Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8776/21.5T8LSB.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: EMPREITADA
ABANDONO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
RESOLUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O dono da obra pode resolver o contrato se o comportamento do empreiteiro indicia o abandono da obra e não a retoma num prazo razoável depois de o dono da obra o interpelar para o efeito sob pena de resolução.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

A intentou uma acção declarativa comum contra B-Unipessoal, Lda, e R-Unipessoal, Lda, pedindo ao tribunal que declarasse válida e eficaz a resolução do contrato de empreitada operada pela autora e condenasse as rés a restituir à autora o montante de 37.896,33€, correspondente à diferença entre o valor do preço pago e o valor das obras realizadas, bem como a indemnizar a autora pelos prejuízos causados pela impossibilidade de rentabilizar o seu imóvel, no valor de 33.250€.
Alega, para o efeito, ter celebrado com as rés um contrato de empreitada que estas não cumpriram, tendo a autora interpelado as mesmas para o fazer e resolvido o contrato em face da atitude omissiva delas. Alega ainda que o valor da obra realizada é inferior ao valor que pagou, pretendendo a devolução do que pagou em excesso e a indemnização pelos demais prejuízos causados.
A 1.ª ré contestou alegando que a sua relação contratual se estabeleceu apenas com a segunda ré para com quem se comprometeu a orçamentar a obra adjudicada a esta pela autora, mediante pagamento.
A 2.ª ré contestou alegando que foi a autora quem não cumpriu o contrato impedindo-a de continuar a executar a obra por lhe ter retirado o acesso ao local; e reconveio, pedindo que seja: a\ declarado que a 2ª ré executou, no imóvel, propriedade da autora, trabalhos não compreendidos no objecto da empreitada, no total de 10.380€; b\ declarado que a autora desistiu da empreitada, para efeitos do disposto no artigo 1229 do CC; e que c\ a autora seja condenada a pagar-lhe 23.474,39€, acrescido de juros que se vencerem sobre este valor, desde a data da notificação da contestação até integral pagamento, pela desistência da empreitada pela autora. Para tanto, alegou que foi a autora quem desistiu da empreitada, vedando o acesso à obra a partir do final de Janeiro de 2020.
A autora replicou, pugnando pela improcedência do pedido reconvencional.
(aproveitou-se quase na íntegra o relatório da sentença recorrida)
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenando a 2ª ré a restituir à autora 32.590,78€, absolvendo-a do mais peticionado. A 1ª ré foi absolvida do pedido. O pedido reconvencional foi julgado improcedente e, em consequência, a autora absolvida dele.
A 2.ª ré recorreu desta sentença, para que seja revogada e substituída por outra que julgue a reconvenção parcialmente procedente e, em consequência condene a autora a pagar à ré 16.106,10€, acrescido de juros que se vencerem sobre este valor; para o efeito impugna grande parte da decisão da matéria de facto e, quanto ao Direito, no essencial, considera que, em vez do abandono da obra pela ré, o que se verificou foi uma resolução ilícita do contrato pela autora, correspondendo a uma desistência da obra por parte desta, que deve levar à sua condenação naquele pedido (no texto do corpo e das conclusões do recurso a ré chega ao valor de 66.106,10€ e não 16.106,10€; recorde-se que, na reconvenção, a ré pedida pela desistência o valor de 23.474,39€).
A autora contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
*
Questões que importa decidir: a impugnação da decisão da matéria de facto; se o pedido de restituição do preço não devia ter sido considerado procedente; e se o pedido da 2.ª ré relativamente à desistência da obra pela autora devia ter sido considerado procedente, com juros.
Factos provados [o facto 46 limita-se a ser o resultado de uma soma, dos factos 30 a 45, que está errada; por isso eliminou-se o facto na sequência da impugnação pela 2.ª ré]:
1\ A 1ª ré é uma sociedade que tem como objecto social actividades de consultoria arquitectónica no âmbito da elaboração de projectos de construção e de transformação de edifícios, planeamento urbanístico e arquitectura paisagística; actividades de design, designadamente a criação de projectos específicos e consultoria; obras especializadas de construção, exploração de imóveis para turismo e actividade de alojamento local se dedica a elaboração de projectos de arquitectura, cf. Doc. 1 contestação.
2\ A 2.ª ré tem por objecto social a compra, venda, revenda e arrendamento de imóveis; construção de edifícios e outras obras de engenharia civil; demolições.
3\ Em 25/09/2019, a autora dirigiu-se às instalações da 1.ª ré para a apresentação pelos administradores das rés do orçamento de remodelação do seu imóvel.
4\ Nessa reunião, a autora pediu às rés e estas aceitaram, que fossem rectificados alguns pontos do orçamento que então lhe foi apresentado, comprometendo-se estas a enviar uma versão rectificada nos dias subsequentes.
5\ Ainda nessa reunião, o gerente da 2.ª ré manifestou interesse em iniciar as obras logo na primeira semana de Outubro.
6\ A autora pretendia passar a habitar o imóvel.
