sentença datada de 16/10/2023, o seguinte:

“Em face do exposto, decido:

I.–Julgar improcedente, por não provada, a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência:
A)-Absolver AA da prática, como autor material, de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelos artigos 137.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal;
B)-Sem custas (artigos 513.º, n.ºs 1 e 2, 514.º, n.º 1, a contrario todos do Código de Processo Penal;
II.–Julgar improcedente, por não provado o pedido de indemnização deduzido pelos Demandantes Civis BB, CC, DD e EE e, em consequência, absolver ... do pedido;
III.–Julgar improcedente, por não provado o pedido de indemnização deduzido pelo Demandante Civil ... e, em consequência, absolver ... do pedido (…)”.
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Em 02.11.2023, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
“Ref.ª 37395589 do PE:
Compulsada a sentença proferida considera-se existir um lapso de escrita nos factos considerados provados em 2) e 3).
Efectivamente, resulta da motivação da decisão de facto que não se logrou provar, sem margem de dúvida, a dinâmica do acidente objecto dos autos, razão pela qual, o arguido foi absolvido do crime imputado.
Assim, os factos considerados provados em 2) e 3) devem ter-se como não provados.
Nos termos do artigo 380.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, determino a correcção da sentença nos termos sobreditos”.
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Inconformado com a decisão absolutória, veio o Ministério Público interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
I.– Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 412.º nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto, por se entender que o tribunal a quo apreciou erradamente a prova, resultando tal erro da análise da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, interpretada às luz das regras da lógica, da experiência e da normalidade.
II.–Foram incorretamente julgados todos os pontos constantes dos “Factos Não Provados” da sentença recorrida os quais deveriam ter sido, pelo Tribunal a quo, julgados provados nos seguintes termos:
1.-No dia 13-07-2021, pelas 07h15, o arguido AA conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-QQ, na ..., concelho do …, no sentido oeste-este, na via da direita.
2.- À sua frente e na mesma via, junto ao limite direito da faixa de rodagem, seguia o velocípede sem motor marca ..., conduzido por FF;
3.-O arguido circulava a velocidade não concretamente apurada, mas superior a 40 km/hora.
4.-Atento o seu sentido de marcha, e depois de percorrer cerca de 420 metros após a rotunda convergida com a ..., o arguido embateu com a parte direita do seu veículo automóvel na roda traseira do velocípede conduzido por FF, que seguia junto à margem direita da via de trânsito.
5.-Em consequência do embate, o corpo de FF foi elevado, tombando sobre a parte direita do vidro para-brisas do veículo conduzido pelo arguido, que de imediato estilhaçou, tendo sido posteriormente projetado a cerca de 20,50 metros do local do embate, para fora da faixa de rodagem, ficando caído na zona ajardinada paralela à via de circulação, tendo o velocípede sido arrastado pelo pavimento;
6.-O arguido parou o seu veículo automóvel a cerca de 10 metros do corpo da vítima, ou seja, a cerca de 30,50 metros do local do embate;
7.-Em consequência do embate, FF sofreu graves lesões traumáticas, cranianas, vertebro medulares, torácicas, abdominais e do membro inferior esquerdo, que foram causa direta, adequada e necessária da sua morte;
8.-Aquele local, é uma reta composta por duas faixas de rodagem, uma em cada sentido, com 6 metros de largura, de boa visibilidade, dotadas de duas vias de trânsito com 3 metros de largura.
9.-Os sentidos de trânsito estão separados por um separador em blocos de cimento, com a largura de 2 metros.
10.-No sentido em que circulavam os veículos, existe uma inclinação ascendente de 1,9%, tendo a berma cerca de 0,85 metros.
11.-O pavimento é de aglomerado asfáltico, em mau estado de conservação e manutenção.
12.-No local havia sinalização adequada, e inexistiam quaisquer obstáculos que obstruíssem ou impedissem a normal circulação.
13.-O local onde ocorreu o acidente tem boa visibilidade em toda a largura e extensão;
14.-A velocidade máxima de circulação permitida naquela via era de 60 km/hora.
15.-O arguido conhece bem o local, fazendo aquele trajeto todos os dias.
16.-No momento em que ocorreu a colisão, o arguido reunia todas as condições para efetuar uma manobra de ultrapassagem, sem colidir e arrastar o velocípede sem motor e o seu condutor.
17.-O acidente só ocorreu por distração ou desatenção do condutor do veículo ligeiro, que de forma inexplicável embateu na traseira do velocípede que circulava na mesma via e sentido, a uma velocidade mais reduzida.
18.-O arguido atuou de forma livre e voluntária, com total falta de cuidado, atenção e prudência, em desrespeito pelas mais elementares regras estradais, que o mesmo podia e devia ter acautelado, designadamente a obrigação de adequar a velocidade às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade de trânsito e outras circunstâncias específicas de modo a circular em segurança, sem colocar em perigo outros utilizadores da mesma via, que o mesmo podia e devia ter acautelado.
19.-Porque não o fez, não obstante saber que a sua conduta era proibida e punida por lei, causou o acidente supra descrito, bem como as trágicas consequências que daí advieram para o ocupante do velocípede.
20.-O arguido bem sabia da proibição e da punibilidade por lei penal de tais condutas.
III.–As provas que impõem decisão diversa da recorrida quanto à matéria de facto impugnada consistem nas declarações prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento pelo próprio arguido e pela testemunha GG, na participação de acidente de viação, anexo e croqui de fls. 4 a 6, 205 a 209, da reportagem fotográfica de fls. 210 a 212, do relatório de autópsia de fls. 112, 113 e 127 e do relatório técnico de acidente de viação de fls. 213 a 237.
IV.–Face às declarações do arguido, prestadas em audiência de julgamento no dia 11-09-2023, gravadas através do sistema de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, cujo início ocorreu pelas 10 horas e 04 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 01 minutos, impunha-se decisão diversa quanto à factualidade não provada, devendo ter sido considerada provada a acusação, ainda que com algumas nuances, relativamente ao respetivo teor.
V.–Impõem decisão diversa da recorrida as seguintes passagens das declarações do arguido:
- Gravação digital, do minuto 01:15 ao minuto 02:47;
- Gravação digital do minuto 04:35 ao minuto 07:19;
- Gravação digital, minuto 08:49 ao minuto 09:15.
VI.–De tais passagens das declarações prestadas pelo arguido, impõe-se concluir que o i) o arguido embateu na bicicleta onde seguia FF, com a parte direita do veículo automóvel conduzido por si, tendo visualizado tal velocípede e o corpo de FF atrás do seu veículo, isto é, uns metros mais atrás do local onde parou o seu veículo automóvel após o embate; ii) que o embate provocou a projeção de algo sobre a parte direita do vidro para-brisas do veículo conduzido pelo arguido, pois que, na versão do arguido, o mesmo estilhaçou imediatamente após o embate, tendo o arguido deixado de conseguir ver; iii) que, após o embate, o arguido parou o seu veículo automóvel a cerca de 10 metros do corpo da vítima.
VII.–Por outro lado, haverá ainda que conciliar as declarações do arguido com o depoimento da testemunha GG, Investigador da Polícia de Segurança Pública, prestada na audiência de julgamento do dia 11/09/2023, o que foi gravado através do sistema de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, cujo início ocorreu pelas 11 horas e 02 minutos e o seu termo pelas 12 horas e 02 minutos e, bem assim, com o teor do relatório técnico de fls. 213 a 237.
VIII.–Com efeito, impõe decisão diversa quanto aos factos não provados o depoimento da testemunha GG, nas seguintes passagens:
Gravação digital, minuto 07:16 ao minuto 10:05
Gravação digital, minuto 13:10 ao minuto 14:16
Gravação digital, minuto 28:32 ao minuto 30:17
Gravação digital, do minuto 45:18 ao minuto 46:14.
IX.–Ora, do depoimento da referida testemunha, conjugado com as fotografias juntas aos autos a fls. 210 a 212, e bem assim com o teor do relatório técnico de fls. 231 a 237, extrai-se, desde logo, que: i) o arguido percorreu cerca de 420, na reta onde ocorreu o embate, até ao ponto de colisão com o velocípede de FF, sendo que a visibilidade era boa e era possível verificar a existência do velocípede na via a 100 metros de distância; ii) que o surgimento do velocípede na via de forma inesperada e proveniente da ciclovia não era possível, atenta desde logo a posição final da vítima após o embate, a qual ficou na zona ajardinada adjacente à faixa de rodagem e à ciclovia, conforme resulta da participação e croqui anexo de fls. 4 a 6;
iii) que o velocípede não entrou inesperadamente na faixa de rodagem sem que o arguido o pudesse ver.
X.–Consta do croqui anexo à participação de acidente de fls. 4 a 6, que os veículos circulavam no sentido oeste/este, que o ponto de colisão ocorreu junto ao limite direito da faixa de rodagem e que o corpo da vítima após a colisão ficou posicionado a 20,50 metros do ponto de colisão.
XI.–Resulta das fotografias juntas aos autos, a fls. 12, que na faixa de rodagem onde ocorreu o acidente havia marcas de arrastamento do velocípede e que tal veículo sofreu danos na roda traseira, o que faz concluir que o que foi projetado sobre a parte direita do vidro para-brisas do veículo conduzido pelo arguido, provocando o estilhaçamento do mesmo, só pode ter sido o corpo de FF e que o velocípede sofreu embate na roda traseira.
XII.–Do relatório da autópsia médico-legal junto aos autos a fls. 111 a 113 e 127 resulta que o ofendido FF sofreu graves lesões traumáticas, cranianas, vertebro medulares, torácicas, abdominais e do membro inferior esquerdo, compatíveis com acidente de viação, e causa adequada da sua morte.
XIII.–Face à extensão das lesões verificadas em FF, as mesmas não são compatíveis com uma velocidade de 40 km/hora (velocidade a que o arguido declarou seguir, tal como consta da sentença recorrida), mas com velocidade superior a essa.
XIV.–Não poderia o Tribunal a quo invocar o princípio in dubio pro reo para fundamentar a decisão sobre a matéria de facto, pois que, para tanto, é necessário que se crie no espírito do julgador uma dúvida razoável e intransponível, o que, salvo o devido respeito, não sucedeu nos presentes autos, atenta a prova elencada.
XV.–Perante a prova supra referida, o Tribunal a quo podia e devia ter afastado a credibilidade da versão apresentada pelo arguido quanto à velocidade a que circulava, bem como quanto à entrada inesperada do velocípede na faixa de rodagem em que seguia e onde se deu o embate, alcançando a convicção de que, face ao conteúdo das declarações do próprio arguido e do depoimento das testemunhas GG, e o teor da prova documental supra referida, o acidente ocorreu conforme descrito na acusação, ainda que com certas nuances, o que, no limite, levaria a uma comunicação da alteração não substancial dos factos, nos termos do artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e não à absolvição do arguido.
XVI.–Convicção essa que impunha, necessariamente, a conclusão de que o arguido seguia desatento ao que se passava à sua frente, distraído, razão pela qual não se apercebeu da presença do velocípede a circular na faixa de rodagem, e não reduziu a velocidade, nem se afastou do mesmo de forma a lograr efetuar ultrapassagem sem embater no velocípede.
XVII.–Motivos pelos quais teriam de ser julgados parcialmente provados os pontos I a IV dos “Factos Não Provados”, e integralmente provados os pontos V a XI dos “Factos Não Provados” (numeração esta que deverá atender à correção dos lapsos de escrita contidos na sentença, o que foi determinado no despacho proferido a 02-11-2023).
XVIII.–Factos com os quais o Tribunal a quo não poderia deixar de proferir decisão de condenação do arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, de que foi acusado”.
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O recurso foi admitido, por despacho proferido em 27.11.2023, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O arguido AA apresentou resposta ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
I.- O Ministério Púbico acusou o Arguido pela prática do crime de homicídio por negligência atenta a factualidade descrita em 1.º. 2.º, 3.º, 4.º, 15.º, 18.º e 19.º do douto despacho de acusação, referindo-se os artigos 8.º a 14.º do despacho de acusação às dimensões e condições da faixa de rodagem e via de trânsito em que ocorreu o acidente, sem especialidade a assinalar, tudo conforme o douto despacho de acusação que se dá por integralmente reproduzido.
II.- A acção penal, visando prima facie a tutela de bens jurídicos fundamentais e a consequente condenação do arguido que os tenha violado, exige que se impute a este uma concreta acção ou omissão que seja subsumível na falta de cuidado, atenção ou prudência e se elenquem as concretas normas desrespeitadas ou a conduta que, de acordo, com as regras de circulação rodoviária, deveria ter sido adoptada ou omitida pelo arguido, no caso concreto.
III.-Do douto libelo acusatório não se alcança qual a concreta acção ou omissão do arguido que, nas circunstâncias do caso concreto, criou ou potenciou o risco de lesão da vida/integridade física do condutor do velocípede [cf. Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 03.08.2009 (disponível em www.dgsi.pt)].
IV.-Da prova produzida em audiência de julgamento também não resultou provada – antes pelo contrário – qual a concreta acção ou omissão do arguido que criou ou potenciou o risco de lesão da vida/integridade física do condutor do velocípede, como veremos adiante.
V.-Em face do teor do douto despacho de acusação – que define o objecto do processo e demarca o thema probandum, bem como o thema decidendum – o julgador deve analisar a prova produzida a fim de julgar provados ou não provados os factos constantes do libelo acusatório bem como outros que, não constituindo alteração substancial dos factos constantes do despacho de acusação, sejam relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
VI.-Da análise crítica e global da prova produzida em audiência de julgamento bem como dos documentos juntos aos autos e considerados na decisão, não só a douta sentença proferida não merece censura como não é objectivamente possível a alteração da matéria de facto defendida pelo Ministério Público, nas suas doutas alegações.
VII.-Das declarações [serenas, espontâneas e coerentes em si mesmas] prestadas pelo arguido [depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital, a 11/09/2023, dos 2m aos 57m17s] e, no essencial, corroboradas pelo depoimento das testemunhas HH, cujo depoimento foi gravado no sistema integrado de gravação digital, no dia 11/09/2023 [dos 8m aos 9m], pela testemunha II, cujo depoimento foi gravado no sistema integrado de gravação digital, no dia 13/09/2023 [dos 1m15s aos 5m30s e dos 6m30s aos 10m] e pela testemunha JJ, cujo depoimento foi gravado no sistema integrado de gravação digital, no dia 13/09/2023 [dos 1m20s aos 6m e 6m30s aos 11m30s] assim como, em especial, dos documentos de fls. 10 a 13, 201 e 210 resulta provado que:
1.–O Arguido em momento algum viu o velocípede a circular à sua frente;
2.–O Arguido sentiu um embate no lado direito do seu veículo a cerca de 5 metros onde se encontrava o corpo de FF [o local desse embate foi identificado pelo Arguido junto à inscrição “20,50m” no croqui de fls. 6] e travou de imediato, imobilizando o veículo a cerca de 10 metros desse local, pelo que a distância de travagem não é superior a 15 metros e, por isso, consentânea com uma velocidade de 40km/h.
3.–O Arguido nunca esteve encandeado pelo Sol;
4.–O Arguido não circulava a mais de 40km/hora.
VIII.-O apuramento da velocidade provável de um veículo faz-se, ao invés do sustentado pelo Ministério Público no seu recurso, através de fórmulas matemáticas devidamente testadas e de conhecimento público.
IX.- E foi, precisamente, uma dessas fórmulas matemáticas que o douto tribunal a quo utilizou para apurar que o arguido, efectivamente, circulava a 40 km/hora no dia, hora e local do acidente, usando os locais de embate e paragem indicados pelo arguido nas suas declarações e cuja distância, entre si, não é superior a 20m.
X.-Determinada a velocidade provável a que o veículo ligeiro circulava, é o momento de apurar se o embate de um veículo ligeiro, a 40km/hora, na roda traseira de um velocípede, é causa adequada das lesões identificadas no corpo do condutor do velocípede.
XI.-Para tal, há que atentar na extensão e gravidade das lesões verificadas no corpo do sinistrado FF e constantes do relatório da autópsia de fls. 111 a 113, que, sucintamente, permitem concluir por lesões graves na cabeça e em todo o tronco (incluindo lesões graves na generalidade dos órgãos internos).
XII.-Estas lesões, pela sua gravidade e extensão, não são compatíveis com o embate de um veículo ligeiro num velocípede a 40 km/h, nem a 50km/h; antes são compatíveis com um embate a velocidade muito superior a 60km/h (sendo relevante o facto de o embate se ter dado na roda traseira do velocípede conduzido pela vítima).
XIII.-A restante prova testemunhal produzida é inócua, nomeadamente o depoimento das testemunhas GG, [depoimento gravado no dia 11/09/2023, dos 1m aos 59m30s], KK [depoimento gravado no dia 11/09/2023, dos 1m aos 25m22s] e LL, amigo e colega da vítima que esteve no local do acidente, pouco após este ter ocorrido, nada soube esclarecer quanto à dinâmica do acidente.
XIV.-Da análise conjugada da prova testemunhal e documental é possível concluir que quer o veículo ligeiro quer o velocípede não foram, em momento algum, alvo de perícia.
XV.-A fotografia 4 de fls. 11, captada no dia e local do acidente poucos momentos após a sua ocorrência, demonstra os concretos danos existente no veículo ligeiro, nomeadamente, ausência de danos na parte frontal direita e no capot, ausência de danos no espelho retrovisor do lado direito, pequeno vinco, na parte lateral direita, junto à embaladeira da roda da frente, pequena mossa por cima da porta da frente, do lado direito, junto ao tejadilho, pára-brisas parcialmente estilhaçado, do lado direito.
XVI.-Vem, então, o Ministério Público invocar dever ser julgado provado, grosso modo, que, seguindo o velocípede e o veículo do Arguido na mesma via de trânsito (e, portanto, no mesmo sentido de trânsito), o Arguido embateu com o lado direito do seu veículo na roda traseira do velocípede conduzido por FF e, nessa sequência, este tombou sobre a parte direita do vidro para brisas do veículo conduzido pelo arguido, que imediatamente estilhaçou, tendo sido posteriormente projectado a cerca de 20,50m do local do embate
XVII.-Com o devido respeito, esta factualidade não pode ser julgada provada atenta a total ausência de prova neste sentido bem como o facto de esta dinâmica ser insusceptível de explicação pela ciência Física, pois não se compreende como pode um ligeiro, seguindo na mesma via e sentido trânsito do velocípede, embater violentamente com o lado direito na roda traseira deste.
XVIII.-Os danos existentes na parte lateral direita do veículo conduzido pelo Arguido também não são compatíveis com a versão agora proposta pelo Ministério Público.
XIX.-Ficando por explicar como é que o corpo de FF era projectado cerca de 20 metros para a frente em vez de para o lado, no caso de um embate com a lateral direita do veículo.
XX.-Assim como não é verosímil que o corpo inerte de um homem, após um embate, ao cair sobre o pára-brisas cause apenas um estilhaçamento parcial ao invés da destruição total do pára-brisas e deixa intacto o capot e, sobretudo, o espelho retrovisor direito.
XXI.-Não se alcança, igualmente, da versão dos factos que o Ministério Público pretende ver provados, a gravidade e extensão das lesões verificadas no corpo de FF nem a concreta velocidade que o veículo do Arguido teria de atingir para, na sequência de um embate lateral na roda traseira do velocípede [como se disse, inexplicável pela Física], provocar as aludidas lesões.
XXII.-Não basta julgar provados os factos que consubstanciam a eventual prática do crime pelo qual o arguido vem acusado pois os factos provados devem permitir, de forma lógica e racional, contar o que efectivamente sucedeu e demonstrar a lógica dos acontecimentos e das suas consequências.
XXIII.-Da análise crítica e conjugada de toda a prova produzida não se logrou provar a versão dos factos constante da douta acusação assim como não permite dar como provada a versão dos factos que o Ministério Público, agora, pretende.
XXIV.-A condenação em processo-crime não pode ser obtida a qualquer custo e com recurso a factos impossíveis ou improváveis mas sim com recurso a prova cabalmente produzida, que permita ao julgador não ter qualquer dúvida sobre os factos que julga provados.
XXV.-Devendo manter-se a douta decisão recorrida por correcta e acertada”.
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Nesta Relação, o Exmo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que “o Recurso interposto pelo Ministério Público junto da 1ª Instância deve ser julgado procedente e, consequentemente, a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue provada a matéria factual indicada e, em consequência, condene o Arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, do crime de homicídio negligente, p. e p. pelo artigos 137.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, de que foi acusado”.
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Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, n.º 2 do C.P.Penal e não foi apresentada resposta.
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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.
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II.–OBJETO DO RECURSO

