Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2387/07-1
Relator: GOMES DA SILVA
Descritores: PROCESSO JUDICIAL DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE MENOR EM PERIGO
FILIAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1. O processo especial de promoção e protecção de crianças ou jovens em perigo deve nortear-se primordialmente pela defesa do interesse superior da criança e do jovem, com obediência aos princípios da proporcionalidade e actualidade, da prevalência da família, da obrigatoriedade da informação e da audição obrigatória e participação, entre outros.
2. Como processo de jurisdição voluntária que é, não tem que obedecer a critérios de legalidade estrita, possibilitando-se flexibilização no processado e a tomada das medidas adequadas à especificidade do caso concreto.
3. As crianças e os jovens desenvolvem e modificam a sua personalidade e maturidade muito rapidamente, impondo-se acompanhar atempadamente tais mudanças.
4. Constatados a inexistência ou o sério comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação e ficando impossibilitada a integração de bebé com poucos meses de vida na família biológica e do acolhimento em família alargada (por pessoa cuja idoneidade não se afirmou), impõe-se remover o perigo em que se encontra, dando prevalência a medidas que promovam a sua adopção, preparando o estabelecimento do respectivo vínculo definitivo.
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I –

INTRODUÇÃO

1. Aos 2007.05.29, o MINISTÉRIO PÚBLICO fez intentar autos de promoção e protecção, com processo especial, relativamente à menor TATIANA F..., confiada à guarda do LAR RESIDENCIAL DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE GUIMARÃES, contra os pais BRUNO F... e SÓNIA D....

2. Alegou, em síntese, que a mesma se encontra numa situação de perigo, dadas a imaturidade da progenitora e a falta de afectividade demonstrada pelo pai, sendo que a casa onde vivem não tem condições mínimas de asseio.

3. Foi declarada a abertura da fase de instrução, que prosseguiu com a tomada de declarações dos progenitores e inquirição das testemunhas indicadas.

4. Não foi possível obter decisão negociada em sede de conferência.

5. O Ministério Público apresentou as alegações a que se refere o art. 114º-nº2 da Lei 147/99, de 1 de Setembro (LPCJP), promovendo a aplicação à menor da medida confiança com vista a adopção.
Também apresentaram alegações os respectivos progenitores, a menor, a Associação de Apoio à Criança de Guimarães (doravante designada por AAC de Guimarães) e Aida S... (id. a fls.194).

6. Realizou-se debate judicial, no qual intervieram as Exmas Juízes Sociais, com gravação dos depoimentos pestados, encerrado com alegações orais.

7. No acórdão, decidiu-se:
a) aplicar à menor TATIANA F..., a medida de confiança a pessoa seleccionada para a adopção, nos termos do disposto nos arts. 35º-nº1-g),, 38º-A e 62º-A da LPCJP, a preceder por um período de vinculação observada;
b) como efeito necessário dessa medida e nos termos do disposto no art. 1978º-A do Código Civil, inibir totalmente os pais da menor, TATIANA F..., do exercício do poder paternal, não havendo, nos termos do disposto no art. 62º-A-nº2 da LPCJP, lugar a visitas de qualquer familiar da menor.

8. Irresignados, dela agravaram a menor, os seus pais e aquela Aida, tecendo leque conclusivo no sentido da revogação daquela medida, a substituir por outra que determine a confiança da menor à Aida, em conjunto com o estabelecimento de um regime de visitas daqueles progenitores.
O Ministério Público contra-alegou no sentido da confirmação do julgado.