7\ O preço acordado para a empreitada foi de 89.601,34€.
8\ As condições de pagamento acordadas entres as partes foram as seguintes:
- 40% do preço seria pago com a adjudicação;
- 40% numa fase intermédia;
- 20% com a conclusão da obra.
9\ No dia 26/09/2019, em troca de e-mails, o gerente da 1.ª ré comprometia-se perante a autora com as normas de funcionamento para obras do condomínio.
10\ No dia 01/10/2019 foi transferido, de uma conta da mãe da autora para a conta da 2ª ré o valor de 35.000€ para a adjudicação da empreitada.
11\ A correspondente factura/recibo deste pagamento veio a ser emitida pela 2.ª ré em 15/10/2019.
12\ No dia 07/10/2019, a 2ª ré instalou o seu estaleiro no imóvel da autora e iniciaram a obra.
13\ No mesmo dia, a 2ª ré afixou uma informação no elevador do prédio sobre o decurso das obras.
14\ O orçamento rectificado para “remodelação de apartamento com chave na mão” implicava:
- Trabalhos prévios de desconexão de ramais de ligação, com um valor de com um valor de 394,98€;
- Demolições de divisões e protecções, vãos, instalações, revestimentos e equipamento, com o valor de 3.273,90€;
- Vãos - caixilharias, portas interiores e armários, com o valor de 11.876,59€;
– Instalações – infra-estruturas de telecomunicações, rede TV e Net, aquecimento, climatização e A.Q.S., sistemas de climatização, eléctricas, abastecimento de água e gás, com o valor de 20.016,38€;
- Isolamentos térmicos, impermeabilizações e estanquicidade, com o valor de 1.609,01€;
- Revestimentos descontínuos ligeiros, pinturas em paramentos exteriores e interiores, pinturas e tratamentos em madeira e metais, com o valor de 26.589,49€;
- Equipamentos fixos e sinalização em casa de banho, torneiras e cozinhas/galerias, com o valor de 25.276,03€;
- Gestão de resíduos inertes com o valor de 564,96€;
Tudo no valor global de 89.601,34€.
15\ Por acordo entre as partes, o preço da obra foi reduzido em 17.337,77€, para o montante de 72.263,57€, com a retirada da remodelação da cozinha do objecto da empreitada.
16\ A obra decorreu com um bom ritmo durante todo o mês de Outubro e inícios de Novembro de 2019.
17\ Em 15/11/2019, 6.ª-feira, a autora remeteu ao arquitecto [da 1.ª ré] um e-mail com o seguinte teor: “Boa tarde Sr. arquitecto, estou a mandar este e-mail porque estou desde 2ª-feira passada à espera que seja marcada uma reunião com o eng. civil. Aproveito também para mencionar o meu desagrado em relação ao andamento dos trabalhos, pois esta semana estive lá por duas vezes e não estava ninguém a trabalhar. As alterações que pedi no que respeita a água, luz e tubagens exaustor também não foram efectuadas. Em relação às janelas continuo a aguardar exemplo e fabricante. Gostaria também de mencionar que na casa de banho da minha filha em vez de banheira vai ser uma base de duche igual à minha com 75 cm de largo e todo o comprimento. Gostaria também de saber qual a planificação da obra. Melhores Cumprimentos.”
18\ Em 19/11/2019, a autora remeteu novo e-mail ao arquitecto com o seguinte teor: “[…] mais uma vez cá estou eu a escrever um e-mail pois passou mais um dia e nada se adiantou em relação ao meu pedido de reunião com o Engenheiro Civil! Mais uma vez repito que a situação que está criada me preocupa e que estudos deviam ter sido previamente antes de retirar as paredes (embora segundo as plantas nenhuma seja mestra) Não sei se a solução por vós encontrada é suficientemente eficaz e gostaria muito de ver os cálculos elaborados que vos permitem dizer que aquilo que lá está é a melhor solução. Na minha opinião não é! E por esse motivo aguardo reunião urgente com o vosso engenheiro! Obrigada. Melhores Cumprimentos.”
19\ Em 10/12/2019, foi feita mais uma transferência, no valor de 15.000€ de uma conta da mãe da autora para a conta da 2ª ré.
20\ A factura/recibo correspondente a tal valor foi emitida pela 2ª ré em 30/12/2019.
21\ Em Dezembro de 2019 a obra parou.
22\ Os gerentes das rés deixaram de atender os telefonemas da autora ou da sua mãe.
23\ O mês de Dezembro de 2019 terminou e o mês de Janeiro de 2020 iniciou-se sem que tivesse sido realizado qualquer outro trabalho no imóvel da autora
24\ As ferramentas e equipamentos foram retirados.
25\ Por carta datada de 16/01/2020, enviada à 2ª ré, através de mandatário, a autora interpela-a para, com a máxima urgência, retomar os trabalhos e informar por escrito quando será concluída a empreitada, sob pena de, na ausência de resposta ou se tal resposta não for satisfatória, resolver com justa causa a empreitada e reclamar o pagamento de uma indemnização pelos danos causados (doc. 11).
