Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
546/08-2
Relator: ANTÓNIO GONÇALVES
Descritores: ESCUSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: PEDIDO DE ESCUSA
Decisão: DESATENDIDO
Sumário:
Decisão Texto Integral: Pedido de escusa - Processo n.º 546/08-2.
Acção de processo ordinário n.º 631/03.7TBBRG/Vara de Competência Mista do T. J. da comarca de Braga.


João C..., Juiz em exercício de funções na Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial de Braga vem, nos termos do artigo 126°, n.º 1 do Código de Processo Civil, requerer dispensa da sua intervenção no processo de acção ordinária n.º 631/03.7TBBRG/Vara de Competência Mista do T. J. da comarca de Braga, em que são autores João P... e Outros e ré Maria P..., invocando para tanto os seguintes fundamentos:
1. Exercendo funções na Vara de Competência Mista de Braga há 4 anos, foi-lhe distribuída a acção n.º 631/03.7TBBRG, em que a ré é patrocinada pelo Sr. Dr. António C..., advogado com escritório no Largo de S. Francisco, n.º 33, 4°, cidade de Braga.
2. Ora, na sequência de umas alegações de recurso apresentadas por esse causídico no âmbito de um outro processo (acção n.º 742/2001) que lhe está igualmente distribuída e a cujo julgamento presidiu, porque foi posta em causa a sua isenção, sentiu-se na necessidade de participar disciplinar e criminalmente contra ele.
3. Sendo assim, estando pendentes os procedimentos desencadeados por essas participações, afigura-se-lhe que não reúne condições para continuar a tramitar os presentes autos, porquanto é de crer que, em função do litígio que mantém com o referido advogado, se suspeite fundadamente da sua isenção, imparcialidade e independência.

Cumpre decidir.

1. Para tornar efectivo o ideal da justiça, o nosso ordenamento jurídico aponta diversificados expedientes destinados a obstar a que fique maculado o desempenho da função do Julgador:
A par da suspeição, apenas a deduzir pelas partes e do impedimento, que dever ser suscitado oficiosamente pelo Juiz, salientamos ainda a escusa que tão só pelo Juiz pode ser requerida.
Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 126.º do C.P.Civil “o juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito; mas pode pedir que seja dispensado de intervir na causa quando se verifique algum dos casos previstos no artigo 127.º do mesmo diploma legal e, também, quando, por outras circunstâncias ponderosas, entenda que pode suspeitar-se da sua imparcialidade (art.º 126.º, n.º 1, parte final).
O pedido será apresentado antes de proferido o primeiro despacho ou antes da primeira intervenção no processo, se esta for anterior a qualquer despacho. Quando forem supervenientes os factos que justificam o pedido ou o conhecimento deles pelo juiz, a escusa será solicitada antes do primeiro despacho ou intervenção no processo, posterior a esse conhecimento (n.º 2 do art.º 126.º do C.P.Civil).

Assentando-se que o Juiz não é livre de, espontaneamente e sem motivo, declarar a sua potencial desconfiança em relação ao conflito de interesses a dirimir na acção, logo o legislador se preocupou em analisar e pontificar os casos em que razões de ética jurídica impõem que ele não deva intervir em determinada causa e condensadas no princípio de que não pode ser levantada contra o Juiz da causa a mais ténue desconfiança orientada no sentido de que o juízo que vai fazer sobre a questão posta pelas partes poderá estar envolta em interesses sombrios e difusos e, por isso, passível de estar eivado de imperfeições que condicionem a sua liberdade de decisão.
Para tanto foi preciso estabelecer um regime legal que fizesse o necessário equilíbrio entre um possível posicionamento de puro absentismo - declarar a sua parcialidade para se eximir ao julgamento de um intrincado litígio (era este um sistema possível nas Ordenações, porquanto permitia que o juiz fosse afastado do pleito desde que, mesmo sem adiantar qualquer razão, mediante juramento asseverasse a sua suspeição) - e a situação, deveras desprestigiante, de o Juiz ter de esperar que algum dos litigantes viesse trazer este dado ao Tribunal, circunstancialismo que ele já havia conjecturado e ao qual nunca poderia deixar de dar o seu assentimento.