Conforme é jurisprudência assente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, acessível em www.dgsi.pt: “é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95), o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente (das quais devem constar de forma sintética os argumentos relevantes em sede de recurso) a partir da respetiva motivação.
Pelo que “[a]s conclusões, como súmula da fundamentação, encerram, por assim dizer, a delimitação do objeto do recurso. Daí a sua importância. Não se estranha, pois, que se exija que devam ser pertinentes, reportadas e assentes na fundamentação antecedente, concisas, precisas e claras” (Pereira Madeira, Art. 412.º/ nota 3, Código de Processo Penal Comentado, Coimbra: Almedina, 2021, 3.ª ed., p. 1360 – mencionado no Acórdão do STJ, de 06.06.2023, acessível em www.dgsi.pt).
Isto, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (artigo 412º, nº 1 do C.P.Penal).
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Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, cumpre apreciar:
Impugnação da decisão sobre a matéria de facto quanto aos pontos I a IX da matéria de facto dada como não provada, bem como dos factos considerados não provados na sequência do despacho proferido em 02.11.2023, nos termos do art. 412º, nº 3 e 4 do C.P.Penal, e violação do princípio in dubio pro reo.
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III.–FUNDAMENTAÇÃO
1.–Uma vez que não constava da acusação a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do nº 1, al. a) do art. 69º do C.Penal, o Tribunal a quo comunicou ao arguido, nos termos dos nº 1 e 3 do art. 358º do C.P.Penal, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, tendo o arguido prescindido do prazo para preparação da defesa.
2.–A sentença recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:

A.1)–FACTOS PROVADOS

Com interesse, para a decisão da causa, consideram-se provados os seguintes factos:

Da acusação pública:
1.–No dia 13-07-2021, pelas 07h15, o arguido AA conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-QQ, na ..., concelho do …, no sentido oeste-este, na via da direita.
2.–À sua frente, e no mesmo sentido, circulava no velocípede sem motor de marca ..., conduzido por FF.
3.–Nestas circunstâncias de tempo, e após circular cerca de 420 metros após rotunda convergida com a ..., o veículo conduzido pelo arguido embateu com a sua frente, do lado direito, na traseira do velocípede sem motor.
4.–FF sofreu graves lesões traumáticas, cranianas, vertebro medulares, torácicas, abdominais e do membro inferior esquerdo.
5.–As quais foram causa direta, adequada e necessária da sua morte.
6.–Aquele local, é uma recta composta por duas faixas de rodagem, uma em cada sentido, com 6 metros de largura, de boa visibilidade, dotadas de duas vias de trânsito com 3 metros de largura.
7.–Os sentidos de trânsito estão separados por um separador em blocos de cimento, com a largura de 2 metros.
8.–No sentido em que circulavam os veículos, existe uma inclinação ascendente de 1,9%, tendo a berma cerca de 0,85 metros.
9.–O pavimento é de aglomerado asfáltico, em mau estado de conservação e manutenção.
10.–No local havia sinalização adequada, e inexistiam quaisquer obstáculos que obstruíssem ou impedissem a normal circulação.
11.–O local onde ocorreu o acidente tem boa visibilidade em toda a largura e extensão;
12.–A velocidade máxima de circulação permitida naquela via era de 60 km/hora.
13.–O arguido conhece bem o local, fazendo aquele trajeto todos os dias.
Mais se provou:
14.–O arguido é motorista de pesados há mais de 30 anos.
15.–O arguido reside com a companheira e o enteado, com 30 anos de idade.
16.–A companheira do arguido está reformada.
17.–O enteado do arguido está desempregado.
18.–O arguido aufere € 910,00 mensais.
19.–O arguido tem as seguintes despesas mensais: € 350,00 de renda da habitação, € 290,00 de prestação para aquisição de veículo automóvel, acrescidas dos consumos de electricidade, água e telemóvel.
20.–O arguido tem o 2.º ciclo.
21.–Do certificado do registo criminal do arguido não constam antecedentes criminais.
Mais se provou quanto ao pedido de indemnização civil deduzido pelos Demandantes (não comuns à acusação pública):
22.–Os Demandantes são viúva e filhos do sinistrado.
23.–BB, DD e CC viviam com o sinistrado em economia comum.
24.–Era o sinistrado o principal provedor de meios económicos para o sustento da sua família.
25.–O sinistrado trabalhava para a empresa ... exercendo as funções de … .
26.–Com o seu salário o sinistrado custeava as despesas de alimentação, alojamento, vestuário, educação, transporte, e designadamente os estudos superiores da sua filha CC, ainda sua dependente.
27.– O falecido tinha, à data da sua morte, 55 anos de idade.
28.–O sinistrado era pessoa activa e trabalhadora, no auge da sua vida familiar, laboral e social.
29.–Apesar de estrangeiro, trabalhador imigrante desde 2004, encontrava-se totalmente integrado.
30.–Beneficiava do amor e união de uma família que soube construir, em conjunto com a sua mulher, Demandante.
31.–A vítima fazia horas extraordinárias.
32.–Com o violento acidente de que foi vítima, sofreu de forma quase imediata, pela extensão e gravidade dos ferimentos, uma morte dolorosa e abrupta.
33.–Não lhe foi permitido despedir-se da família, dispor sobre os seus bens, dar os últimos conselhos, dar os últimos abraços.
34.–Não lhe foi possível alcançar o tempo da reforma, com o merecido descanso e o prazer de ver os filhos encaminhados na vida, independentes, e a chegada dos netos.
35.–Viu a sua esperança de vida cortada, a negação de todos os projectos, a interrupção antecipada do seu percurso até à morte natural na velhice.
36.–Os Demandantes passaram por grande sofrimento, pois ao choque da morte repentina, ao luto normal por um marido e um pai muito querido, companheiro de todos, viram a família ferida.
37.–Ao que somaram a enorme angústia de se verem desprovidos do apoio que ele lhes providenciava na satisfação das suas necessidades de subsistência financeira.
38.–A Demandante CC ainda se encontrava a estudar ..., no ensino superior.
39.–A Demandante BB encontrava-se e ainda se encontra desempregada desde 2016 e já sem auferir, à data, qualquer prestação social de desemprego.
40.–DD auferia o salário mínimo nacional, com o qual passaram a subsistir os Demandantes.
41.–Recaindo sobre o Demandante DD, com 26 anos de idade, a responsabilidade de prover com o seu salário as necessidades da mãe e irmã.
42.–Recorreram a apoio regular de uma família amiga, que lhes pagava avios de compras de comida e bens de supermercado quando já não podiam.
43.–Apenas com o enorme sacrifício de todos CC conseguiu finalizar os estudos.
Mais se provou quanto ao pedido de indemnização civil deduzido por ...:
44.–No exercício da sua actividade comercial de seguros, na qualidade de Seguradora, celebrou com ..., na qualidade de tomadora de seguro, um contrato de seguro de acidentes de trabalho designado “CA Acidentes De Trabalho – Trabalhadores Por Conta de Outrem” que recebeu o número de apólice ... e que teve início no dia 01.01.2021.
45.–Contrato esse com o prémio variável que garantia os riscos profissionais decorrentes da actividade a segurar, designadamente produção e comércio de produtos hortícolas e pecuários, como cereais e outros, e que tinha como pessoas seguras os empregados da ...
46.–FF exercia a profissão de embalador sob as ordens, direcção e fiscalização da ..., estando transferida a responsabilidade respeitante ao valor anual de € 13.930,78 (salário base € 791,28+€ 6,83x242+parte do prémio de € 1.200,00) para a Demandante.
47.–O sinistrado falecido trabalhava para a ... desde 14.08.2014 e o se horário de trabalho iniciava-se às 8 horas e terminava às 17 horas.
48.–No dia 13 de Julho de 2021, o sinistrado iniciou o percurso habitual para o local de trabalho, desde a sua habitação na ... até às instalações da sua empregadora quando
49.–Às 7 horas e 15 minutos do referido dia, na via ..., sentido ..., concelho do Montijo (coordenadas 38.714764, -8.950267) ocorreu um acidente de viação que envolveu o veículo ligeiro de mercadorias, de marca …, modelo …, matrícula ..-..-QQ e o velocípede sem motor, de marca e modelo ....
50.–Nas circunstâncias de tempo e lugar referidos, o sinistrado deslocava-se no mencionado velocípede, no limite exterior da via de circulação, sentido Oeste-Este.
51.–No âmbito da sua actividade profissional, a ..., havia celebrado com o Tomador de Seguro AA, aqui arguido, um contrato de seguro do ramo automóvel, titulado pela apólice n.º ..., respeitante ao veículo com a matrícula ..-..-QQ, em que este transferiu apara aquela a responsabilidade emergente da circulação rodoviária do referido veículo.
52.–O pedido contém-se dentro do capital mínimo obrigatório do contrato de seguro.
53.–No âmbito dos autos de processo de acidente de trabalho foi realizada tentativa de conciliação entre a Demandante e os beneficiários legais do sinistrado.
54.–Chegados a acordo, a ... aceitou pagar:
. à viúva, a pensão anual, até à data da reforma, no valor de € 4.179,23 (30% x rendimento anual) e, após reforma, no valor de € 5.571,31 (40% x rendimento anual) devida desde 14.07.2021);
. à filha, a pensão anual de € 2.786,16 devida desde 14.07.2021;
. Subsídio por morte no montante de € 5.792,29, devido desde 14.07.2021, sendo € 2.896,15 para a viúva e € 2.896,15 para a filha;
. à entidade empregadora, subsídio de funeral no valor de € 1.192,56.
55.–A Demandante realizou diversos pagamentos para reparação do acidente de trabalho ocorrido com o sinistrado, tendo sido pagos, até ao momento:
. à entidade empregadora, subsídio de funeral no valor de € 1.192,56.
. À viúva: pensões de 14.07.2021 até 28.02.2023, no montante total de € 6.686,36 e subsídio por morte, no valor de € 2.896,15;
. À filha: pensões de 14.07.2021 até 30.08.2023 no montante de € 3.106,60 e subsídio por morte no valor de € 2.896,15.
56.–Até ao momento nenhuma quantia foi reembolsada à Demandante pela Demandada.
Mais se provou quanto à contestação do arguido:
57.–O arguido é titular de licença de condução da categoria B desde ... de ... de 1990 e da categoria C/C1 desde ... de ... de 1994 a que acresce o Certificado de Aptidão de Motorista, destinado a habilitar o arguido a conduzir veículos pesados e mercadorias.
58.–O arguido exerce a actividade de motorista de veículos pesados de mercadorias para a empresa ..., com sede na ... (entre a freguesia da ... e a localidade de ...).
59.–O arguido não tem contra-ordenações rodoviárias averbadas no registo individual do condutor assim como não tem antecedentes criminais, em especial relativos ao exercício da condução.
60.–O demandado tinha, como é obrigatório, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo ..-..-QQ transferida para a ... através da apólice ..., válida de 18/04/2021 a 17/10/2021.
61.–À data do sinistro o capital mínimo obrigatório do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel era de 7,29 milhões de euros por acidente (6,07 milhões para danos corporais e 1,22 milhões para danos materiais).
62.–O pedido dos demandantes cifra-se em € 350.000,00, portanto muito abaixo do limite do capital mínimo obrigatório.
Mais se provou quanto à contestação da ...:
63.–Arguido e Co-Demandado Cível, no dia 13.07.2021, pelas 07h15m, conduzia o veículo de matrícula ..-..-QQ (adiante, abreviadamente QQ), de marca e modelo Citroën Berlingo, na ..., na freguesia ..., no sentido Oeste para Este, tendo colidido com o velocípede sem motor conduzido, na mesma via, por FF, in itenere.
64.–Sendo que, à mesma data, se encontrava válida e em vigor a apólice n.º ..., no âmbito da qual foi transferida para a ora Demandada Seguradora a responsabilidade pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros provocados pelo veículo QQ, da propriedade de AA, contrato este celebrado nos termos do disposto no Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto.
65.–O sinistrado, para além de não estar munido de nenhum equipamento de segurança também não possuía nenhum dispositivo de iluminação ou de aviso de presença. existe ao lado dessa mesma estrada uma ciclovia
66.–O sinistrado conduzia o seu velocípede com uma taxa de álcool no sangue de 0,62 g/L.