26\ A 2ª ré limitou-se a transmitir que a empreitada não tinha prazo de conclusão e que estaria insatisfeita com as alterações introduzidas na empreitada pela autora.
27\ E não retomou os trabalhos no imóvel da autora.
28\ Em 10/02/2020, a autora enviou uma comunicação, por e-mail, à 2ª ré com o seguinte teor: “[…] tenho presente os seguintes factos: i) A empreitada da minha casa deveria ter sido concluída até ao final do mês de Janeiro de 2020 (considerando já um mês de tolerância); ii) decorrido o prazo acordado, a obra está longe de estar concluída e, aliás, V. Exas abandonaram a obra que pouco ou nada avançou em Dezembro e Janeiro; iii) em 16/01/2020 o meu advogado enviou uma interpelação formal que aqui dou por reproduzida. iv) em resposta à referida interpelação V. Exas assumiram uma posição inaceitável (designadamente, tentando defender a tese de que, por um lado, não havia qualquer prazo para a conclusão da obra e por outro que eu estaria a reduzir unilateralmente o âmbito da empreitada quando, na realidade, apenas foi retirada definitivamente a cozinha, o que foi expressamente aceite por V. Exas); Em face do exposto, serve a presente para formalizar a rescisão com justa causa da empreitada. Agradeço a imediata devolução das chaves e do comando da garagem em poder de V. Exas que poderão deixar na portaria do condomínio. Aproveito igualmente para comunicar que irei fazer um levantamento do estado actual dos trabalhos para depois comparar com a quantia de 50.000€ paga por conta da empreitada. Caso V. Exas pretendam fazer o mesmo exercício poderão fazê-lo mediante prévio agendamento comigo até ao final da semana que vem.”
29\ A autora enviou às rés, em 17/02/2020, uma carta registada com o mesmo conteúdo do e-mail.
30\ Foram realizados a 100% os trabalhos prévios de desconexão de ramais de ligação, com um valor de 394,98€.
31\ Foram realizados a 100% os trabalhos demolição de divisões e protecções, com um valor de 745,18€.
32\ Foram realizados a 100% os trabalhos de remoção de revestimento interior de armário encastrado, com um valor de 542,18€.
33\ Foram realizados a 100% os trabalhos de desmontagem de instalações, com um valor de 802,43€.
34\ Foram realizados a 100% os trabalhos de demolição de revestimentos, com um valor de 157,13€.
35\ Foram realizados a 100% os trabalhos de desmontagem de equipamentos, com um valor de 712,41€.
36\ Foram realizados pelo menos 85% os trabalhos de infra-estruturas de telecomunicações, com um valor de 593,12€.
37\ No que respeita à instalação de rede TV e NET, apenas foram realizados os trabalhos de instalação do cabo dieléctrico para interiores, com um valor de 2.249,10€.
38\ Foram realizados pelo menos 90% os trabalhos nos sistemas eléctricos, com um valor de 2.201,57€.
39\ Foram realizados a 100% os trabalhos no sistema de abastecimento de água, com um valor de 238,85€.
40\ Foram realizados a 100% os trabalhos no sistema de abastecimento de gás, com um valor de 208,68€.
41\ Foram realizados pelo menos 20% os trabalhos de revestimentos descontínuos ligeiros, com um valor de 318,55€.
42\ Foram realizados os trabalhos de pinturas em paramentos interiores com um valor de 1.148,85€.
43\ Foram realizados pelo menos 20% os trabalhos no conjunto de aparelhos sanitários em casa de banho secundária, com um valor de 327,26€.
44\ Foram realizados pelo menos 12,5% os trabalhos no conjunto de aparelhos sanitários em casa de banho principal, com um valor de com um valor de 658,57€.
45\ Foram realizados a 100% os trabalhos de gestão de resíduos, com um valor de 594,96€.
46\ O valor global dos trabalhos realizados pela 2ª ré no imóvel da autora ascende a 14.153,84€.
47\ A autora pretendia arrendar a sua casa e obter dessa forma uma fonte de rendimento.
48\ Em Março de 2020 é decretado em Portugal o estado de emergência que determina o recolhimento domiciliário em virtude da Pandemia Covid 19.
49\ As obras foram retomadas por novo empreiteiro em Abril/Maio de 2020.
50\ Após a conclusão das obras, a autora muda-se em Setembro de 2020.
51\ A autora arrenda a sua casa em 15/11/2020 pelo valor mensal de 3.500€.
52\ No âmbito da empreitada em apreço, o serviço prestado pela 1ª ré consistiu na execução de um orçamento e assessoria da obra, em caso de necessidade específica que eventualmente se verificasse.
53\ A mãe da autora convidou o sócio-gerente da 2ª ré para executar umas obras de remodelação de um apartamento e apresentar um orçamento.
54\ A 2ª ré, por não ter prática com a elaboração de orçamentos muito discriminados, solicitou a colaboração da 1ª ré para a elaboração desse orçamento e assessoria na obra.