2. A pretensão do Ex.mo Juiz requerente é motivada no disposto no art.º 126.º, n.º 1, parte final, do C.P.Civil, ou seja, de que há circunstâncias ponderosas que podem levar ao juízo de suspeição sobre a sua imparcialidade, invocando que a ré Maria P... é patrocinada pelo Sr. Dr. António C..., advogado contra quem participou, disciplinar e criminalmente, em consequência de ter posto em causa a sua isenção na acção n.º 742/2001 que lhe está igualmente distribuída e a cujo julgamento presidiu.
Quer o Ex.mo Juiz requerente que se não faça recear ou levantar quaisquer dúvidas sobre a imparcialidade que sempre terá de acompanhar o Juiz no julgamento da causa - quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nesta imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de «administrar justiça»; neste caso, não deve poder intervir no processo, antes deve ser impedido pela lei de funcionar - deve, numa palavra, poder ser declarado “iudex inhabilis” . Ac. do TC publicado no DR de 08.09.1988, II Série.

3. A missão do Magistrado encarregado de administrar a justiça e o acto de julgar que natural e fatalmente lhe está cometido, envolvendo uma sobreposição de ideais desligados de todas as particularidades mundanas, retira ao cidadão vulgar, que é a pessoa do Juiz, as suas usuais e caseiras fraquezas e eleva-o ao mais alto grau de liberdade mental, fazendo com que se sinta um ente diferente, devotado à realização de um bem supremo e que se traduz no empenho de alcançar a justa decisão do caso concreto que as partes lhe configuram (“judex est lex loquens”).
É nesta magnanimidade de princípios que se esgota a função do Juiz - um acto de coragem, como alguém lhe chamou - a qual tem de ser exercida indiferenciada e inominadamente em relação àqueles que a ela acorrem e pretendem usufruir das suas legítimas utilidades.
Seria, porém, violência atroz direccionada à sua bem formada consciência se não se pusesse ao dispor do Juiz a prerrogativa de poder transpor uma situação que, por aparentemente poder exteriorizar uma circunstância de imparcialidade, mesmo assim tivesse de prosseguir no julgamento da demanda - o Juiz pode ter justos escrúpulos, ou considerar que será preferível, para prestígio e bom nome da justiça, não intervir em determinada causa, ficando-lhe permitido expor à o seu caso ao superior hierárquico que, com serenidade e amor à justiça, o examinará, dando-lhe solução imparcial e de bom conselho... Prof. Alberto dos Reis; Comentário, I, pág. 435..
Pensamos, porém, que não há fundamento para que fique sob suspeição a solução final que o Ex.mo Magistrado irá dar ao litígio trazido pelas partes a Juízo.
Na verdade, o que transparece do relatado episódio surgido entre o Ex.mo Juiz que julgou a causa (acção n.º 742/2001) e as alegações de recurso que dele resultaram e da autoria do Ex.mo Advogado Dr. António C..., como é comummente aceite, não passará de um mal entendido que, a todo o tempo, poderá e deverá ser solucionado a contento de ambos.
Ao Ex.mo Juiz Dr. João C... assistem as qualidades de firmeza e controlo emocional que a situação exige e as vicissitudes que venham futuramente a ser criadas a este Ex. Julgador não irão contender com o seu brio profissional e enfraquecer a boa administração da justiça.
É este o juízo que, conscienciosa e reflectidamente, nos permitimos fazer sobre este tema, convencidos que estamos de que a exigida dignidade da função judicial não poderá deixar de estar presente em todo o contexto da lide.

Pelo exposto se desatende a pretensão formulada pelo Ex.mo Juiz.

Sem Custas.

Guimarães, 5 de Março de 2008.
O Presidente do Tribunal da Relação de Guimarães,