9. A decisão vê-se tabelarmenet sustentada.

10. Colhidos os legais vistos, cumpre apreciar e decidir.

II –

MATERIALIDADE

Vêm tidos por provada os seguintes factos:

1. A TATIANA F... nasceu no dia 5 de Dezembro de 2006, na freguesia de Creixomil, em Guimarães; é filha de BRUNO F..., à data com 24 anos de idade, e de SÓNIA D..., à data com 15 anos de idade.
2. A SÓNIA D... foi sinalizada à CPCJ de Guimarães em virtude da sua mãe, Maria Lúcia da Silva, se haver ausentado, no dia 18 de Janeiro de 2005, para a Roménia, a fim de contrair casamento com Baltazar-Suraj (cfr. fls.3 e 65 dos autos principais) deixando a Sónia, bem como os seus irmãos Manuela C..., Cristiano D..., Sandra D.... e Rita D..., entregues a si próprios.
3. Os aludidos filhos da Maria S... encontravam-se, todos, a dormir numa barraca quase desfeita, montada no Parque Industrial de Ponte.
4. Dada a situação de perigo em que se encontravam foram todos acolhidos, provisoriamente, no Lar da Santa Casa de Misericórdia de Guimarães; posteriormente, foi-lhes aplicada a medida de promoção e de protecção de apoio para a autonomia de vida.
5. A adaptação das crianças na Santa Casa da Misericórdia decorreu com normalidade, isto com excepção da Sónia.
6. A Sónia saía com frequência do Lar, por vezes sem autorização, regressando tarde, para dormir.
7. Às vezes, cerca da meia-noite, a Sónia ainda não havia regressado, pelo que era procurada na cidade por funcionárias do Lar.
8. Quando tinha 14 anos de idade, começou a namorar com BRUNO F..., com quem manteve relações sexuais.
9. A Sónia nunca revelou maturidade para cuidar da filha.
10. Quem, desde o nascimento, cuidou da Tatiana foi Aida S..., funcionária do Lar Residencial da Santa Casa da Misericórdia.
11. Após a alta clínica da Tatiana, a Aida é que a foi buscar ao Hospital e a levou para o Lar da Misericórdia, acompanhada pelos pais da criança, assumindo, desde logo, a responsabilidade de cuidar diariamente da Tatiana, pois que nutria grande afeição, amor e carinho pela criança, e cuidava dela como se fosse a sua mãe.
12. Durante o primeiro mês de vida da Tatiana, a Aida, no seu período normal de trabalho, cuidava da Tatiana; já fora desse período, dirigia-se ao Lar para cuidar da higiene da menina, nomeadamente mudando-lhe a fralda, mesmo nos dias de descanso semanal.
13. Nos primeiros meses de vida, a Tatiana foi amamentada pela mãe.
14. Quando a Tatiana contraíu um vírus, transmitido pelo leite materno - o que ocorreu em meados de Fevereiro de 2007 - é que a Tatiana deixou de ser amamentada.
15. Na altura, a Tatiana esteve internada no Hospital de Guimarães, durante quatro dias, tendo a Aida estado, ininterruptamente, na sua companhia, dormindo no Hospital.
16. Na mesma altura, a Sónia também se encontrava doente.
17. Desde a altura em que a Sónia deixou de amamentar, era a Aida que, por vezes, preparava o leite para a filha.
18. Também, por vezes, a Sónia acompanhava a Aida quando esta, após os quatro meses de idade da Tatiana, preparava a sopa para a criança.
19. A Aida, ao cuidar da higiene e da alimentação da criança, procurou sempre incutir na Sónia a responsabilidade parental, não o tendo conseguido.
20. A Sónia tinha como principal preocupação encontrar-se com o Bruno, ausentando-se do Lar da Santa Casa durante várias horas consecutivas.
21. Nos dias de descanso semanal (sábado e domingo), a Aida levava a Tatiana consigo para casa, alimentando-a, vestindo-a e cuidando do seu asseio e higiene.
22. Por vezes, a Sónia visitava a criança na casa de Aida.
23. Pelo menos desde 5 de Fevereiro de 2007 (cfr. fls.225 dos autos principais), com a autorização da Provedora do Lar Residencial da Santa Casa da Misericórdia, Noémia P..., a Sónia passou a dormir em casa do namorado Bruno, aos fins de semana, saindo do Lar na sexta-feira, ao final da tarde, e só regressando ao domingo, à noite.
24. A Sónia também era autorizada a ausentar-se do Lar, por uma noite a meio da semana, para dormir com o Bruno na casa deste.
25. Durante a semana de Natal até ao dia seguinte ao Ano Novo, a avó do Bruno, Maria O... dirigiu-se ao Lar e levou consigo a Tatiana, responsabilizando-se por esta.
26. Durante essa semana, o Bruno, a Sónia e a Tatiana não estiveram em casa da Maria L..., tendo estado em casa de dois tios do Bruno.
27. No dia 7 de Maio de 2007, a Sónia deixou, definitivamente, de residir no Lar Residencial e foi viver com o Bruno, em casa deste, tendo sido para o efeito autorizada judicialmente por acordo celebrado em 7 de Maio de 2007 (cfr. fls.37 a 39), continuando à guarda e cuidados da Provedora da Santa Casa da Misericórdia de Guimarães.
28. Anteriormente, a Segurança Social indicou a Associação S. José, sita em Braga, ou o Lar Luísa Canavarro, sito no Porto, como instituições adequadas para acolher a Sónia e a filha Tatiana, o que a Sónia recusou, tendo também declarado que não consentia que a filha fosse separada de si (cfr. fls.30).