55\ Em 25/09/2019, e devido ao facto de a 2ª ré não ter disponível umas instalações adequadas para a realização da reunião, foi esta realizada nas instalações da 1ª ré, para apresentação do orçamento.
56\ Nessa ocasião, a autora pediu que fossem feitas algumas alterações e o orçamento iria ser rectificado em conformidade.
57\ O sócio-gerente da 1ª ré deslocou-se ao imóvel em apreço por duas vezes: a primeira vez para fazer o levantamento das medidas para a elaboração do orçamento; e a segunda vez, para verificar se uma determinada parede que se pretendia demolir era estrutural, tendo aconselhado que fosse o Engenheiro, que trabalha com a 2ª ré a analisar e decidir.
58\ O sócio-gerente da 1ª ré organizou a comunicação entre a autora e a 2ª ré na fase inicial da elaboração do orçamento.
59\ A 2ª ré é uma sociedade unipessoal de pequena dimensão, sem estrutura administrativa.
60\ Ocasionalmente, recorre à 1ª ré, na pessoa do arquitecto, para a ajudar na elaboração de orçamentos, propostas mais detalhadas, e prestar assessoria em contexto de obra.
61\ Em data que não consegue precisar, mas que julga em meados de 2019, o sócio e gerente da 2ª ré conheceu a mãe da autora, por ocasião da realização de uma obra de construção e remodelação num locado, de um prédio da sua propriedade.
62\ Em meados de Setembro de 2019, a mãe da autora contactou a 2ª ré, na pessoa do seu sócio e gerente, manifestando vontade em contratar os seus serviços para executar uma obra de remodelação, num apartamento propriedade da autora.
63\ Em Setembro 2019, foi elaborado um orçamento “chave na mão", com data de 21/09/2019, no montante total de 69.391,15€, o qual previa a desconexão de ramais de ligação, demolições, revestimentos, desmontagem de equipamento, pinturas, fornecimento de equipamentos e materiais, trabalhos de electricidade, canalização, entre outros.
64\ Em 25/09/2019, a autora, a sua mãe e os sócios e gerentes das rés reuniram-se nas instalações da 1ª ré, visando discutir a proposta financeira.
65\ Nesse encontro, a autora adjudicou à 2ª ré o orçamento apresentado.
66. Foram pedidas alterações à proposta, no que respeita ao número de aparelhos de ar condicionado e aos materiais (cerâmicas) escolhidos, os quais teriam de ser substituídos por outros de maior qualidade.
67\ Ficou assente que seria apresentado, mais tarde, um orçamento rectificativo, o que veio a suceder em 29/09/2019, a perfazer o montante total de 89.601,34€, s/ IVA.
68\ Ao abrigo dessa adjudicação, competia à 2ª ré executar os trabalhos descritos no orçamento, fornecer a mão de obra e os materiais a aplicar, bem como os utensílios, máquinas e ferramentas necessárias à execução da obra adjudicada.
69\ Em consequência da adjudicação, a 2ª ré contratou os serviços de assessoria da 1ª ré, para a apoiar em obra, sempre que necessário.
70\ E, no âmbito dessa prestação de serviços à 2ª ré, o sócio e gerente da 1ª ré prestava esclarecimentos/informações acerca da obra à autora, em representação da 2ª ré.
71\ O montante recebido pela 2ª ré, no total de 50.000€, incluía impostos legais.
72\ Previamente ao início dos trabalhos, a 2ª ré comunicou à administração do condomínio do prédio o começo da obra, forrou o elevador de serviço e afixou o comunicado a que se alude supra.
73\ A autora não queria que a administração do condomínio do prédio e vizinhos tivessem conhecimento que seriam demolidas paredes.
74\ E, por isso, manifestou, desde sempre, as suas preocupações quanto aos trabalhos que envolviam barulho.
75\ Informou o sócio e gerente da 2ª ré de que os trabalhos teriam de decorrer sem causar constrangimentos aos proprietários das demais fracções.
76\ O local da empreitada apresentava-se envolvido em diversos condicionalismos, designadamente (doc. 6): a) Tratar-se de uma obra complexa, num apartamento de grande dimensão; b) Situado num nono andar; c) Prédio com apenas dois elevadores; d) A utilização do elevador teria de ser coordenada com o porteiro e a alocação tinha como limite o período compreendido entre as 10h e as 17h45; e) O acesso à garagem, por qualquer colaborador da 2ª ré, tinha de ser acompanhado pelo porteiro do prédio; f) Imóvel localizado num complexo residencial vedado, estando a entrada e acesso condicionados pela segurança privada do local; g) Alocação de espaço para estacionamento ou de um elevador teria de ser coordenado pelo porteiro do prédio; h) Circulação de veículos limitada pela portaria; i) Os trabalhos de demolições interiores (que eram muitos) e a remoção de resíduos teriam de ocorrer num curto, determinado e pré-definido horário; e j) As actividades estavam ainda limitadas aos horários de descanso dos vizinhos da autora, que, por vezes, obrigava a que o início dos mesmos tivesse lugar apenas a meio da manhã e/ou meio da tarde.