A.2)–FACTOS NÃO PROVADOS

Não se provaram os seguintes factos:

Da acusação pública:
I.–O arguido embateu em FF.
II.–Como consequência do embate, FF e o velocípede, foram elevados, tombando sobre o capô do veículo automóvel e, de seguida, sido projetados para a frente;
III.–A bicicleta ficou posicionada na via, a cerca de 2 / 3 metros da frente do veículo automóvel, e o seu condutor posicionado do lado direito, fora da faixa de rodagem;
IV.–O arguido conduzia a uma velocidade não concretamente apurada, mas certamente excessiva face às condições que se apresentavam;
V.–No momento em que ocorreu a colisão, o arguido reunia todas as condições para efetuar uma manobra de ultrapassagem, sem colidir e arrastar o velocípede sem motor e o seu condutor;
VI.–O acidente só ocorreu por distração ou desatenção do condutor do veículo ligeiro, que de forma inexplicável embateu na traseira do velocípede que circulava na mesma via e sentido, a uma velocidade mais reduzida;
VII.–O arguido atuou de forma livre e voluntária, com total falta de cuidado, atenção e prudência, em desrespeito pelas mais elementares regras estradais, que o mesmo podia e devia ter acautelado, designadamente a obrigação de adequar a velocidade às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade de trânsito e outras circunstâncias específicas de modo a circular em segurança, sem colocar em perigo outros utilizadores da mesma via, que o mesmo podia e devia ter acautelado;
VIII.–Porque não o fez, não obstante saber que a sua conduta era proibida e punida por lei, causou o acidente supra descrito, bem como as trágicas consequências que daí advieram para o ocupante do velocípede;
IX.–O arguido bem sabia da proibição e da punibilidade por lei penal de tais condutas.
Do pedido de indemnização civil deduzido pelos Demandantes Civis, familiares da vítima:
X.–As despesas referidas em 26) eram referentes a toda a família.
XI.–FF era o principal pilar da família.
XII.–A última fase dos estudos, desde a morte do pai até obter o seu primeiro emprego, em 19.09.2022, foi de grandes privações, pois o dinheiro era muito escasso.
XIII.–Foram obrigados a fazer enormes sacrifícios na sua vida diária, a passar necessidade e a “contar tostões”.
XIV.–A família lutou com enormes dificuldades de subsistência.
XV.–EE suportou, à distância, na precariedade da sua condição de imigrante na ..., confrontado também com dificuldades, todas as provações da sua família em Portugal, para além da dor do falecimento do pai.
Do pedido de indemnização deduzido por ...:
XVI.–FF circulava na via da direita e cumpriu as regras de condução previstas no Código da Estrada.
XVII.–O veículo com a matrícula ..-..-QQ não as cumpriu.
XVIII.–O embate na traseira do velocípede foi causa directa e adequada a produzir o acidente e os danos dai resultantes.
XIX.–O acidente e infortuna morte do sinistrado deveu-se exclusivamente à condução perigosa do condutor do veículo com a matrícula ..-..-QQ, seguro na ..., que seguia sem os mais elementares deveres de cuidado.
Da Contestação do arguido:
XX.– O arguido é um condutor prudente e diligente, pratica uma condução defensiva e está habituado a conduzir a baixa velocidade atento a sua actividade profissional – os veículos pesados têm limites máximos de velocidade mais baixos que os veículos ligeiros e pelas dimensões e peso da carga que transportam exigem, muitas vezes, uma condução a velocidade mais reduzida.
Da contestação da ...:
XXI.–A dita ciclovia o local onde o condutor do velocípede deveria estar a circular.
XXII.–O sinistrado circulava no centro da faixa à direita – contrariando o previsto na referida norma.

A.3.)–MOTIVAÇÃO DE FACTO

De acordo com o artigo 205.° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos Tribunais são fundamentadas na forma prevista na lei.
Por sua vez, o Código de Processo Penal explicita, nos seus artigos 97.°, n.°4 e 374.°, n.° 2, que a sentença deve especificar os motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal.
A prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade: deve o Tribunal lançar-se à procura do "realmente acontecido" conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o “agarrar” e, por outro, os limites que a ordem jurídica lhe marca, derivados da(s) finalidade (s) do processo.
Conforme decorre do Código de Processo Penal, um dos princípios que rege a audiência de discussão e julgamento, é o princípio da imediação que, como se afere do artigo 355.°, se traduz no facto de a convicção do Tribunal, em audiência, resultar da prova examinada ou que nela se produza.
Por seu turno, tal prova está sujeita ao princípio da livre apreciação, segundo o qual aquela é apreciada de acordo com as regras da experiência e da livre convicção da entidade julgadora (cfr. art. 127.º do CPP).
Quer isto significar que a prova deve ser apreciada na sua globalidade, não através do livre arbítrio, mas de acordo com as regras comuns da lógica, da experiência e dos conhecimentos científicos e vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório.
Todavia, não podemos esquecer que, pese embora este princípio seja a regra geral, existem algumas excepções, nomeadamente: o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (art. 169.° do CPP), a confissão integral e sem reservas no julgamento (art. 344.° do CPP) e a prova pericial (art. 163.° do CPP).
Em suma, a convicção do Tribunal forma-se, não só com base em dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, mas também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im) parcialidade, serenidade, "linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos.
Relativamente às declarações do arguido haverá que ter em conta, porém, o princípio da presunção da inocência, o qual se traduz em que até prova em contrário, o arguido deverá ser considerado inocente – cfr. art. 32.° n.°2 da Constituição da República Portuguesa.
Importa, pois, desta forma, proceder a uma fundamentação de facto que permita alcançar o raciocínio seguido pelo Tribunal na sua decisão.
Nesta conformidade, o Tribunal formou a sua convicção, sobre a factualidade provada e não provada, no conjunto da prova realizada em audiência de discussão e julgamento, analisada de forma crítica e recorrendo a juízos de experiência comum, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal.