29. No decurso do corrente ano lectivo, a Sónia não frequentou qualquer estabelecimento de ensino, não frequentou qualquer curso escolar alternativo e não frequentou qualquer curso tendo em vista adquirir responsabilidades parentais.
30. Durante cerca de um mês e meio, a Sónia trabalhou no estabelecimento de restauração “Pinguim”, sito nesta cidade, e actualmente trabalha das 18h30 às 20 horas na copa/cozinha na Santa Casa da Misericórdia, ganhando 4 €/hora.
31. A Sónia e o Bruno não adquiriram responsabilidades parentais.
32. O Bruno exerce uma actividade remunerada por conta de outrem na indústria do calçado, auferindo um salário mensal de 430 €.
33. O Bruno e a Sónia não são capazes de alimentar, educar e cuidar da higiene da Tatiana.
34. Na família alargada não há qualquer pessoa que possa tomar conta da Tatiana e assumir a responsabilidade de a alimentar, educar e cuidar do seu bem-estar.
35. A Sónia é órfã de pai e foi abandonada pela mãe.
36. O Bruno é órfão de mãe e, até assumir a autonomia de vida, viveu com a avó Maria O..., actualmente com 69 anos de idade.
37. A Sónia não tem actualmente as aptidões de uma mãe responsável.
38. A relação de namoro do Bruno com a Sónia mantém-se há cerca de dois anos, sendo que a Sónia demonstra uma obsessão pelo Bruno.
39. Como o Lar Residencial da Santa Casa de Misericórdia de Guimarães está vocacionado para receber pessoas adultas com deficiência grave, foi considerado que não era esse o local adequado para a Tatiana; por esse motivo, no dia 31 de Maio de 2007, a Tatiana foi acolhida provisoriamente na Associação de Apoio à Criança, em Guimarães, onde ainda se encontra, em consequência de despacho judicial datado de 29 de Maio de 2007 (cfr. fls.8 e 9), do qual não foi interposto recurso.
40. A Aida não manifestou, nomeadamente através de candidatura na Segurança Social, a intenção de adoptar uma criança.
41. Quando deu entrada na Associação de Apoio à Criança, em Guimarães, no dia 31 de Maio de 2007, a Tatiana mostrava-se muito bem tratada e com desenvolvimento normativo para a idade.
42. À Sónia faltaram os ensinamentos básicos transmitidos pelos pais.
43. Os progenitores da Tatiana não planearam a gravidez e nunca colocaram a hipótese de fazer um aborto.
44. A Sónia e o Bruno são imaturos e instáveis.
45. Em duas das três visitas da Técnica da Segurança Social à habitação dos pais da Tatiana constatou-se que a mesma estava desarrumada e suja.
46. Os pais da Tatiana vivem em casa arrendada por 125 €, pertença de uma empresa do marido da Provedora da Santa Casa da Misericórdia de Guimarães, com dois quartos, sala, cozinha e casa de banho.
47. Os progenitores visitam a Tatiana, semanalmente e em conjunto, na Associação de Apoio à Criança, em Guimarães.
48. Durante as visitas, os progenitores demonstram inexperiência, revelando dificuldades em pegar a Tatiana ao colo e em acalmá-la quando chora e a Tatiana revela desconforto, estranhando os pais.
49. Durante as visitas, os progenitores não se mostraram capazes de dar a papa à filha.
50. A Aida é pessoa idónea, de índole, carácter e formação afáveis e estáveis.
51. O ambiente familiar da Aida é são e estruturado, estando os seus elementos integrados.
52. A Aida tem disponibilidade para cuidar da menor e tem por ela afecto continuado.
53. A Aida é casada, mãe de duas filhas e tem conhecimentos de puericultura e dos cuidados a prestar aos mais desfavorecidos.
54. A Aida vive com o marido e as filhas em casa arrendada por 250 € (duzentos e cinquenta euros mensais), com três quartos, sala, cozinha e duas casas de banho (uma incompleta).
55. A habitação da Aida revela cuidados adequados em termos de higiene, organização e manutenção.
56. O agregado familiar da Aida apresenta rendimentos mensais de cerca de 1.380 €, sendo 465 € do salário da Aida, 415 € do salário do marido e 500 € que ambos retiram de trabalho como empregada de limpeza e serviço em eventos.
57. As instituições de acolhimento e protecção de crianças e jovens jamais poderão fornecer-lhes um ambiente similar ao de uma família estruturada e integrada.
58. Por parte dos adultos que acompanharam a Sónia, houve intenção de a ensinar e responsabilizar pelos cuidados da filha, estimulando a relação afectiva com a Tatiana.
59. Durante o internamento referido em 15, o Bruno não visitou a filha.
60. O Bruno esteve cerca de um mês sem visitar a Tatiana no Lar da Santa Casa da Misericórdia de Guimarães.
61. A Sónia verbalizou a intenção e o desejo de que a Tatiana seja entregue à D. Aida, como família de acolhimento, considerando que uma família de acolhimento “não é para sempre”.
62. A Sónia referiu não imaginar que a Tatiana venha a chamar a D. Aida de “mãe”, mas sim de “avó”.