77\ Adicionalmente, toda a remoção dos resíduos teve de ser realizada através de sacos próprios e pelo elevador de serviço do prédio (invés das habituais condutas de descarga).
78\ Como também, todo o transporte de materiais e equipamentos se fez pelo mesmo meio.
79\ A circulação dos veículos para transporte dos resíduos esteve condicionada a um par de horas e em datas previamente definidas (doc. 6).
80\ E a entrada no recinto apenas poderia ocorrer após confirmação da existência de possibilidade de estacionar (doc. 6).
81\ Por outro lado, por imposição da administração do condomínio do prédio, a empreitada tinha de ser acompanhada pelo porteiro do edifício (doc. 6).
82\ Os trabalhos envolviam demolições, tendo sido pela 2ª ré destruídas paredes de alvenaria, removidas todas as portas das divisões, para decapagem, passar primário e pintura, para posterior instalação.
83\ Nesta fase, a 2ª ré também desmantelou a cozinha e instalações sanitárias existentes.
84\ Rasgou roços no chão e paredes, para instalação das novas infra-estruturas, redes de águas e electricidade.
85\ Considerando a possibilidade de se interferir na estrutura do prédio, após a demolição da parede da cozinha, a 2ª ré solicitou a intervenção do Engenheiro Civil com quem ocasionalmente trabalha.
86\ Em 15/11/2019, foi comunicado à autora que o mesmo se encontrava fora só podendo comparecer para reunião na semana seguinte (doc. 10).
87\ Os trabalhos ficaram suspensos, até à intervenção técnica.
88\ Logo que se mostrou disponível, o Engenheiro Civil visitou o local e emitiu parecer técnico quanto à intervenção suscitada e ainda se reuniu com a autora (docs. 10 a 12).
89\ A autora retirou a cozinha do objecto da empreitada.
90\ Tratava-se de uma cozinha feita à medida, ao nível dos acabamentos, estilo, com incorporação de lavandaria ajustada ao espaço (doc. 2).
91\ Uma cozinha com linhas direitas, cor preto mate lacado, puxadores longos e encastrados, parede em pedra cinza antracite, chão parcialmente em cerâmica cinza antracite, peças 60cmx1, 20cm (doc. 2).
92\ A autora pediu alterações à obra e determinou que os armários novos para a casa, incluindo closets e armários de casa de banho seriam encomendados por si, retirando-os do objecto da empreitada.
93\ Apesar de retirada a cozinha do orçamento, a 2ª ré tinha de executar todos os trabalhos de construção civil inerentes à aplicação da cozinha.
94\ Em data anterior a 15/11/2019, a autora pediu que fossem feitas alterações no que respeita à água, electricidade e tubagens de exaustor.
95\ E em comunicação de 15/11/2023 pediu a substituição de uma banheira por base de duche (doc. 10).
96\ Em consequência, a 2ª ré foi obrigada a fazer novas aberturas de roços e respectivo fecho.
97\ Todas as tubagens e anilhas aplicadas não puderam ser recuperadas.
98\ Encomendou novo material.
99\ Levou novos resíduos a vazadouro.
100\ Por força da alteração pedida, a 2ª ré realizou despesas com pessoal, materiais e transportes.
101\ A 2ª ré executou trabalhos de alteração/melhoramentos aos roupeiros que se encontravam no local.
102\ Em 09/12/2019, a 2ª ré enviou à autora um e-mail com o seguinte teor (doc. 13):
Boa Tarde Sra. D. [mãe da autora]
Amanhã teremos a reunião, no entanto gostaria de informar do seguinte.
Esta remodelação de apartamento é muito complexa, o apartamento é grande e quando aceitámos esta obra tínhamos ideia da dificuldade que iríamos encontrar em fazer uma obra profunda, com a quantidade de demolições e transportes a vazadouro, devido à localização do apartamento.
Estamos habituados a executar obras de qualidade e para isso a nossa forma de trabalhar é entregar um orçamento o mais completo possível para que não hajam dúvidas de parte a parte.
Só aceitámos executar esta obra porque tínhamos um orçamento fechado e que a obra iria por nós ser executada do princípio ao fim.
Fomos surpreendidos no início da obra que não havia interesse em que executássemos a cozinha pois havia uma outra empresa que a iria executar. Excepcionalmente aceitámos (o que não costumamos fazer), sabendo que essas empresas executam o trabalho deles, mas deixam sempre trabalho para os outros concluírem.
Nas obras que executamos há sempre trabalhos a menos e trabalhos a mais, e são sempre estes que prevalecem sobre os outros.
Não queremos aumentar frequentemente os orçamentos, mas também não queremos que os mesmos diminuam, essa não é a nossa forma de trabalhar.
Neste caso, aceitamos diminuir o nosso orçamento em 17.337,77€ respeitante ao valor da cozinha, uma vez que em tempo útil foi aceite esta alteração.
Passando o orçamento para o valor de 72.263,57€ sem iva.