A.3.1)–Quanto ao crime de homicídio por negligência
Para considerar provada e não provada a factualidade o Tribunal analisou criticamente a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, conjugada com as declarações prestadas pelo arguido e com a prova pericial e documental junta aos autos.
Existem alguns elementos pacificamente referidos pelo arguido e pelas testemunhas, designadamente que, no dia 13-07-2021, pelas 07h15, o arguido AA conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-QQ, na ..., concelho do …, no sentido oeste-este, na via da direita e dirigia-se ao seu local trabalho, a ..., sita no ....
No mesmo sentido, circulava o velocípede sem motor de marca ..., conduzido por FF.
Aquele local, é uma recta composta por duas faixas de rodagem, uma em cada sentido, com 6 metros de largura, de boa visibilidade, dotadas de duas vias de trânsito com 3 metros de largura.
Os sentidos de trânsito estão separados por um separador em blocos de cimento, com a largura de 2 metros.
No sentido em que circulavam os veículos, existe uma inclinação ascendente de 1,9%, tendo a berma cerca de 0,85 metros.
O pavimento é de aglomerado asfáltico, em mau estado de conservação e manutenção.
No local havia sinalização adequada, e inexistiam quaisquer obstáculos que obstruíssem ou impedissem a normal circulação.
O local onde ocorreu o acidente tem boa visibilidade em toda a largura e extensão.
A velocidade máxima de circulação permitida naquela via era de 60 km/hora.
O sinistrado, para além de não estar munido de nenhum equipamento de segurança também não possuía nenhum dispositivo de iluminação ou de aviso de presença. existe ao lado dessa mesma estrada uma ciclovia
Quanto ao apuramento dos factos supra referidos e consignação dos mesmos como provados, o tribunal ainda valorou a participação de acidente de viação e croqui de fls. 4 a 6 e 205 a 209, o relatório técnico de acidente de viação de fls. 213 a 237 (veículos intervenientes e descrição do lugar do acidente) e a reportagem fotográfica de fls. 210 a 212.
É quanto à dinâmica do acidente que a prova não converge.
O arguido declarou que, as circunstâncias de tempo descritas na acusação pública, circulava na ..., sentido oeste-este, em direção ao seu local de trabalho (..., no ...), a uma velocidade de 30 a 40Km/h (quando a velocidade máxima permitida no local é de 60km/h), quando ouviu um embate no guarda lamas frontal direito, tendo imobilizado de imediato o veículo automóvel.
O arguido, ao sair do veículo automóvel ligeiro de mercadorias por si conduzido, constatou ter imobilizado a viatura a cerca de dez metros do local onde estava o corpo de FF (junto a um arbusto, na berma do lado direito, a cerca de quatro a cinco metros do local do embate), bem como verificou o estado do sinistrado (i.e. estava deitado de bruços, com a face virada de lado e gelado; não usava capacete e tinha vestido um casaco escuro) e o local onde o velocípede sem motor se encontrava (i.e. a cinco metros atrás do local onde se encontrava o corpo da vítima).
O arguido pediu a um transeunte que fazia desporto que telefonasse para os bombeiros, porque estava muito nervoso para fazer a chamada, o qual anuiu, mas depois desapareceu do local.
O arguido telefonou à sua companheira a relatar o sucedido.
Por fim, o arguido confirmou os danos ocorridos na sua viatura e os ocorridos no velocípede sem motor (cfr. fls. 11, fotografia n.ºs 4 e 5, fls. 342 e 342v).
Confrontado com o croqui de fls. 6, o arguido confirmou o local do embate (i.e. onde consta escrito a medição 20,50m), o local onde estava o corpo de FF (i.e. onde está escrito alínea a) e fls. 209 a 213) e afirmou que não estava encadeado pelo sol, pois este incidia na lateral do veículo e não de frente (cfr. documento de fls. 339v a 341).
O arguido afirmou peremptoriamente que não circulava qualquer veículo à sua frente, que não estava encandeado pelo sol, nem distraído e que o acidente só pode ter ocorrido porque a vítima invadiu a faixa de rodagem proveniente da ciclovia.
Ninguém presenciou o acidente.
LL, vizinho do arguido e colega de trabalho da vítima, circulou na ... no dia dos factos, mas quando os Bombeiros já se encontravam no local.
A testemunha, que fazia aquele trajecto diariamente para o seu local de trabalho, confirmou que a vítima também fazia diariamente aquele percurso, tripulando o velocípede sem motor sempre à direita da via de trânsito, pois receava atropelar as pessoas na ciclovia, e sem capacete.
A testemunha afirmou que, à hora que efectua aquele trajecto, existe encadeamento do sol, facto que o obriga a baixar a pala de protecção solar e a reduzir a velocidade.
A testemunha respondeu antecipadamente a questão que lhe foi colocada pela Ilustre Mandatária dos Demandantes Civis, designadamente quanto à possibilidade de a vítima dirigir-se à faixa de rodagem proveniente da ciclovia, tendo afirmado, sem aguardar a pergunta, que tal era impossível.
HH, circulava na via de trânsito onde ocorreu o acidente quanto foi abordado pelo arguido, o qual lhe pediu ajuda, pois estava muito nervoso. A testemunha telefonou para o 112 e, quando ouviu as sirenes, abandonou o local.
A testemunha confirmou o posicionamento da vítima (i.e., a cerca de cinco metros à frente do veículo do arguido, sem capacete), da bicicleta (i.e., na valeta de escoamento de água, a cerca de cinco a seis metros do veículo do arguido) e do veículo conduzido pelo arguido (cfr. fls. 11 fotografia n.º 4), bem como os danos verificados nos veículos intervenientes no acidente e a posição do sol (i.e., “baixinho, e a dificultar a visibilidade” (sic)).
GG, agente da Polícia de Segurança Pública, em exercício de funções na Secção de Trânsito de …, conhecia o arguido porque tinham amigos em comum, mas não estava com o mesmo há oito anos.
A testemunha realizou as diligências de investigação no inquérito destes autos, mas não esteve no local do acidente no dia em que aquele ocorreu. Apenas esteve no local dezoito meses depois do dia do acidente.
A testemunha utilizou, na investigação realizada, os elementos de prova recolhidos pela testemunha KK, o qual esteve no local no dia do acidente.
A testemunha confirmou que o sol estava baixo e passível de encadear porque tinha posição inferior a 45º e estaria de frente para o veículo automóvel conduzido pelo arguido.
Quanto à velocidade imprimida pelo arguido ao veículo por si conduzido, a testemunha afirmou não ser determinável porque inexistem vestígios no local para o seu apuramento.
Porém, perguntado sobre a causa do acidente, a testemunha afirmou que foi a velocidade excessiva do veículo conduzido pelo arguido face ao encadeamento pelo sol.
Quanto à versão do acidente narrada pelo arguido, a testemunha afirmou não ser verosímil pois, a ter ocorrido o acidente como o arguido descreveu, a vítima e a bicicleta estariam caídos na faixa de rodagem e não na berma.
KK, agente da Polícia de Segurança Pública em exercício de funções na secção de trânsito da Esquadra do …, confirmou o dia e local dos factos, a sua chegada ao local do acidente pelas 8 horas, a presença dos Bombeiros e do veículo da VMER, do arguido e outras pessoas e identificou a vítima no local através dos seus documentos.
Quanto ao posicionamento dos veículos intervenientes no acidente, a testemunha afirmou que os mesmos já não se encontravam no local onde ocorreu a colisão, nem no local onde ficaram imobilizados após essa colisão.
Confrontado com o croqui de fls. 6, a testemunha confirmou o local provável do embate (indicado pelo arguido- fls. 10), as marcas no pavimento de arrastamento da bicicleta (i.e., de ferro no alcatrão – fls. 11 fotografia n.º 3) e o objecto não identificado de fls. 12 (fotografia 6), o qual desconhece se estava relacionado com o acidente.
Confirmou igualmente os danos nos veículos, a ausência de capacete e roupa reflectora na vítima, a possibilidade do nascer do sol à hora do acidente e o desconhecimento da velocidade dos veículos intervenientes.
As testemunhas falam sobre o que viram. Todavia, a percepção de cada um sobre a realidade que observa é variável em função da sua própria experiência pessoal e estrutura emocional. Aquilo que é relevante para uns não é para outros.
Assim, perante uma mesma realidade, podemos ter testemunhas a dizer coisas diferentes sem que isso signifique estarem a faltar com a verdade.
No caso concreto, o tribunal não tem razão para duvidar da idoneidade das testemunhas inquiridas, tal como não tem razão para descredibilizar o arguido, o qual se presume inocente.
Da prova produzida podemos extrair algumas conclusões:
- A velocidade a que circulava o arguido é desconhecida;
- O arguido não estava encandeado pelo sol (não obstante as testemunhas LL e HH afirmarem o encandeamento pelo sol, da análise do documento de fls. 339v a 341, conjugada com as declarações do arguido, conclui-se que tal encandeamento não se verificava);
- As localizações dos veículos e da vítima (tal como indicadas pelo arguido, pois não foram feitas outras diligências para esse apuramento) não são compatíveis com uma velocidade excessiva, mas sim com a velocidade de 40km/h afirmada pelo arguido (considerando que o arguido afirmou circular a uma velocidade máxima de 40km/h e imobilizou a viatura a cerca de dez metros do corpo da vítima);
Distância de travagem = Velocidade2
2(coeficiente de fricção) (aceleração gravitacional)
- A velocidade a que o arguido conduzia – 40km/h – não é compatível com um embate que tenha como consequência as lesões apresentadas pela vítima (cfr. autopsia médico legal de fls. 111 a 113 e 127);
- Os danos apresentados no veículo conduzido pelo arguido não são compatíveis como a circulação do velocípede na frente do arguido, pois, a ser assim, o embate dar-se-ia com o para-choques frontal do veículo automóvel e não na lateral direita, por cima da embaladeira da roda;
- A descrição do acidente constante do libelo acusatório não é compatível com os danos apurados no veículo conduzido pelo arguido;
- A vítima circulava com uma taxa de álcool no sangue de 0,62g/l (cfr. fls. 118);
- A vítima não usava capacete, nem roupa reflectora.
A acusação pública assenta na violação pelo arguido da obrigação de adequar a velocidade às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade de trânsito e outras circunstâncias específicas de modo a circular em segurança.
Porém, não se logrou apurar, com a certeza que exige uma condenação, quais as condições meteorológicas ou ambientais que o arguido deveria acautelar, nem tao pouco se fez qualquer referência à intensidade do trânsito.
Portanto, não se logrou apurar qual a regra do Código da Estrada que o arguido violou e, por conseguinte, qual o dever de cuidado que descurou e que lhe era exigível que não descurasse.
Em suma, não se logrou apurar a dinâmica do acidente.
Em conclusão, não se logrou apurar que o acidente, e o consequente decesso de FF, só se deveram à condução temerária, desatenta e imprudente do arguido, que desprezou os deveres de precaução e respeito pelas normas da segurança estradal, que o arguido tenha actuado com manifesta desatenção e contrariamente às mais elementares regras de cuidado, com inobservância dos deveres básicos exigidos no exercício da condução, atentas as circunstâncias referidas.
Da prova produzida suscita-se a dúvida razoável se o arguido praticou os factos que lhe são imputados.
A simples sujeição de alguém a julgamento, mesmo que a decisão final culmine numa absolvição, não é um ato neutro, quer do ponto de vista das suas consequências morais quer jurídicas. Submeter alguém a julgamento é sempre um incómodo, se não mesmo um vexame.
A regra "in dubio pro reo", enquanto manifestação do princípio da presunção da inocência - princípio estruturante do processo penal -, tem como momento mais relevante a apreciação da prova em julgamento, mas também se manifesta no momento do encerramento do inquérito, quando o Ministério Público, valorando as provas recolhidas, tem de tomar posição, arquivando-o ou formulando acusação. E, evidentemente, também se coloca ao juiz de instrução, após o debate instrutório, devendo, portanto, lavrar despacho de não pronúncia, imposto pela regra "in dubio pro reo", no caso de se encontrar perante uma situação de dúvida inultrapassável quanto às provas produzidas. Com efeito, o estigma que uma acusação naturalmente já comporta não pode fundar-se numa base indiciária duvidosa que equivaleria a afirmar que o arguido é uma pessoa "duvidosamente" respeitadora das leis penais", na expressão de Jaime Vegas Torres, citado por Cruz Bucho, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 1 de Março de 2005, proc. 2/05.1, disponível em www.dgsi.pt, em 02.03.2010 (no mesmo sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14.07.2008, Rec. Penal nº 1633/08 - 4ª Sec, disponível em www.trp.pt em 02.03.2010).
Assim, decorre do in dubio pro reo que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena), que apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal, também não possam considerar-se como provados.
O princípio in dubio pro reo tem aplicação no domínio probatório e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido; é justamente por isso que é no princípio da presunção da inocência, incluído pela Constituição da República Portuguesa entre as garantias do arguido em processo criminal, que se encontra a base constitucional para a sua proteção.
Face ao exposto, impõe-se considerar não provados os factos, nesta parte, tal como ficaram consignados.
Face ao exposto, da concatenação da prova produzida nos termos sobreditos, o tribunal considerou provados e não provados os factos tal como consignados.

A.3.2)–Quanto aos antecedentes criminais e contra-ordenacionais
A ausência de antecedentes criminais do arguido resulta da análise do teor do certificado de registo criminal, junto a fls. 375v.
A ausência de antecedentes contra-ordenacionais resulta do teor do registo individual de condutor de fls. 201.

A.3.3)–Quanto à situação sócio económica e condição pessoal
A factualidade provada respeitante à situação pessoal e sócio-económica do arguido alicerçou-se na valoração positiva das suas declarações, inexistindo outros elementos de prova que as infirmem e não sendo as mesmas excluídas pelas regras da experiência, conjugadas com os depoimentos das testemunhas JJ, filho do arguido, e II, companheira do arguido, as quais estiveram no local após o acidente e o contacto do arguido a dar conhecimento do mesmo.
As testemunhas atestaram o estado de choque do arguido e a afirmação deste de que “não sabia de onde o senhor veio” (sic).
As testemunhas descreveram o arguido como um condutor extremamente cuidadoso, que conduz devagar, cumpre a Lei, sai de casa com uma hora de antecedência relativamente ao seu horário de trabalho e “demora meio dia a chegar ao Algarve” (sic).

A.3.4)–Quanto ao pedido de indemnização deduzido pelos Demandantes Civis, familiares de FF
Os factos provados em 22) a 43) resultam da concatenação dos depoimentos de MM, mãe do namorado de CC (namoro desde ...), NN, namorado de CC, OO, colega de trabalho da vítima e PP, amigo da vítima há doze anos.

Sandra e NN confirmaram a composição do agregado familiar da vítima, as actividades pelos mesmos exercidas, a frequência universitária de CC aquando da morte do pai, o apoio financeiro e com géneros alimentares que prestaram entre Agosto de 2021 e Outubro de 2022, a personalidade da vítima (alegre, afável, cordial, assíduo, educado, disponível, trabalhador e preocupado), o estado emocional de todos após a noticia do falecimento e nos meses subsequentes, o sustento do agregado familiar provido pela vítima e o filho DD, na razão de um salário mínimo nacional cada um, e a relação familiar pois foram descritos como “uma família pobre mas feliz” (sic).

O tribunal concatenou os depoimentos com os documentos de fls. 281-282 (habilitação de herdeiros).
Os factos não provados resultam de não ter sido produzida prova quanto aos mesmos.
Efectivamente, os Demandantes não alegaram e não provaram a concreta alteração verificada na estrutura financeira da família, bem como as despesas que tinham e o rendimento de que dispunham para concluírem que passaram por carência económica e “contaram tostões”, facto que não acontecia quando FF estava vivo.
Afinal, FF aufere salário perto do SMN e DD, que alegadamente assegurou parte da subsistência da família, auferia igual valor. Então, qual a concreta alteração orçamental?
Quanto à situação económica de EE, enfermeiro, emigrado na ..., nada se provou.

A.3.5)–Quanto ao pedido de indemnização deduzido por ...
Os factos provados em 44) a 56) resultam dos depoimentos das testemunhas QQ, técnica de cobranças em exercício de funções na Demandante, a qual confirmou os valores pagos pela Demandante aos herdeiros legais da vítima e o procedimento para o respectivo pagamento, e de RR, técnica administrativa em exercício de funções no ... desde 2015, a qual confirmou a participação do acidente de trabalho da vítima e o pagamento das despesas do funeral pela ... e o respectivo ressarcimento.
Os depoimentos das testemunhas, objectivos e descomprometidos, foram concatenados com a prova documental junta aos autos a fls. 301 (contrato de seguro de acidentes de trabalho), 302 a 304 (folhas de férias), 305 a 307 (acordo na tentativa de conciliação), 308 a 316 (comprovativos de pagamentos), 344v a 345v (contrato seguro).
*
A restante matéria alegada, que não foi levada nem aos factos provados, nem aos factos não provados é porque não tem por objecto factos, mas valorações e conclusões.
A mesma matéria será analisada no lugar próprio, que é a fundamentação jurídica desta sentença”.