III –

JURISCIDADE

1.
As censuras trazidas pelos Agravantes, em ordem à modificação da sentença, delimitando a presente via recursal, reconduzem-se ao seguinte:
§ a afirmação do interesse da menor não deve sacrificar a ainda que ténue possibilidade de os pais virem a assumir as responsabilidades parentais;
§ a confiança da menor à Aida respeita a conjugação de ambos os interesses.
2.
a)
Em jeito de esboço do quadro de referência da colectiva discussão em que se empenharam – em contraponto ao desenho final arquitectada pelo Tribunal - os Agravantes fizeram inscrever, a traço mais profundo, duas linhas essenciais:
- “se o Tribunal acha que é a adopção a medida certa para esta menor, é porque ela está sozinha no mundo, não tem quem a acolha”;
-“a medida de confiança a pessoa idónea tem em mente não comprometer a possibilidade de os pais biológicos virem, mesmo num futuro que se prevê distante, a comportarem-se devidamente”.
E isso por, alegadamente, haverem descoberto o mal de que padece a tela de suporte usada pelo Tribunal: “ a fundamentação é puramente especulativa e não encontra sustentação válida nos factos provados, no sentimento geral da colectividade social e jurídica ou nas regras da experiência comum”.
Os Recorrentes trouxeram para a discussão essas questões, como pais, quer por não se haverem como irreversíveis e irremediavelmente demonstradas as incapacidades deles, “quais filhos de um deus menor”, para se conduzirem com a filha, quer porque a relação desta com a “mãe de afecto” (Aida) sobrelevará a da “mãe adoptante”.
Esse tão pretensamente lapidar desenho, à custa de emoções mais conjecturadas do que detectáveis, não deve, porém, consentir no apagamento – mesmo que, possivelmente, com muita dor de quem é pai ou mãe - do que está indelevelmente inscrito de errado na ainda curta experiência de vida da Tatiana (nascida aos 2006.12.05); só assim se curará em não menosprezar mais o que importa prosseguir de ajustado, para que o bem dela se reafirme, de modo consistente e sem risco de reversão a convívio familiar ou para-familiar instável que de pouco dispunha para ser capaz de construir, à sua volta, ambiente de felicidade e amor.