Falaremos então amanhã na reunião.
Obrigado
Att."
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
[omitem-se estas 32 páginas por falta de interesse]
*
Do recurso sobre matéria de direito
A sentença recorrida tem a seguinte fundamentação, em síntese:
Dos factos provados resulta ter sido celebrado um contrato entre a autora e a ré que teve por objecto a remodelação de um apartamento da autora, onde a mesma pretendia passar a habitar.
Tal contrato celebrado entre um particular e uma empresa qualifica-se como empreitada de consumo, nos termos dos artigos 1207 a 1211, 1220 a 1222 do CC e nos artigos 1-A, 1-B/-a do DL 67/2003, de 08/04 , na versão do DL 84/2008, de 21/05 (uma vez que o DL 84/2021, de 18/10 apenas se aplica aos contratos celebrados após a respectiva entrada em vigor, em 01/01/2022 – cf. artigos 53 a 55).
Também não podem restar dúvidas de que o contrato não chegou ao seu termo pois a obra não foi concluída pela ré.
De acordo com as posições das partes, importa saber se houve abandono da obra pelo empreiteiro ou desistência pelo dono da obra e se o direito de resolução do contrato foi correctamente exercido pela autora.
A jurisprudência tem entendido que o abandono da obra, atendendo às circunstâncias do tempo e do modo que o revestiu, pode ser interpretado como expressão de vontade firme e definitiva, por parte do empreiteiro, de não cumprir o contrato. E em tal caso, o dono da obra pode resolver o contrato sem necessidade de interpelação admonitória prevista no artigo 808/1 do CC.
A propósito desta figura lê-se no ac. do STJ de 14/01/2021, proc. 2209/14.0TBBRG.G3.S1: “Sendo a prestação de realização da obra, típica do contrato de empreitada, uma prestação duradoura e, no tipo de obra aqui em causa, de execução contínua, o abandono da obra, enquanto comportamento de recusa a cumprir, apresenta a especificidade de não consistir numa recusa antecipada, mas sim numa recusa em prosseguir a execução de uma prestação já iniciada. Essa conduta, essencialmente omissiva, mas podendo ser precedida de acções que a anunciam (v.g. retirada de materiais e máquinas), para ser significante de um propósito definitivo de não conclusão do acto de realização da obra, deve ser aparente, categórica e unívoca.”
Por outro lado, a desistência da empreitada pelo dono da obra é uma forma específica de extinção do contrato de empreitada prevista no art.º 1229 do CC.
No caso em apreciação, não só os factos indiciam o abandono da obra pelo empreiteiro, mostrando-se demonstrado que os trabalhos foram interrompidos em Dezembro e a insatisfação manifestada pela ré na carta de 09/12/2019 e não demonstrado que foram retomados em Janeiro, muito menos após a carta da autora de 16/01/2020, como esta carta interpela a ré a retomar os trabalhos, sob pena resolução, pelo que se mostra cumprido o disposto no art.º 808/1 do CC.
Não obstante não tenha sido fixado qualquer prazo para a retomada dos trabalhos, a declaração de resolução da autora tem data de 17/02/2020, cerca de um mês posterior à interpelação, o que se considera ser um prazo razoável para concluir que o empreiteiro não pretende cumpri-lo.
No caso, indicando os factos que o empreiteiro optou por não prosseguir a obra e nada mais se tendo apurado, há que concluir pelo incumprimento definitivo pela ré do contrato de empreitada, com a obrigação de indemnizar o dono da obra pelos prejuízos resultantes de tal incumprimento.
Assim, podemos dizer que a autora exerceu correctamente o direito de resolução do contrato que operou pela recepção da declaração por esta enviada em 17/02/2020.
Conforme estipula o art.º 436/1 do CC a resolução é equiparada quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio (artigos 285 a 294 CC) operando retroactivamente, salvo o disposto no art.º 436/1 do CC.
Daqui decorre que deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou se a restituição em espécie não se mostrar viável, como sucederá relativamente a materiais e trabalho já incorporados num imóvel, deverá ser restituído o valor equivalente.
No caso dos autos, tendo a autora pago à ré durante a execução da obra, o valor de 50.000€ por conta do preço estabelecido e impostos legais e tendo a ré incorporado no imóvel materiais e trabalho cuja devolução em espécie não é viável, torna-se necessário saber qual o valor destes últimos para determinar a identidade do credor e do devedor.
Da factualidade provada resulta que os trabalhos realizados pela ré no imóvel da autora ascendem a 14.153,84€ a que há-de acrescer o IVA, uma vez que o montante pago incluiu os respectivos montantes devidos a esse título, o que perfaz o valor total de 17.409,22€.
Assim, será a ré a devolver à autora o valor que recebeu a mais, a saber, 32.590,78€.
Do pedido reconvencional:
Temos demonstrado que a autora pediu alterações à obra e que algumas foram executadas assim como ficou demonstrado que a autora desistiu de partes da obra orçamentada.