3.–Em 02.11.2023, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
“Ref.ª 37395589 do PE:
Compulsada a sentença proferida considera-se existir um lapso de escrita nos factos considerados provados em 2) e 3).
Efectivamente, resulta da motivação da decisão de facto que não se logrou provar, sem margem de dúvida, a dinâmica do acidente objecto dos autos, razão pela qual, o arguido foi absolvido do crime imputado.
Assim, os factos considerados provados em 2) e 3) devem ter-se como não provados.
Nos termos do artigo 380.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal, determino a correcção da sentença nos termos sobreditos”.
*

Apreciação do recurso

Impugnação da decisão sobre a matéria de facto quanto aos pontos I a IX da matéria de facto dada como não provada, bem como dos factos considerados não provados na sequência do despacho proferido em 02.11.2023, nos termos do art. 412º, nº 3 e 4 do C.P.Penal, e violação do princípio in dubio pro reo

O recorrente defende que existe erro de julgamento quanto aos mencionados factos da matéria de facto dada como não provada (conclusões II, XVII e XVIII).
O erro de julgamento (previsto no art. 412º, nº 3 do C.P.Penal) ocorre quando o Tribunal recorrido considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em primeira instância e a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nº 3 e 4 do art. 412º do C.P.Penal.
Quando se pretenda a impugnação ampla da decisão de facto, o recorrente tem de cumprir o aludido ónus de tríplice especificação, impondo-se que o recorrente, nos termos do disposto no art. 412º, nº 3 do C.P.Penal, especifique:
a)-Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)-As provas que devem ser renovadas”.
A especificação dos “concretos pontos de facto traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados, a especificação das concretas provas só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida e a especificação das provas que devem ser renovadas” implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, o que pressupõe a existência de um dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do C.P.Penal (no atual quadro legal a renovação, na Relação, da prova que foi produzida em1ª instância só é admitida se se verificarem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artº 410º e houver razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo – artº 430º do C.P.Penal).
“Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.), salientando-se que o S.T.J, no seu acórdão n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações». Em síntese: para dar cumprimento às exigências legais da impugnação ampla tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência - o que não obsta a que, também nesta eventualidade, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens)cfr. Acórdão deste TRL de 02.12.2020, Proc. nº 3606/15.0T9SNT.L1-5.
Se o recorrente assim proceder pode o tribunal de recurso reapreciar a prova produzida concretamente indicada e vir a modificar a decisão quanto à matéria de facto, nos termos do artº 431º, al. b) do C.P.Penal.
Como bem refere o Acórdão deste TRL de 11.03.2021, Proc. nº 179/19.8JDLSB.L1-9 “embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspetos fácticos (cfr. artº 428º e 431º, al. b) do C.P.Penal), não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto. A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto. Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, por vezes quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (no mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percebidos, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»). O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado». E convém referir que quando o tribunal recorrido forma a sua convicção com provas não proibidas por lei, prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formulem os Recorrentes. Normalmente, os erros de julgamento capazes de conduzir à modificação da matéria de facto pelo tribunal de recurso consistem no seguinte: dar-se como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem razão de ciência da mesma que permita a referida prova; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido ou o declarante não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram; dar-se como provado um facto com base num documento do qual não consta o que se deu como provado; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições em que esta podia operar”.

Por conseguinte, o recurso amplo da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento nem a reapreciação total dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação sobre a matéria impugnada, com base na audição ou análise das provas concretamente indicadas, sem prejuízo de o tribunal de recurso poder ouvir e visualizar outras passagens que não as indicadas (nº 6 do artº 412º do C.P.Penal), procurando indagar sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto impugnados que o recorrente especifique como incorretamente julgados.

Nessa medida, na reapreciação da prova há que articular os poderes de conhecimento do tribunal de recurso com os princípios relativos à produção e à valoração da prova no tribunal de 1.ª instância, especialmente com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127º do C.P.Penal (nos termos do qual, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente), e com princípio do in dubio pro reo(postulado do princípio da presunção de inocência – consagrado no art. 32º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa - que impõe a absolvição sempre que a prova não permite resolver a dúvida acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da atuação do acusado e constitui um verdadeiro limite normativo ao princípio da livre apreciação da prova, regulando o procedimento do Tribunal quando tenha dúvidas sobre a matéria de facto), princípios que valem também para o tribunal de recurso.

No entanto, nesse poder de fiscalização ou reapreciação o tribunal de recurso está condicionado pela ausência de imediação e de oralidade que acontece na grande maioria dos recursos em que tal questão é suscitada (pelo facto de não haver a produção direta da prova) e se realizam plenamente em 1ª instancia onde o tribunal “viu e ouviu o arguido, as testemunhas e os peritos, apreciou o seu comportamento não verbal, formulou as perguntas que considerou pertinentes da forma que entendeu ser mais conveniente e confrontou essas pessoas com a prova pré-constituída indicada pelos sujeitos processuais, tudo faculdades que o tribunal da Relação, pelo menos quando não é requerida a renovação da prova, não pode não beneficiar. Por isso, e não por força do princípio da livre apreciação da prova, o tribunal da 2ª instância não tem, quanto ao recurso da matéria de facto, os mesmos poderes que tinha a 1ª instância, só podendo alterar o aí decidido se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida – alínea b) do n.º3 do artigo 412.º do C.P.P.” (Acórdão deste TRL de 10.10.2007, Proc. nº 8428/2007-3).

Como bem refere o Acórdão deste TRL de 02.12.2020, supra referido, cumpre “não olvidar, como é jurisprudência corrente dos nossos Tribunais Superiores, que o tribunal de recurso só poderá censurar a decisão do julgador, fundamentada na sua livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se se evidenciar que a solução por que optou, de entre as várias possíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum. Se a decisão sobre a matéria de facto do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção”.

Face ao exposto e tendo presente estes princípios vejamos a impugnação de facto do recorrente.

O recorrente entende que são os seguintes os factos incorretamente dados como não provados: 2.- À sua frente, e no mesmo sentido, circulava no velocípede sem motor de marca ..., conduzido por FF; 3.- Nestas circunstâncias de tempo, e após circular cerca de 420 metros após rotunda convergida com a ..., o veículo conduzido pelo arguido embateu com a sua frente, do lado direito, na traseira do velocípede sem motor; I.- O arguido embateu em FF; II.- Como consequência do embate, FF e o velocípede, foram elevados, tombando sobre o capô do veículo automóvel e, de seguida, sido projetados para a frente; III.- A bicicleta ficou posicionada na via, a cerca de 2 / 3 metros da frente do veículo automóvel, e o seu condutor posicionado do lado direito, fora da faixa de rodagem; IV.- O arguido conduzia a uma velocidade não concretamente apurada, mas certamente excessiva face às condições que se apresentavam; V.- No momento em que ocorreu a colisão, o arguido reunia todas as condições para efetuar uma manobra de ultrapassagem, sem colidir e arrastar o velocípede sem motor e o seu condutor; VI.- O acidente só ocorreu por distração ou desatenção do condutor do veículo ligeiro, que de forma inexplicável embateu na traseira do velocípede que circulava na mesma via e sentido, a uma velocidade mais reduzida; VII.- O arguido atuou de forma livre e voluntária, com total falta de cuidado, atenção e prudência, em desrespeito pelas mais elementares regras estradais, que o mesmo podia e devia ter acautelado, designadamente a obrigação de adequar a velocidade às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade de trânsito e outras circunstâncias específicas de modo a circular em segurança, sem colocar em perigo outros utilizadores da mesma via, que o mesmo podia e devia ter acautelado; VIII.- Porque não o fez, não obstante saber que a sua conduta era proibida e punida por lei, causou o acidente supra descrito, bem como as trágicas consequências que daí advieram para o ocupante do velocípede; IX.- O arguido bem sabia da proibição e da punibilidade por lei penal de tais condutas.

Alega, no essencial, a análise que faz da prova produzida - com recurso às declarações do arguido (gravação áudio do minuto 01:15 ao minuto 02:47; do minuto 04:35 ao minuto 07:19 e do minuto 08:49 ao minuto 09:15), ao depoimento da testemunha GG (gravação áudio do minuto 07:16 ao minuto 10:05, do minuto 13:10 ao minuto 14:16 e do minuto 28:32 ao minuto 30:17), ao relatório técnico de acidente de viação de fls. 213 a 237, subscrito pela testemunha (conclusão III), à participação de acidente de viação, anexo e croqui de fls. 4 a 6, 205 a 209 (conclusões III e X), à reportagem fotográfica de fls. 210 a 212 (conclusões III e XI) e ao relatório de autópsia de fls. 112, 113 e 127 (conclusões III e XII) - que, no seu entender, impõe decisão diversa da recorrida. Também questiona a livre apreciação da prova que foi feita pelo Tribunal a quo que invocou a criação no seu espírito de uma dúvida razoável e intransponível que, no entender do recorrente, não se verificou face à prova por si elencada (conclusão XIV).

Desta forma, o recorrente menciona provas que considera imporem decisão diversa da recorrida quanto aos mencionados pontos de facto que considera terem sido incorretamente julgados e indica as provas e os segmentos das gravações áudio que suportam o seu entendimento divergente, do que se conclui que cumpriu as exigências legalmente impostas no art. 412º do C.P.Penal para a impugnação ampla da matéria de facto relativa aos mencionados pontos da matéria de facto dada como não provada, pelo que se conhecerá da mesma, nos termos infra expostos.

No entanto, “não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo. Na verdade, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios. Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo, não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto. O que aqui se mostra necessário é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal” (Acórdão do TRP de 10.01.2024, Proc. nº 16/20.0T9STS.P1).

No que concerne aos meios de prova testemunhal elencados pelo recorrente importa, desde logo, sublinhar que os mesmos têm que ser apreciados concatenadamente, devendo ser conjugados e estabelecidas correlações internas entre todos os meios de prova produzidos, confrontando-os de forma que, ainda que de sinal contrário, daí resulte uma decisão linear, fazendo-se inferências ou deduções de factos conhecidos, desde que tal se justifique, e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência.

A prova é analisada conjuntamente e não basta indicar provas que permitam uma diferente convicção para alterar a decisão do tribunal sobre a matéria de facto, antes exigindo a lei provas que imponham uma convicção diferente.

Na verdade, as razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras não dependem do critério de cada um, mas antes do juízo de valoração livremente realizado por quem compete julgar os factos, de acordo com a imediação (que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova) e tendo por base as regras da experiência comum.
E, a imediação1 confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reações humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de fatores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.

O exposto não significa “que o tribunal de recurso não possa pôr em causa essa credibilidade através da análise dos depoimentos prestados e com base neles escrutinar a aplicação das máximas da experiência comum que estiveram na base da opção do julgador. Ou seja, o tribunal superior não pode criticar a opção pela valoração da credibilidade de um determinado meio de prova; não pode dizer que rejeita o convencimento do juiz de 1.ª instância porque este optou por um determinado depoimento por ser mais credível. Porém, já tem o dever de analisar o depoimento prestado em si mesmo considerado e concluir se a versão que apresenta é objectivável, ou seja, se qualquer um aceitaria o raciocínio explanado como compatível com o sentido comum. Não se trata de o tribunal superior se convencer do depoimento e da sua certeza mas de o considerar como uma conclusão razoável” (cfr. Acórdão do STJ de 19.12.2007, Proc. nº 07P4203).

O que se pretende num julgamento é conhecer um acontecimento pretérito e por isso, a valoração das provas sobre o mesmo tem de traduzir uma atividade racional, objetivada e motivada, para além de toda a dúvida razoável, consistente na eleição da hipótese mais provável entre as diversas reconstruções possíveis dos factos.

No caso em apreço, o recorrente entende que o Tribunal a quo não poderia socorrer-se do princípio in dubio pro reo para fundamentar a decisão sobre a matéria de facto pois, de acordo com as declarações do arguido, com o depoimento da testemunha GG e com a prova documental que menciona, o acidente ocorreu em conformidade com a factualidade que consta da acusação, o que implicaria que a factualidade por si mencionada fosse considerada provada.

Desta forma, o recorrente não se limita a invocar a prevalência do seu juízo pessoal sobre a livre apreciação que serviu de base à factualidade não provada e ao resultante juízo de absolvição, antes pretende demonstrar que a prova por si indicada só poderia ter conduzido, no domínio factual, a uma decisão diversa da que foi proferida e ao consequente juízo condenatório do arguido.

Vejamos se lhe assiste razão.

A sentença recorrida dá a conhecer como o tribunal formou a sua convicção quanto à factualidade provada constante dos pontos 1, 6 a 12 e 65, quando refere terem existido “alguns elementos pacificamente referidos pelo arguido e pelas testemunhas, designadamente que, no dia 13-07-2021, pelas 07h15, o arguido AA conduzia o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula ..-..-QQ, na ..., concelho do …, no sentido oeste-este, na via da direita e dirigia-se ao seu local trabalho, a ..., sita no ....
No mesmo sentido, circulava o velocípede sem motor de marca ..., conduzido por FF.
Aquele local, é uma recta composta por duas faixas de rodagem, uma em cada sentido, com 6 metros de largura, de boa visibilidade, dotadas de duas vias de trânsito com 3 metros de largura.
Os sentidos de trânsito estão separados por um separador em blocos de cimento, com a largura de 2 metros.
No sentido em que circulavam os veículos, existe uma inclinação ascendente de 1,9%, tendo a berma cerca de 0,85 metros.
O pavimento é de aglomerado asfáltico, em mau estado de conservação e manutenção.
No local havia sinalização adequada, e inexistiam quaisquer obstáculos que obstruíssem ou impedissem a normal circulação.
O local onde ocorreu o acidente tem boa visibilidade em toda a largura e extensão.
A velocidade máxima de circulação permitida naquela via era de 60 km/hora.
O sinistrado, para além de não estar munido de nenhum equipamento de segurança também não possuía nenhum dispositivo de iluminação ou de aviso de presença. existe ao lado dessa mesma estrada uma ciclovia
Quanto ao apuramento dos factos supra referidos e consignação dos mesmos como provados, o tribunal ainda valorou a participação de acidente de viação e croqui de fls. 4 a 6 e 205 a 209, o relatório técnico de acidente de viação de fls. 213 a 237 (veículos intervenientes e descrição do lugar do acidente) e a reportagem fotográfica de fls. 210 a 212”.