b)
Como se sabe, dentro dos meios de jurisidição voluntária, o processo tutelar visa a protecção e manutenção da família biológica, aliás na esteira da prioridade estabelecida na Convenção Europeia dos Direitos e Liberdades Fundamentais e na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, de 20 de Novembro de 1989.
Avultam, como seus princípios orientadores, o da responsabilidade parental, por via do qual “a intervenção deve ser efectuada de modo que os pais assumam os seus deveres para com a criança e o jovem” (cfr. art. 4º-g) LPCJP), e o da prevalência da família, segundo o qual “na promoção de direitos e protecção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integram na sua família ou que promovam a sua adopção” (art. 4º-i). Só por isso, é que, de acordo com o princípio da participação, os pais têm direito “a participar nos actos e definição da medida de promoção dos direitos e de protecção” .
Como é evidente, ao decretamento de uma qualquer medida de promoção e protecção, no âmbito deste processo, sempre se traduzirá numa limitação, em maior ou menor medida, dos amplos poderes decorrentes do possível exercício do seu poder paternal; corre até o risco de, em casos extremos, cessar pura e simplesmente, pela confiança do menor a uma instituição com vista a adopção.
Tal medida (instituição para adopção), elencada no art. 35º-f) da LPJCP, foi introduzida pela Lei nº 31/2003, de 22/8, pressupõe, nos termos do art. 38º-A, que se verifique qualquer das situações previstas no art. 1978º do CC: “Com vista à futura adopção, o tribunal pode confiar o menor a casal, a pessoa singular ou instituição, quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação, pela verificação das seguintes situações:
a) ...
c) Se os pais tiverem abandonado o menor;
d) Se os pais, por acção ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do menor.
e) Se os pais do menor acolhido, por um particular ou por uma instituição tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente os vínculos afectivos próprios da filiação durante, pelo menos, os seis meses que precederam o pedido de confiança.”
Anote-se que “a não existência ou sério comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação” (cfr. art. 1978º-nº1 CC) é um requisito autónomo comum a todas essas situações; daí que seja condição de decretamento da medida de confiança judicial a demonstração de que não existem ou se encontram seriamente comprometidos os vínculos afectivos característicos da filiação, por via da verificação, ainda que sem culpa, dos pais, de qualquer das situações aludidas naquele normativo.
O perigo exigido (art. 3º-nº2-d) LPCJP) é aquele que se apresenta descrito, bastando o simples perigo provável e eminente de lesão.
Neste quadro, a medida de promoção e protecção de confiança a pessoa seleccionada para a adopção ou a instituição com vista a futura adopção (arts. 38º-A e 62º-A da LPCJP), para além de afastar o perigo do menor, visa simultaneamente a “confiança pré-adoptiva“, substituindo a acção prévia de confiança judicial destinada à adopção, assim traduzindo as ideias-matriz de que o instituto da adopção passou a estar cada vez mais orientado para protecção das crianças e dos jovens e de que toda a intervenção deve ter em conta o superior interesse da criança (cfr. arts 4-a) LPCJP, 1978º-nº2 CC e 3º-nº1 da Convenção Sobre os Direitos da Criança – “todas as decisões relativas a crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança “); tal conceito, por indeterminado, sempre necessitará da aconcretização valorativa, por referência os princípios constitucionais, como o direito da criança à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral (art.69º nº1 da CRP).