No entanto, o valor da obra que se demonstrou ter sido executada situa-se no valor já referido supra, nada mais se tendo provado.
Assim, só pode concluir-se que a autora é credora da ré tal como explanado supra, não sendo devido à ré qualquer valor.
Contra isto, a ré diz o seguinte, em síntese:
46\ No caso […] os trabalhos […foram] interrompidos nas duas últimas semanas de Dezembro, por força do período festivo. Não foi fixado qualquer prazo para a retoma dos trabalhos, como é dado como assente na sentença recorrida.
47\ Na semana de 06 a 10/01/2020, em concreto no dia 10, a ré, através dos seus trabalhadores, retomou os trabalhos. Nessa data, a autora não autorizou o acesso da ré ao local da empreitada. […]
[…]
49\ A presença dos trabalhadores da ré, naquele dia 10/01/2020, é reveladora da vontade da ré em cumprir o contrato […]. Factos estes que, claramente não configuram e representam abandono da obra. Não se observa também nos factos provados o “abandono da obra” pelo empreiteiro […]
50\ Neste contexto, […] o exercício do direito à resolução do contrato não tem fundamento válido. A resolução é ilícita e inconsequente e não há, da parte da ré, incumprimento definitivo do contrato […]
51\ O valor a que a ré foi condenada assenta no pressuposto de validade da resolução contratual. Logo, não se mostrando reconhecida a resolução contratual operada pela autora, resta concluir pela falta de responsabilidade contratual da ré […]
52\ Sem prescindir […], o ónus de prova dos factos respeitantes à quantidade dos trabalhos realizados em obra pela ré cabia à autora; sucede que, a autora não logrou provar, […] que foram realizados trabalhos pela ré que ascendem a 14.153,84€, acrescido de impostos legais.
53\ Não podia, nessa circunstância, ser a ré condenada ao pagamento de qualquer valor, a esse título […]
[…]
56\ Por último, […] considerando que foi dado como provado que não foi a autora que pagou os 50.000€ à ré – factos provados 10 e 19 -, não podia esta peticionar a restituição daquele valor […] Sofreu a autora danos resultantes da perda daquela quantia, nos termos alegados por esta? Entendemos que não. E, por isso, […] não teria direito ao valor em causa, visto não lhe pertencer. Por esta via, cairiam os pressupostos do direito de indemnizar.
[…]
58\ No seguimento do raciocínio exposto de que a ré não abandonou a obra, ficou evidente que o comportamento da autora revela que, ao vedar o acesso ao local da obra, quis pôr termo ao contrato de empreitada, porque subjectivamente perdeu interesse na prestação da ré.
59\ A actuação da autora, resultante da factualidade, tem o significado jurídico relevante de desistência tácita da empreitada. Na situação dos autos, o contrato de empreitada foi objectivamente extinto, por iniciativa unilateral do dono de obra […].
60\ Finalmente, […], importará abordar a indemnização pela desistência da empreitada […]
[…].
Nas contra-alegações, a autora segue, no essencial, a argumentação da sentença recorrida.
Apreciação:
Antes de mais, não tem, aqui, relevo, a argumentação da ré, de novo, contra a decisão da matéria de facto.
Posto isto,
A ré põe em causa o fundamento resolutivo que o tribunal deu por verificado; entende a ré que não abandonou a obra, apenas a interrompeu; depois apareceu para retomar os trabalhos e a autora não lhe autorizou o acesso à obra para o fazer. Baseia-se para o efeito, como se vê, na sua versão de facto, que tentou que fosse aditada aos factos provados em substituição daquela que ficou provada. O que, naturalmente, é improcedente.
Contra, ainda, a ré diz que “não foi fixado qualquer prazo para a retoma dos trabalhos, como é dado como assente na sentença recorrida.”
Embora no contexto que em que a frase está inserida pudesse ser entendida como repetição da defesa já assumida anteriormente, de que não havia prazo para a conclusão da obra, o que, naturalmente, não afastaria o abandono e o incumprimento, a frase pode ser lida de outro modo: a ré está a referir-se a não ter sido fixado prazo na carta em que a autora a interpela para retomar os trabalhos sob pena de resolução.
O abandono ilícito da obra pelo devedor/empreiteiro é, se for uma conduta séria e definitiva, uma violação do contrato que dá direito ao credor de resolver o contrato, sem necessidade da interpelação do devedor para retomar o cumprimento com a fixação de um prazo razoável para o efeito, porque permite depreender que tal não daria qualquer resultado (José Carlos Brandão Proença, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, 2.ª edição, UCEP, 2017, páginas 325 a 351, seguido pelo ac. do STJ citado na sentença recorrida; Baptista Machado, Pressupostos da resolução por incumprimento, Estudos em homenagem ao Prof. Teixeira Ribeiro, Coimbra, 1979, páginas 356-363, e anotação ao ac. do STJ de 08/11/1983, publicada na RLJ 118-1986, páginas 329 a 332; Joana Farrajota, A resolução do contrato sem fundamento, Almedina, 2015, páginas 191 a 221, especialmente 211-221; todos os anteriores já tinham sido referidos pelo Brandão Proença; fazendo referência a outras soluções, para além do que já é dito pelos autores anteriores, veja-se Maria da Graça Trigo / Mariana Nunes Martins, Comentário ao CC, Direito das obrigações, Das obrigações em Geral, UCP/FD/UCE, 2018, anotação 5/V ao art.º 805, pás. 1130/1131).