No que respeita à dinâmica do acidente, o Tribunal a quo começa, desde logo, por afirmar que “a prova não converge” e consta da motivação de facto, a este propósito, que “o arguido declarou que, as circunstâncias de tempo descritas na acusação pública, circulava na ..., sentido oeste-este, em direção ao seu local de trabalho (..., no ...), a uma velocidade de 30 a 40Km/h (quando a velocidade máxima permitida no local é de 60km/h), quando ouviu um embate no guarda lamas frontal direito, tendo imobilizado de imediato o veículo automóvel (…) confirmou os danos ocorridos na sua viatura e os ocorridos no velocípede sem motor (cfr. fls. 11, fotografia n.ºs 4 e 5, fls. 342 e 342v). Confrontado com o croqui de fls. 6, o arguido confirmou o local do embate (i.e. onde consta escrito a medição 20,50m), o local onde estava o corpo de FF (i.e. onde está escrito alínea a) e fls. 209 a 213) e afirmou que não estava encadeado pelo sol, pois este incidia na lateral do veículo e não de frente (cfr. documento de fls. 339v a 341). O arguido afirmou peremptoriamente que não circulava qualquer veículo à sua frente, que não estava encandeado pelo sol, nem distraído e que o acidente só pode ter ocorrido porque a vítima invadiu a faixa de rodagem proveniente da ciclovia.
Ninguém presenciou o acidente.
LL, vizinho do arguido e colega de trabalho da vítima, circulou na ... no dia dos factos, mas quando os Bombeiros já se encontravam no local (…) fazia aquele trajecto diariamente para o seu local de trabalho, confirmou que a vítima também fazia diariamente aquele percurso, tripulando o velocípede sem motor sempre à direita da via de trânsito, pois receava atropelar as pessoas na ciclovia, e sem capacete. A testemunha afirmou que, à hora que efectua aquele trajecto, existe encadeamento do sol, facto que o obriga a baixar a pala de protecção solar e a reduzir a velocidade.
(…)
HH, circulava na via de trânsito onde ocorreu o acidente quanto foi abordado pelo arguido, o qual lhe pediu ajuda, pois estava muito nervoso. A testemunha telefonou para o 112 e, quando ouviu as sirenes, abandonou o local (…) confirmou o posicionamento da vítima (i.e., a cerca de cinco metros à frente do veículo do arguido, sem capacete), da bicicleta (i.e., na valeta de escoamento de água, a cerca de cinco a seis metros do veículo do arguido) e do veículo conduzido pelo arguido (cfr. fls. 11 fotografia n.º 4), bem como os danos verificados nos veículos intervenientes no acidente e a posição do sol (i.e., “baixinho, e a dificultar a visibilidade” (sic)).
GG, agente da Polícia de Segurança Pública, em exercício de funções na Secção de Trânsito de … (…) utilizou, na investigação realizada, os elementos de prova recolhidos pela testemunha KK, o qual esteve no local no dia do acidente. A testemunha confirmou que o sol estava baixo e passível de encadear porque tinha posição inferior a 45º e estaria de frente para o veículo automóvel conduzido pelo arguido. Quanto à velocidade imprimida pelo arguido ao veículo por si conduzido, a testemunha afirmou não ser determinável porque inexistem vestígios no local para o seu apuramento. Porém, perguntado sobre a causa do acidente, a testemunha afirmou que foi a velocidade excessiva do veículo conduzido pelo arguido face ao encadeamento pelo sol. Quanto à versão do acidente narrada pelo arguido, a testemunha afirmou não ser verosímil pois, a ter ocorrido o acidente como o arguido descreveu, a vítima e a bicicleta estariam caídos na faixa de rodagem e não na berma.
KK, agente da Polícia de Segurança Pública em exercício de funções na secção de trânsito da Esquadra do …, confirmou o dia e local dos factos, a sua chegada ao local do acidente pelas 8 horas (…) Quanto ao posicionamento dos veículos intervenientes no acidente, a testemunha afirmou que os mesmos já não se encontravam no local onde ocorreu a colisão, nem no local onde ficaram imobilizados após essa colisão.
Confrontado com o croqui de fls. 6, a testemunha confirmou o local provável do embate (indicado pelo arguido- fls. 10), as marcas no pavimento de arrastamento da bicicleta (i.e., de ferro no alcatrão – fls. 11 fotografia n.º 3) e o objecto não identificado de fls. 12 (fotografia 6), o qual desconhece se estava relacionado com o acidente.
Confirmou igualmente os danos nos veículos, a ausência de capacete e roupa reflectora na vítima, a possibilidade do nascer do sol à hora do acidente e o desconhecimento da velocidade dos veículos intervenientes.
(…)
No caso concreto, o tribunal não tem razão para duvidar da idoneidade das testemunhas inquiridas, tal como não tem razão para descredibilizar o arguido, o qual se presume inocente.
Da prova produzida podemos extrair algumas conclusões:
-A velocidade a que circulava o arguido é desconhecida;
-O arguido não estava encandeado pelo sol (não obstante as testemunhas LL e HH afirmarem o encandeamento pelo sol, da análise do documento de fls. 339v a 341, conjugada com as declarações do arguido, conclui-se que tal encandeamento não se verificava);
- As localizações dos veículos e da vítima (tal como indicadas pelo arguido, pois não foram feitas outras diligências para esse apuramento) não são compatíveis com uma velocidade excessiva, mas sim com a velocidade de 40km/h afirmada pelo arguido (considerando que o arguido afirmou circular a uma velocidade máxima de 40km/h e imobilizou a viatura a cerca de dez metros do corpo da vítima);
Distância de travagem = Velocidade2
2(coeficiente de fricção) (aceleração gravitacional)
- A velocidade a que o arguido conduzia – 40km/h – não é compatível com um embate que tenha como consequência as lesões apresentadas pela vítima (cfr. autopsia médico legal de fls. 111 a 113 e 127);
- Os danos apresentados no veículo conduzido pelo arguido não são compatíveis como a circulação do velocípede na frente do arguido, pois, a ser assim, o embate dar-se-ia com o para-choques frontal do veículo automóvel e não na lateral direita, por cima da embaladeira da roda;
- A descrição do acidente constante do libelo acusatório não é compatível com os danos apurados no veículo conduzido pelo arguido;
- A vítima circulava com uma taxa de álcool no sangue de 0,62g/l (cfr. fls. 118);
- A vítima não usava capacete, nem roupa reflectora.
A acusação pública assenta na violação pelo arguido da obrigação de adequar a velocidade às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade de trânsito e outras circunstâncias específicas de modo a circular em segurança.
Porém, não se logrou apurar, com a certeza que exige uma condenação, quais as condições meteorológicas ou ambientais que o arguido deveria acautelar, nem tao pouco se fez qualquer referência à intensidade do trânsito.
Portanto, não se logrou apurar qual a regra do Código da Estrada que o arguido violou e, por conseguinte, qual o dever de cuidado que descurou e que lhe era exigível que não descurasse.
Em suma, não se logrou apurar a dinâmica do acidente.
Em conclusão, não se logrou apurar que o acidente, e o consequente decesso de FF, só se deveram à condução temerária, desatenta e imprudente do arguido, que desprezou os deveres de precaução e respeito pelas normas da segurança estradal, que o arguido tenha actuado com manifesta desatenção e contrariamente às mais elementares regras de cuidado, com inobservância dos deveres básicos exigidos no exercício da condução, atentas as circunstâncias referidas.
Da prova produzida suscita-se a dúvida razoável se o arguido praticou os factos que lhe são imputados.
(…)
Assim, decorre do in dubio pro reo que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena), que apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal, também não possam considerar-se como provados.
O princípio in dubio pro reo tem aplicação no domínio probatório e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido; é justamente por isso que é no princípio da presunção da inocência, incluído pela Constituição da República Portuguesa entre as garantias do arguido em processo criminal, que se encontra a base constitucional para a sua proteção.
Face ao exposto, impõe-se considerar não provados os factos, nesta parte, tal como ficaram consignados.
Face ao exposto, da concatenação da prova produzida nos termos sobreditos, o tribunal considerou provados e não provados os factos tal como consignados”.

Desta forma, o Tribunal a quo assume ter extraído as supra referidas conclusões da prova produzida enquanto que o recorrente considera tais conclusões incompatíveis com a mesma por não estarem assentes em justificações lógicas e admissíveis face às regras da experiência comum.
No caso vertente, uma vez que ninguém presenciou o acidente, a prova produzida relativa à dinâmica do acidente terá de resultar da conjugação das declarações do arguido com os demais elementos testemunhais e documentais do processo, em obediência às regras da ciência, da lógica e da experiência.
Sendo certo que as declarações do arguido (atento o seu interesse no desfecho do processo) deverão ser valoradas desde que não se mostrem contrariadas por outros meios de prova credíveis e pelos dados objetivos consistentes, nomeadamente, nas partes dos veículos danificadas, em consequência do embate. Neste particular, há que atender à distância de projeção do corpo da vítima (20,5 m), às graves lesões, descritas no relatório de autópsia (que foram causa direta e necessária da sua morte) e à ausência de rastos de travagem, os quais são demonstrativos da dinâmica e violência do embate, incompatíveis com a condução cuidada e a velocidade adequada, bem como, com o surgimento inesperado da vítima na via de trânsito, nas circunstâncias descritas pelo arguido, conforme infra se explicitará.
Ainda no que respeita às declarações do arguido, há que sublinhar que este limitou-se afirmar que sentiu um embate no carro, não viu a vítima a circular à sua frente nem a bicicleta (gravação áudio 1:50 a 2:10), a qual só podia ter vindo da ciclovia (gravação áudio 6:33), referiu que circulava à velocidade de 30/40 Km/h (gravação áudio 7:09) e negou ter sido encandeado pelo sol (gravação áudio 27:13).

No entanto, resulta do teor dos documentos juntos aos autos os seguintes dados objetivos que foram pacificamente aceites pelo arguido e pelas testemunhas:
a)-O arguido conhece bem o local pois, naquela altura, fazia aquele trajeto todos os dias, à mesma hora (gravação áudio 1:35);
b)-O embate ocorreu junto ao limite direito da faixa de rodagem, em conformidade com o croquis de fls. 209 e em consequência dos vestígios aí existentes (o arguido e a testemunha KK confirmaram que o embate ocorreu no local que consta do croquis);
c)-O local do embate configura uma reta com boa visibilidade, em toda a largura e extensão, a faixa de rodagem (atento o sentido de oeste para este) apresenta uma berma de 0,85m e paralelamente à faixa de rodagem, do lado direito, existe uma ciclovia com a largura de 3,00m, separada da faixa de rodagem por uma zona ajardinada que culmina num lancil, existindo ainda paralelamente à via um abaloamento para passagem de águas (cfr. fotografias de fls. 210 a 212);
d)-Era possível o arguido ver o velocípede a uma distância de, pelo menos, 100 m (cfr. fotografias de fls. 210 a 212, fls. 231 e depoimento da testemunha GG – gravação áudio 10:02);
e)-O embate ocorreu depois de o arguido ter percorrido cerca de 420 metros desde o início da reta (cfr. fls. 221 e depoimento da testemunha GG – gravação áudio 13:40);
f)-O veículo conduzido pelo arguido não deixou rastos de travagem (cfr. foto 6 de fls. 207, croquis de fls. 209 e depoimento da testemunha GG – gravação áudio 57:20) e ficaram marcas de riscos do velocípede no pavimento demonstrativas de ter sido arrastado (cfr. foto 3 de fls. 206 e depoimento da testemunha KK – gravação áudio 11:13);
g)-Aquando do embate, o arguido conduzia fazendo uso da “pala” para o sol (cfr. fotografia 4 de fls. 206 e fls. 231);
h)-Em consequência do embate, o veículo sofreu danos no lado direito do para-brisas que ficou estilhaçado e na parte lateral direita e o velocípede sofreu danos na roda traseira (cfr. fotografia 4 de fls. 206 e fotografia 5 de fls. 207);
i)-Após a colisão, o corpo da vítima ficou fora da faixa de rodagem e a 20,5 m do local do embate (cfr. croquis de fls. 209, tendo a testemunha KK explicado que nesse local existia uma “poça de sangue” – gravação áudio 5:59);
j)-Em consequência do embate, a vítima sofreu fratura de crânio, de coluna e de costelas, com laceração da espinal medula de órgãos torácicos e abdominais, o que causou o seu óbito, no local do embate, às 7h54m (cfr. relatório de autópsia de fls. 11 – 113).
Da verificação destes factos conhecidos (precisos, concordantes e incontroversos) - retirando deles ilações baseadas num juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado na lógica e em regras da experiência comum que permitam chegar a um resultado verdadeiro (próximo da certeza ou para além de toda a dúvida razoável) - é possível reconstruir a dinâmica do acidente.
Porém, com fundamento nestes elementos, o Tribunal a quo retirou conclusões que, no nosso modesto entender, não se mostram suportadas nas regras da lógica e da experiência.
A afirmação do arguido de que a vítima entrou inesperadamente na sua faixa de rodagem vinda da ciclovia mostra-se contrariada pelas características da via (atentos os obstáculos existentes entre a ciclovia e a faixa de rodagem) conjugadas com a visibilidade da reta onde ocorreu o embate.

Por outro lado, atentas as explicações avançadas pela testemunha KK, com base na sua experiência, de que caso o velocípede entrasse na via, vindo da ciclovia, “o corpo enrolava-se sobre o carro … que é normalmente o que acontece nos cruzamentos com as trotinetes” (gravação áudio 22:54) e não teria sido projetado a 20,5 m para fora da faixa de rodagem, após ter sido elevado e caído sobre a parte direita do vidro para-brisas do veículo conduzido pelo arguido, provocando o seu estilhaçamento (considerando que o velocípede foi arrastado, o estilhaçamento do vidro para-brisas só pode ter sido provocado pela projeção do corpo da vítima).

A testemunha GG concretizou, de forma credível e sustentada, que, antes do embate, o velocípede “circulava à frente do veículo automóvel” (gravação áudio 5:50) pois, caso o velocípede entrasse na faixa de rodagem vindo da ciclovia ou da zona ajardinada da ciclovia, invadindo a faixa de rodagem inesperadamente, ele não seria projetado para aquela posição (gravação áudio 29:00), o velocípede “estaria na faixa de rodagem bem como o seu condutor” (gravação áudio 30:14).

Por conseguinte, conjugando estes depoimentos com o teor do relatório técnico de avaliação de acidente de viação de fls. 213 a 237, bem como com os dados objetivos supra referidos, tudo conjugado com as regras da ciência, da lógica, da experiência e normalidade do acontecer, podemos concluir, para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido e a vítima circulavam no mesmo sentido e na mesma via de trânsito, seguindo o velocípede, conduzido pela vítima, à frente do veículo conduzido pelo arguido, junto ao limite direito da faixa de rodagem. Tanto mais que o veículo conduzido pelo arguido embateu na roda traseira do velocípede conduzido pela vítima, após ter percorrido cerca de 420 m após a rotunda convergida com a ....