A situação de abandono, desinteresse e mesmo rejeição da parte de um ou de ambos os progenitores em relação ao filho, mesmo camuflada ou pouco evidenciada, sempre traduzirá falta de afectividade (carinho, afeição, interesse, enfim, amor; poder-se-á sustentar mesmo que o abandono dissimulado, mal assumido, não implica menos vulnerabilidade para o filho, até pelo permanente clima de insegurança, receio e inibição que nele provocará.
Aliás, é axiomático que toda a criança tem o direito fundamental de se desenvolver numa família em que alguém, sejam os progenitores ou os substitutos, assegure a satisfação de todas as condições de desenvolvimento integral, nos aspectos físico e sobremaneira psicológico; ou seja, o critério "subsistência de vínculos afectivos" veicula que só quem mantém essa relação afectiva fundamental, sem vacilações, assegura tudo o que é indispensável à criança.
A verificação negativa, com carácter seguro e prolongado, dessa afectividade, desse direito ao desenvolvimento (observada pelo lado dos progenitores como imerecimento ou indignidade, pelo lado dos filhos como abdicando dos poderes-devers parentais de o fazer num certo sentido) implicará a busca de uma nova plataforma em que o salutar equilíbrio dos vínculos afectivos se refaça, então com vista a futura adopção, pois que soçobrou tudo o que era legitimamente expectável como sustentáculo de um correcto projecto de vida (cfr. Ac. R. Porto, de 2007.09.25, redacção do art. 1978º CC, introduzida por aquele diploma de 1993, e Prof. A. Varela, CC Anot.-V/517 "o alvo ou objecto da disposição deixou de consistir na declaração (formal) judicial do abandono do menor (ainda com o ar de um verdadeiro estatuto substantivo) e passou a ser a entrega do menor (a confiança do menor, uma providência de carácter marcadamente processual) a casal, a pessoa singular ou a instituição pública ou particular, tendo em vista a sua futura adopção).
Tal desinteresse juridicamente relevante é, ao fim e ao cabo, apenas o que resulta da verificação cumulativa dos pressupostos elencados no normativo citado; ou seja: deve ser manifesto, comprometer objectivamente a subsistência dos vínculos afectivos próprios da filiação e verificar-se durante pelo menos seis meses que precederam o pedido de confiança.
A lei, mesmo a constitucional, erige sempre a família como instituição em que os ideais de crescimento saudável, protecção e desenvolvimento das crianças se maximazarão; mas não podia sustentá-lo a todo o transe, quando as evidências por demais apontam no sentido da sobrecarga e prejuízo do elo mais fraco (os filhos). Daí que, sob pretexto nenhum, devam ser estabelecidas levianas complacências que fatalmente redundarão em consumados males para as crianças; é que o tempo delas é este presente e algum pouco futuro - que nunca se repetirão, como parecem crer alguns adultos (veja-se a sobremaneira esbatida esperança de que, ao termo de prováveis longos anos, como confessam os próprios Agravantes, possam vir a exibir os laços parentais adequados).
Como acentua o Ministério Público, é notório que as crianças e os jovens desenvolvem e modificam a sua personalidade e maturidade muito rapidamente, sendo por isso fundamental que as situações jurídicas que os envolvam não se possam eternizar e devam ser, muito regularmente e em muito curto espaço de tempo, reavalidadas, em certas situações”.
Esta medida tem características próprias, não estando sujeita a revisão e subsistindo até ser decretada a adopção do menor, situação última a que se dirige com a alteração do vínculo da paternidade e respectiva filiação, determinando o fim de visitas por parte da família natural e a nomeação de um curador provisório (arts. 62º-A-nº 2 da Lei nº 147/99 e art. 167º da OTM).