A interpelação com advertência para a resolução e a fixação de um prazo razoável para cumprir é uma forma de converter uma mora em incumprimento definitivo (artigos 808 e 801 do CC), possibilitando a resolução do contrato, concebendo-se situações, extremas, em que se torna dispensável a fixação do prazo, como se a mora dura há muitíssimo tempo e, em face das circunstâncias, tendo em conta designadamente o comportamento das partes, se afigura razoável tal solução (Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª edição, Coimbra Editora, 1997, páginas 311 a 313, nota 1).
No caso dos autos verificou-se uma mistura das duas causas: primeiro um comportamento da ré que indiciava um abandono da obra (factos 21 a 24), seguida de uma interpelação do credor a pedir a retoma dos trabalhos com advertência para a possível resolução do contrato (facto 25), com resposta da ré que reforça a ideia do abandono da obra (factos 26 e 27), seguida da resolução do contrato passado quase um mês sem que a ré tivesse retomado os trabalhos (facto 28).
A conjugação destes factos permite concluir pelo abandono definitivo da obra (completado em duas fases, intercaladas pela interpelação, que serviu para esclarecer o comportamento da ré) e também pela conversão da mora em incumprimento definitivo, mesmo sem fixação de um prazo, embora com o decurso de um período de tempo, até que foi resolvido o contrato, perfeitamente suficiente para permitir à ré retomar a obra (não se tratava de a ré acabar a obra nesse prazo).
Foi isto que no essencial a sentença disse e concorda-se com ela: embora não tenha sido fixado prazo, ele de facto decorreu e por um período mais que razoável (era só para retomar os trabalhos), pelo que se verificou o incumprimento definitivo da ré, com base no abandono e na interpelação com advertência para a resolução, e foi lícita a subsequente resolução depois de um prazo razoável e do reforço da ideia do abandono (e, neste contexto, a referência da autora à justa causa enquadra-se, até, no que é dito pelos três primeiros autores citados acima, embora com outro enquadramento: veja-se, por exemplo, a nota 1031 da página 343 da obra do primeiro e as referências aí feitas).
O argumento da ré de que quem pagou o preço foi a mãe da autora, não a autora, não tem suporte nos factos: o que se diz nos factos 10 e 19 foi que o dinheiro foi transferido de uma conta da mãe da autora para a conta da ré, não que o dinheiro fosse da mãe. Mesmo que, nas relações entre a mãe da autora e esta, aquela se pudesse fazer valer de uma presunção de que o dinheiro era seu (da mãe) - se a conta fosse só dela -, isto não tem implicações no caso das relações da autora com a ré, entre o mais porque não consta que quem tenha feito o pagamento tenha sido a mãe, nem os termos em que esse pagamento foi feito. Se a ré celebrou o contrato com a autora e o preço lhe foi pago e é uma parte desse preço que deve restituir, é à autora, sua contraparte, a quem o tem de restituir se nada mais houver – como não há - em sentido diverso.
Tendo resolvido o contrato, fazendo-o cessar, a autora não pode ter desistido de nada depois disso. A sentença quando referiu a desistência estava a referir-se à desistência da cozinha, mas essa foi aceite pela ré (factos 89 a 92 e 102), pelo que não podia dar origem a qualquer indemnização.
Quanto ao valor do preço a devolver, há que atentar que a sentença partiu dos valores dos factos 36, 38, 41, 43 e 44 como se eles fossem certos, quando do que aí se trata é de valores pelo mínimo.
Não havendo valores certos e não se afigurando possível que hoje, depois de decorridos 4 anos, fosse possível apurá-los com exactidão, eles teriam que ser fixados com base num juízo de equidade ao abrigo do art.º 566/3 do CC e, por isso, justificar-se-ia subir um pouco, por exemplo, 20%, o valor global da obra feita pela ré.
Há que lembrar, no entanto, como se assinalou acima, que ocorreu um erro de soma de valores, erro que não se pode eliminar porque tal implicaria que o valor a devolver à autora pela ré fosse aumentado, o que é proibido por força do art.º 635/5 do CPC (reformatio in pejus: Os efeitos do julgado, na parte não recorrida, não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo.), já que a sentença só foi impugnada pela ré.
Ora, esse erro está também em cerca de mais 20% relativamente ao valor da soma dos valores em causa nos factos 30 a 45, pelo que acaba por substituir o aumento, imposto pela fixação com equidade, referido acima.
*
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas do recurso, na vertente de custas de parte (não há outras), pela 2.ª ré.

Lisboa, 04/04/2024
Pedro Martins
Rute Sobral
Laurinda Gemas