Por outro lado, apesar de o Tribunal a quo ter concluído que “o arguido não estava encandeado pelo sol (não obstante as testemunhas LL e HH afirmarem o encandeamento pelo sol, da análise do documento de fls. 339v a 341 conjugada com as declarações do arguido, conclui-se que tal encandeamento não se verificava)”, não justifica o motivo pelo qual, quanto a este concreto aspeto, valoriza as declarações do arguido em detrimento dos depoimentos destas testemunhas e opta por valorar, também sem qualquer justificação, o teor do documento de fls. 339v a 341 (junto pelo arguido com a contestação – cfr. art. 24º) destinado a “designers e consumidores de energia solar” e relativo à posição solar no dia, hora e local do sinistro, do qual nada resulta quanto ao possível encandeamento pela luz solar, reportado ao local do embate, por referência ao sentido de circulação do veículo conduzido pelo arguido e a este indivíduo em concreto.

Nessa medida, a existência, ou não, do encandeamento terá de resultar da conjugação de outros elementos de prova que, conforme infra se demonstrará, contrariam a versão do arguido, a este respeito.

Neste campo, assume especial relevância a circunstância de o arguido não ter visto a vítima nem o velocípede antes do embate (apesar de se tratar de um local com boa visibilidade, em toda a largura e extensão, e ser-lhe possível ver o velocípede a uma distância de, pelo menos, 100 m) conjugada com o facto de, aquando do embate, o arguido conduzir fazendo uso da “pala” para o sol, o que encontra justificação na posição baixa do sol e no possível encandeamento mencionados pelas testemunhas LL2, HH3, GG4 e KK5.

Ora, não tendo sido avançada qualquer outra circunstância justificativa de o arguido não ter visto a vítima6, os mencionados depoimentos combinados com os dados objetivos (o arguido não viu a vítima nem o velocípede, apesar da boa visibilidade do local, e conduzia fazendo uso da “pala” para o sol), tudo conjugado com as regras da lógica, da experiência e com a normalidade do acontecer leva-nos a concluir (contrariamente à convicção do Tribunal a quo) que o arguido não viu a vítima nem o velocípede por ter ficado encandeado pelo sol.

No que respeita à velocidade a que circulava o arguido, este afirmou que circulava à velocidade de 30/40 Km/h e o Tribunal a quo extraiu da prova produzida as conclusões de que “a velocidade a que circulava o arguido é desconhecida (…) As localizações dos veículos e da vítima (tal como indicadas pelo arguido, pois não foram feitas outras diligências para esse apuramento) não são compatíveis com uma velocidade excessiva, mas sim com a velocidade de 40km/h afirmada pelo arguido (considerando que o arguido afirmou circular a uma velocidade máxima de 40km/h e imobilizou a viatura a cerca de dez metros do corpo da vítima); (…) A velocidade a que o arguido conduzia – 40km/h – não é compatível com um embate que tenha como consequência as lesões apresentadas pela vítima (cfr. autopsia médico legal de fls. 111 a 113 e 127.

No entanto, apesar de não ter sido apurado onde ficaram o veículo e o velocípede após o embate7 (não constam do croquis por terem sido movimentados após o embate8), resultou da prova produzida que o arguido não viu a vítima nem o velocípede antes do embate (o que, como vimos, decorre da inexistência de rastos de travagem), que o corpo da vítima foi projetado a cerca de 20,5m do local do embate e que esta sofreu graves lesões, descritas no relatório de autópsia, que foram causa direta e necessária da sua morte, no local do embate.

Efetuando a devida ponderação destes dados objetivos, com base nas regras da lógica e da experiência, somos forçados a concluir que o arguido conduzia a uma velocidade não concretamente apurada, mas certamente excessiva face às condições que se apresentavam por ser inadequada às condições meteorológicas ou ambientais, nomeadamente perante o referido encandeamento solar.

Por fim, cumpre acrescentar que não resultou da prova produzida que o acidente tenha sido causado por qualquer falha por parte do condutor do velocípede (que conduzia com uma taxa de álcool no sangue de 0,62g/L, sem estar munido de nenhum equipamento de segurança, dispositivo de iluminação ou de aviso de presença).

Como bem se diz no Relatório Técnico de Acidente de viação (cfr. fls. 231) “não obstante o facto de o condutor do velocípede conduzir sob efeito de álcool, constituindo uma infração rodoviária grave, tendo-se apurado uma taxa de álcool no sangue de 0,62 +/-0,08 g/L, atendendo ao modo como ocorreu o sinistro, é entendimento que não terá tido influência as causas do sinistro. A apreciação foi reforçada com os danos resultantes no veículo automóvel, visíveis na parte direita daquele, indiciando que o velocípede circulava pelo lado direito da via de circulação quando ocorreu a colisão”.

Face ao exposto, a decisão proferida em função do princípio in dubio pro reo não merece acolhimento.

Referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4ª edição revista, pág. 519) que “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.

Com efeito, este princípio (do in dubio pro reo) resume-se a uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, subsistindo no espírito do Julgador uma dúvida insanável sobre a verificação ou não de determinado facto, deve o Julgador decidir sempre a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.

Posto isto, perante versões contraditórias sobre os factos, considera-se legítima a dúvida sobre a verdade do ocorrido.

No caso em apreço e nos termos expostos, a prova produzida é demonstrativa da dinâmica do acidente, inexistindo a possibilidade razoável de uma solução alternativa ou de uma explicação racional e plausível diferente da que mereceu o nosso acolhimento, pelo que, inexistindo uma encruzilhada dubitativa, não há necessidade de fazer apelo ao princípio in dubio pro reo.

Também resulta da prova produzida, em conformidade com o exposto, que o acidente e o consequente decesso de FF deveram-se ao exercício, por parte do arguido, de uma condução descuidada, desatenta e imprudente, o qual desprezou os deveres de precaução e de respeito pelas normas estradais, atentas as circunstâncias referidas.

Por conseguinte, impõe-se considerar como provados os seguintes factos (eliminando-os dos factos não provados):
2.–À sua frente e na mesma via, junto ao limite direito da faixa de rodagem, circulava o velocípede sem motor de marca ..., conduzido por FF;
3.–O arguido circulava a velocidade não concretamente apurada mas nunca inferior a 40 Km/h;
4.–Atento o seu sentido de marcha, e depois de percorrer cerca de 420 metros após a rotunda convergida com a ..., o arguido embateu com a parte direita do seu veículo automóvel na roda traseira do velocípede conduzido por FF, que seguia junto ao limite direito da faixa de rodagem;
5.–Em consequência do embate, o corpo de FF foi elevado, tombando sobre a parte direita do vidro para-brisas do veículo conduzido pelo arguido, que de imediato estilhaçou, tendo sido posteriormente projetado a cerca de 20,5 metros do local do embate, para fora da faixa de rodagem, ficando caído na zona ajardinada paralela à via de circulação, tendo o velocípede sido arrastado pelo pavimento;
6.–No momento em que ocorreu a colisão, o arguido reunia todas as condições para efetuar uma manobra de ultrapassagem, sem colidir, arrastar o velocípede sem motor e projetar o seu condutor;
7.–O acidente só ocorreu por o condutor do veículo ligeiro, em virtude de ter sido encandeado pela luz solar e não ter adequado a velocidade a tal circunstância, ter embatido na traseira do velocípede que circulava na mesma via e sentido, a uma velocidade mais reduzida;
8.–O arguido atuou de forma livre e voluntária, com total falta de cuidado, atenção e prudência, em desrespeito pelas mais elementares regras estradais, que o mesmo podia e devia ter acautelado, designadamente a obrigação de adequar a velocidade às condições meteorológicas ou ambientais, de modo a circular em segurança, sem colocar em perigo outros utilizadores da mesma via, que o mesmo podia e devia ter acautelado;
9.– Porque não o fez, não obstante saber que a sua conduta era proibida e punida por lei, causou o acidente supra descrito, bem como as trágicas consequências que daí advieram para o ocupante do velocípede;
10.–O arguido bem sabia da proibição e da punibilidade por lei penal de tais condutas.
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Consigna-se que a alteração introduzida em 7. relativa ao encandeamento pela luz solar obedece ao disposto no art. 358º, nº 2 do C.P.Penal na medida em que resulta do que foi alegado pelo arguido na sua contestação.
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto.
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O arguido AA vem acusado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 137.º n.º 1 e 13.º e 15.º do C.Penal, pelo que, atentos os factos considerados provados, impõe-se apurar se os mesmos integram a prática deste crime.

Dispõe o art. 137º do CPenal que “quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

Como bem se diz no Acórdão do TRP de 09.05.2018, Proc. nº 20/15.0GTPNF.P2: “São elementos constitutivos do crime de homicídio por negligência: - conduta humana traduzida numa acção ou omissão; - infracção do dever objectivo de cuidado; - possibilidade de imputação objectiva do resultado (a morte) à conduta contrária ao dever; - ausência de causas de justificação da conduta; - autor imputável e com as faculdades e experiência que lhe permitam reconhecer o dever de cuidado objectivamente exigido e prever o curso causal que conduz ao resultado concreto produzido.
Verifica-se a negligência sempre que o agente, ao actuar, omite os deveres de cuidado que as circunstâncias concretas inerentes àquele impõe ou são exigíveis para evitar eventos danosos. Nessa medida, os resultados só se verificam por o agente não tomar as precauções adequadas a evitá-las e, como tal, não prevê ou não prevê com exactidão esse resultado co (mo consequência normal e adequada da sua conduta.
E os cuidados reclamados são tanto maiores quanto maior for a perigosidade decorrente do exercício de uma actividade para com terceiros, maxime, o tráfego rodoviário.
Mas para que se possa imputar ao agente o juízo de reprovação ético-social por não conformar a sua actuação com a ordem jurídica, é necessário que o agente possa e seja capaz de, face às circunstâncias, conhecer delas e tomar as precauções devidas e idóneas para evitar o resultado. É preciso lançar mão do critério do homem concreto “individualizado”, no sentido de se saber se outra pessoa, com as mesmas qualidades do agente, não teria rodeado a sua conduta com as precauções devidas para evitar o resultado e, como tal, actuado de modo diverso (…).
A negligência é por natureza o campo onde a conduta se traduz na omissão de dever objectivo de cuidado ou de atenção, que o agente, dentro das suas possibilidades e de acordo com as circunstâncias do caso, deveria ter actuado, não o fazendo ou fazendo-o imperfeitamente, assim originando a produção de um resultado que deveria e poderia, também de acordo com as circunstâncias concretas, ter previsto”.

Da factualidade provada resulta, de forma clara, que o embate ocorreu porque o arguido omitiu as precauções que um homem medianamente diligente e sagaz teria adotado naquela situação concreta a fim de evitar um embate.

A manifestação mais evidente da falta de cuidado consiste na violação de normas estradais que pautam o exercício da condução rodoviária, atentos os riscos que lhe são inerentes.

A tal respeito há que invocar o disposto no art. 24º, nº 1 do Código da Estrada, nos termos do qual “o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.

Para a punição do agente por negligência tem que haver violação do cuidado objetivamente imposto e não ser afastado o perigo ou o evitar do resultado apesar de aquele se apresentar como pessoalmente cognoscível e este como pessoalmente evitável.
“O art. 15º do C.Penal define as duas formas que pode assumir o tipo da negligência: a negligência consciente e a negligência inconsciente. O tipo de negligência consciente supõe a representação do resultado típico. O tipo de negligência inconsciente supõe a omissão da própria representação do resultado típico. A diferença reside apenas no elemento cognitivo do tipo subjetivo. Mas a negligência consciente também se distingue do dolo eventual, precisamente pela consideração de um elemento volitivo do tipo subjetivo: a não conformação do agente com a realização do facto” (Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, pág. 94 e 95).

Na atuação negligente, a censura coloca-se na produção de resultado, incidindo sobre a capacidade ou possibilidade do agente de prever corretamente a realização do tipo legal de crime e de não ter querido preparar-se para representar tais resultados ou não os querer representar corretamente.

A verdade é que, no caso vertente, dúvidas não restam, atentos os factos provados, que o comportamento contraordenacional do arguido traduziu-se na condução com excesso de velocidade, face às condições que se apresentavam, pois, apesar de reunir todas as condições para efetuar a manobra de ultrapassagem do velocípede, não adequou a velocidade ao encandeamento pela luz solar e, junto ao limite direito da faixa de rodagem, embateu com a parte direita do seu veículo automóvel na roda traseira do velocípede que seguia à sua frente e na mesma via e sentido, tendo agido com violação de dever de cuidado.

Há ainda que acrescentar que o arguido é o único e exclusivamente culpado do acidente (cuja conduta violou o disposto nos arts. 13º, nº 1 e 3 e 24º, nº 1 do Código da Estrada), devido à sua atuação negligente, não se provando que o acidente foi causado por qualquer falha por parte do FF, condutor do velocípede (não obstante conduzir co uma taxa de de álcool no sangue de 0,62 g/L, sem estar munido de nenhum equipamento de segurança, sipositivo de iluminação ou de aviso de presença).

No caso em apreço, atenta a factualidade dada como provada, uma vez que a violação do dever de cuidado por parte do arguido causou uma morte e esta era previsível no contexto dos factos apurados, pois aquele resultado era conjeturável em função da violação do indicado dever (o que configura uma atuação negligente na forma consciente – art. 15º, al. a) do C.Penal), consideramos que o arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada, um crime de homicídio negligente p. e p. pelo 137º nº 1 do C.Penal.
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Escolha e determinação da medida concreta da pena

O crime de homicídio negligente, previsto no artº 137º, nº 1 do C.Penal, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.

O critério de escolha da pena encontra-se fixado no art. 70º do C.Penal nos termos do qual, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Nos termos do art. 40º do C.Penal, essas finalidades reconduzem-se à proteção de bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade.

A proteção dos bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, ou seja, na utilização da pena como instrumento para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração), atendendo-se sobretudo ao sentimento que o crime causa na comunidade, tendo em conta diversos índices, como a frequência e o espaço em que o mesmo ocorre e o alarme que está a provocar na comunidade. Já a prevenção geral negativa ou de intimidação da generalidade apenas pode surgir como um efeito lateral da necessidade de tutela dos bens jurídicos.

Por seu lado, a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu retorno ao tecido social lesado, reporta-se à chamada prevenção especial, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que, no futuro, ele cometa novos crimes, pretendendo-se obter a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva) e a dissuasão da prática de futuros crimes (prevenção especial negativa), atendendo-se a diversas variáveis como, por exemplo, a conduta, a idade, a vida familiar e profissional e os antecedentes do agente.