3.
a)
É apodíctico que este tribunal só pode conhecer do objecto do agravo, quer na perspectiva da bondade da medida aplicada, quer na perspectiva da correcção da valoração dos factos inquestionados e respectiva motivação.
Embora alguma pretérita realidade ainda venha quase diariamente magoando o coração dos portugueses (sobretudo à custa de, pelo menos, algumas insuficiências de direcção de um estabelecimento tutelar do Estado, onde se tem retido, por insuportável excesso de tempo, crianças e jovens “institucionalizados”), está-se profundamente crente de que a confiança da Tatiana não virá a eternizar-se, à laia de depósito de vivos, na instituição em que já se encontra, por desleixo burocrático na selecção do candidato à respectiva adopção (casal ou não) que lhe promova a educação, a instrução, a personalidade, a saúde, o bem estar, integrando-a na sua família, em ambiente estável e seguro.

b)
Que a família biológica da Tatiana lhe tem estado ausente, por desinteresse próprio e algumas deficiências de personalidade (mormente da mãe) e apresenta disfuncionalidades que comprometem o estabelecimento de uma relação afectiva gratificante e com futuro com ela, não sofre quaisquer dúvidas; aliás, os próprios a aceitam, relegando para um possível futuro o estabelecimento dessas bem profícuas relações, como se a criança pudesse esperar pela reconversão da sua indiferença ou a comunidade devesse dar de barato que a afeição e o amor viessem a gerar-se desse quase nada.
De resto, a facticidade supra revela-o sem penumbras, até no mais infímo pormenor do injustificável espaçamento das visitas, da parte de ambos.
Por outro lado, por mais que aceite louvar-se a dedicação já demonstrada pela Aida, também é seguro que ela sabe não dispor de quaisquer condições que corporizem, nem sequer no pretendido tempo de espera, a realização de qualquer projecto articulado e sério de vida para a Tatiana. Desde logo, porque ela não o pretende, salvo o que teria declarado, pela forma devida e no serviço público devido, a sua vontade de assim proceder (candidata à adopção, membro de família de acolhimento ou similar), em vez do que se limitou a fazer chegar aos autos, aos 2007.07.25, pelo seu mandatário; aliás, estando a criança confiada à guarda e cuidados da Drª Noémia , Provedora da Santa Casa da Misericórdia de Guimarães (num conjunto de outros quatro irmãos da menor, situação sobre que este Tribunal se debruçou já), há-de aceitar-se que actuou primordialmente no interesse e em representação dela, sem representar qualquer projecção para o tempo futuro; acresce que, em função da sua idade, somente poderia, a crer na própria Sónia, esperar assumir o papel de avó e nunca o de mãe; finalmente, está bom de ver que aquela solução de aguardar para ver nada de sustentável assegura ou conjuga, em termos de legítimos interesses da criança.
Ora, urgindo o tempo, até porque a formação da personalidade dos seres remonta à primeira infância, impõe-se assumir uma intervenção definitiva, em desfavor de uma solução paliativa, em contrário ao que o legislador e a ciência recomendam; só assim se possibilitará o radical corte com as definhadas expectativas proporcionadas à menor, até à sentença ora em reanálise, e que, sendo capaz de provisoriamente assumir o limitado papel referenciado em II-57, venha a escancarar portas por onde possa entrar a felicidade da Tatiana, cada vez mais inadiável, perante a imensa mole de escrutinados pretendentes a integrá-la num lar estável, com pleno exercício das funções parentais.
Deste modo, dando prevalência ao interesse superior do menor, este tribunal implica-se, nesta fase, na sua protecção, pela manutenção da medida aplicada, assim corresponsabilizando a comunidade e a entidade de acolhimento.
IV –

Nestes termos, em nome do Povo:

1. julga-se improvido o agravo e

2. confirma-se a decisão sindicada.


Custas pelos sucumbentes.


Guimarães, 2007.12.06,