Como ensina Figueiredo Dias (in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, págs. 331 a 333), “… são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação. Bem se compreende que assim seja: sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum exacto daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie de pena. (…) é inteiramente distinta a função que, no contexto da escolha da pena, exercem as exigências de prevenção geral e de prevenção especial. A estas últimas não pode deixar de ser atribuída uma prevalência decidida, por serem sobretudo elas que justificam, em perspectiva político-criminal, todo o movimento de luta conta a pena de prisão. Por seu lado, a prevenção geral surge aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização”.
E conclui que “desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafactiva das expectativas comunitárias”.

Também Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, págs. 227) refere que “a escolha das penas é determinada apenas por considerações de natureza preventiva, uma vez que as “finalidades da punição” são exclusivamente preventivas (…). O tribunal deve, pois, ponderar, apenas as necessidades de prevenção geral e especial que o caso concreto suscite (…). A articulação entre estas necessidades deve ser feita do seguinte modo: em princípio, o tribunal deve optar pela pena alternativa ou de substituição mais conforme com as necessidades de prevenção especial de socialização, salvo se as necessidades de prevenção geral (rectius, a defesa da ordem jurídica) impuserem a aplicação da pena de prisão (…). Esta regra vale quer para a escolha entre penas alternativas quer para a escolha de penas substitutivas”.

É, pois, ponto assente que a escolha da pena depende unicamente de considerações de natureza preventiva, na sua dupla vertente positiva, geral (de integração: a proteção dos bens jurídicos) e especial (reintegração do agente na sociedade).

A culpa, enquanto limite da pena (art. 40º, nº 2 do C.Penal), apenas funciona ao nível da determinação da sua medida concreta, como prevê o art. 71º, nº 1 do C.Penal.

No caso vertente, as exigências de prevenção geral são significativas atenta a elevada sinistralidade e mortalidade que se verificam nas estradas portuguesas tornam urgente a punição com severidade dos crimes rodoviários, sobretudo os que têm consequências mais gravosas para a vida e integridade física na medida em que causam ainda maior inquietação no seio da comunidade.

Por outro lado, apreciado o comportamento do arguido, em audiência de julgamento, verificamos que, num quadro em que não existiam testemunhas presenciais, este apresentou uma versão do acidente com vista a imputar a culpa na ocorrência do mesmo ao condutor do velocípede.

Em face do exposto, sem prejuízo da inserção familiar e profissional e da ausência de antecedentes criminais, consideramos que a pena de multa não cumpre as referidas exigências, ficando aquém do ponto comunitariamente suportável da tutela do bem vida humana, pelo que entendemos que só a pena privativa de liberdade satisfará, no caso concreto, os apontados objetivos da punição.

No que respeita à determinação da medida da pena, de acordo com os quadros normativos relativos à finalidade das penas (a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade e em caso algum poderá ultrapassar a medida da culpa – art. 40º, nº 1 e 2 do C.Penal) e determinação da sua medida (em função da culpa e das exigências de prevenção – art. 71º, nº 1 do C.Penal), deve à pena (destinada a proteger o mínimo ético-jurídico fundamental) ser imputada uma dinâmica para que cumpra o seu especial dever de prevenção.

Entre aquele limite mínimo de garantia da prevenção e máximo da culpa do agente, a pena é determinada em concreto por todos os fatores do caso, previstos nomeadamente no nº 2 do referido art. 71º, que relevem para a adequar tanto quanto possível à ilicitude da ação e culpa do agente.

Neste sentido, a culpa (pressuposto-fundamento da pena que constitui o princípio ético-retributivo), a prevenção geral (negativa, de intimidação ou dissuasão, e positiva, de integração ou interiorização) e a prevenção especial (de ressocialização, reinserção social, reeducação mas que também apresenta uma dimensão negativa, de dissuasão individual) representam três exigências atendíveis na escolha da pena, principio este tendencial uma vez que podem apresentar incompatibilidade.

Sendo assim, a primeira operação da determinação da pena deve ser a graduação qualitativa da culpa, isto é, do desvalor jurídico da atuação voluntária contrária ao Direito, materializada numa ação violadora da lei penal.

Regressando ao caso concreto, há que atender:
- ao mediano grau de ilicitude dos factos;
- o grau da culpa é o normal - homicídio com negligência, a forma menos grave de violação de deveres de cuidado;
- as condições de vida do arguido – familiar, social e profissionalmente integrado, sem antecedentes criminais;
- a personalidade do arguido que não verbalizou arrependimento, imputando o acidente a causas provenientes da vítima, o que denota pouca interiorização do desvalor da sua atuação e pouca capacidade crítica.

Tudo ponderado, tomando como referências a culpa do agente, como limite absoluto da pena, ponderados os mínimos exigíveis pela prevenção dissuasiva e os limites decorrentes da prevenção especial positiva como critério último para determinação da medida ótima da pena, quanto ao arguido entendemos que se afigura justo, adequado e proporcional aplicar uma pena de um ano e seis meses de prisão.

Impõe-se, agora, determinar se é caso de substituir a pena de prisão por uma pena não detentiva prevista na lei.

Constitui princípio fundamental do sistema punitivo do Código Penal o da preferência fundamentada pela aplicação das penas não privativas da liberdade, consideradas mais eficazes para promover a integração do delinquente na sociedade e dar resposta às necessidades de prevenção geral e especial.

Em conformidade com o disposto no nº 1 do art. 50º do C.Penal, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”, ou seja, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

O art. 50º do C.Penal consagra um poder-dever, ou seja um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos.

Reconhecendo os efeitos que normalmente se encontram associados à execução de penas de prisão de curta duração, designadamente a desinserção familiar e profissional do condenado e a inevitável exposição ao contágio prisional, o legislador manifestou clara preferência pelas reações criminais não detentivas, impondo, no domínio da pequena e média criminalidade, a opção pela pena não privativa da liberdade sempre que através dela se revele possível a realização adequada das finalidades da punição. E, uma vez que as finalidades da punição são exclusivamente preventivas, serão sempre e só considerações de prevenção geral e especial que decidirão da possibilidade de preferir, em concreto, uma reação não detentiva à aplicação de uma pena de prisão.

Nesta perspetiva, só deverá o tribunal recusar a aplicação da pena substitutiva quando, através dela, não seja possível realizar a desejável e necessária ressocialização ou, sendo embora possível, resulte de todo o modo comprometida a confiança da comunidade na validade do Direito e na vigência das instituições.

São as razões de prevenção geral, traduzidas nas exigências mínimas e irrenunciáveis de salvaguarda da crença da sociedade, na manutenção e no reforço da validade da norma incriminadora violada, que determinam a possibilidade de reinserção social em liberdade que inspira o instituto da suspensão da execução da pena.

Considerando que o arguido AA se encontra inserido familiar, profissional e socialmente e não tem antecedentes criminais, entendemos que a simples censura pública e solene do seu crime e a ameaça da execução da pena de prisão funcionarão como uma advertência para a não repetição da conduta e bastarão para realizar as finalidades da punição, não se lhe opondo particulares exigências de prevenção especial (os fatores relacionados com o grau de culpa do agente são apreciados sede de escolha e determinação concreta da pena, constituindo o limite máximo e inultrapassável desta).

Por outro lado, não se vislumbram razões de prevenção geral que desaconselhem a suspensão da execução da pena pela prática do crime em apreço, sendo, então, de entender que, no caso destes autos, os fins das penas serão melhor realizados se se declarar tal suspensão.

Em face do exposto, decide-se suspender a execução da pena aplicada pelo período de um ano e seis meses.

No caso concreto, entendemos que a suspensão da execução da pena de prisão, só permitirá realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição se ficar subordinada ao dever de pagar uma quantia aos demandantes.

Tal como se afirma no Acórdão do STJ de 11.02.2004, Proc. nº 03P4033: 1ª- A decisão de suspensão de execução da pena de prisão, quando sujeita a condições, deveres ou regras de conduta, nos termos permitidos pelo artigo 50°, 2, do Código Penal, tem de pressupor e conter um razoável equilíbrio entre natureza das imposições à pessoa condenada, e a eficácia e integridade da medida de substituição. 2ª- A imposição de condições de muito difícil ou não suportável cumprimento não satisfaz, nem as injunções para a reintegração dos valores afectados e para a condução de vida de acordo com tais valores, nem conformação da vontade da pessoa condenada na aceitação e no respeito das sujeições que devem acompanhar e potenciar o reencaminhamento para o reencontro com os valores do direito; é, por isso, que o artigo 51°, n° 2, do Código Penal determina que «os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir». 3ª- A natureza excessiva ou dificilmente praticável do dever imposto determinará, em si, necessariamente, uma posição interior de anomia, rejeição ou desinteresse, contraditória com as finalidades e a intenção de política criminal subjacentes ao instituto da suspensão da execução. 4ª- Por isso, os deveres ou condições a estabelecer na suspensão da execução da pena devem ser adequados, pessoal e materialmente possíveis, num plano de reordenação para os valores do direito que previna, no essencial, a reincidência, ou que possa contribuir para a reparação das consequências do crime”.

Por conseguinte, face à situação social e profissional do arguido e em obediência ao princípio da razoabilidade e/ou da proporcionalidade, consideramos que tal dever deve consistir no pagamento da quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) aos demandantes, a ser paga em 2 (duas) prestações iguais, com vencimento, a primeira, decorridos 9 (nove) meses contados sobre o trânsito em julgado da decisão e, a seguinte, decorridos que estejam 9 (nove) meses sobre a anterior e até à data limite da suspensão da execução da pena de prisão (art. 50º nº 1 e 5 e 51º nº 1, al. a) do C.Penal), a qual está ao alcance do arguido (cfr. art. 51º, nº 2 do C.Penal). Assim, melhor se satisfazendo a função das penas e a necessidade de interiorização do desvalor da sua conduta, tendo em vista a prevenção da prática de novos ilícitos criminais. E, concomitantemente, reparar, de alguma forma o mal praticado e os danos sofridos pela vítima.
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Pena acessória de proibição de conduzir

No que respeita à pena acessória, dispõe o art. 69º, nº 1, al. a) do C.Penal que “é condenado na proibição de conduzir veículos com motor ou na proibição de pilotar aeronaves com ou sem motor, consoante os casos, por um período fixado entre 3 meses e 3 anos quem for punido: a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos, no exercício da condução de veículo com motor ou no exercício da pilotagem de aeronave com ou sem motor, com violação das regras de trânsito rodoviário ou das regras do ar, respetivamente, e por crimes previstos nos artigos 289.º, 291.º, 292.º e 292.º-A”.

Os critérios de determinação da medida desta pena acessória são os mesmos já tidos em conta a propósito da determinação da medida da pena principal, os quais decorrem dos art. 40º e 71º do C.Penal.
“O que não significa, no entanto, como pertinentemente se chama à atenção no acórdão da Relação do Porto de 11/09/1995, in CJ, Ano XX, Tomo IV, pág.ª 229, que não possa existir distinção nos objectivos de política criminal ligados às penas principais e às penas acessórias “enquanto os da pena principal se ligam aos fins genéricos da aplicação de qualquer pena (essencialmente prevenção geral e especial), já os da pena acessória se dirigem mais especificamente à recuperação do comportamento estradal do condutor transviado” (cfr. Acórdão deste TRL de 22.02.2023, Proc. nº 338/20.0GLSNT.L1-5)

Atentos os fatores referidos, especialmente as circunstâncias e consequências da sua conduta e a ausência de antecedentes criminais, o tribunal fixa tal medida em oito meses.
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IV.–DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram esta 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e consequentemente:
a)- condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. nos termos do art. 137º, nº 1 do C.Penal na pena de um ano e seis meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, na condição de proceder ao pagamento aos demandantes da quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), por conta da indemnização, a ser paga em 2 (duas) prestações iguais, com vencimento, a primeira, decorridos 9 (nove) meses contados sobre o trânsito em julgado da decisão e, a seguinte, decorridos que estejam 9 (nove) meses sobre a anterior e até à data limite da suspensão da execução da pena de prisão.
b)-Condenar o arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de oito meses, nos termos do art. 69º, n.º 1, al. a) do C.Penal.
Sem custas.
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Lisboa, 9 de abril de 2024


Luísa Oliveira Alvoeiro
(Juíza Desembargadora Relatora)
Carlos Espírito Santo
(Juiz Desembargador Adjunto)
Ana Cláudia Nogueira
(Juíza Desembargadora Adjunta)



1.“A imediação é absolutamente fundamental para avaliar a prova produzida, designadamente para aferir da credibilidade de um depoimento, uma vez que este não ocorre no vazio, numa realidade assética, antes desenvolve-se num contexto captado pelo julgador, em audiência de julgamento, na observação da respetiva posição corporal, gestos, olhares e hesitações, tom de voz, embaraços e desembaraços evidenciados ao longo do mesmo” (Acórdão deste TRL de 14.11.2023, Proc. nº 30/22.PEAMD.L1-5).
2.Consta da motivação da matéria de facto que “a testemunha afirmou que, à hora que efectua aquele trajecto, existe encadeamento do sol, facto que o obriga a baixar a pala de protecção solar e a reduzir a velocidade.
3.Consta da motivação da matéria de facto que ”a testemunha confirmou … a posição do sol (i.e. “baixinho, e a dificultar a visibilidade” sic”.
4.Consta da motivação da matéria de facto que “a testemunha confirmou que o sol estava baixo e passível de encadear porque tinha posição inferior a 45º e estaria de frente para o veículo automóvel conduzido pelo arguido”.
5.Consta da motivação da matéria de facto que a testemunha “confirmou … a possibilidade do nascer do sol à hora do acidente”.
6.Para além da avançada pelo arguido (entrada inesperada da vítima na sua faixa de trânsito vinda da ciclovia) que, atentos os fundamentos expostos, não é verosímil.
7.O que é, desde logo, impeditivo do uso da fórmula matemática pelo Tribunal a quo que, para o efeito, usou, para além do local do embate, o local de paragem do veículo automóvel indicado pelo arguido nas suas declarações, o que não encontra sustentação em nenhum outro meio de prova nem o Tribunal a quo explica a valoração de tais declarações quanto a este aspeto em concreto.,
Cfr. Participação de Acidente de fls. 4 e 5, croquis de fls. 6 e depoimento da testemunha KK (gravação áudio – 3:20) que afirmou que os mesmos já não se encontravam no local onde ocorreu a colisão nem no local onde ficaram imobilizados após essa colisão..