Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
352/02.8IDBRG.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: FRAUDE FISCAL
CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE
PUNIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/18/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMNENTO
Sumário: O limite de € 15.000,00 do art. 103 nº 3 do RGIT, abaixo do qual os factos que integram o crime de fraude fiscal não são puníveis, não é aplicável à fraude fiscal qualificada, prevista no art. 104 do mesmo RGIT, nomeadamente quando o agente utiliza facturas ou documentos equivalentes na execução do crime.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

No 3º Juízo do Tribunal Judicial de Fafe, em processo comum com intervenção do tribunal colectivo (352/02.8IDBRG), foi proferida acórdão que:

1 - Condenou cada um dos arguidos Filipe P... e José R... em:
a) relativamente aos factos do processo principal, por um crime de fraude fiscal p. e p. à data da prática dos factos pelo artº23º, nº1 e 2, c) e 3.a) , e) e f) do RJIFNA e actualmente 103º, nº1,a) e c) e 104º, nº2 do RGIT em 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão;
b) relativamente aos factos do processo apenso, por um crime de fraude fiscal qualificada p. e p. á data da prática dos factos, pelo artº 23º, nºs 1 e 2, c) e 3 a) e) e f) do RJIFNA e actualmente artº103º, nº1 , a) e c) e 104º, nº2 do RGIT em 2 (dois) anos de prisão.
E, em cúmulo jurídico destas penas parcelares, na pena única de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão, cuja execução foi suspensa por igual período de 2 anos e 7 meses com a condição de pagamento das quantias em dívida.
2 – Condenou a arguida “Construções N..., Lda
a) relativamente aos factos do processo principal, por um crime de abuso de confiança fiscal p. e p., á data da prática dos factos pelo artº 24º, nº1 do RJIFNA, aprovado pelo Dec.Lei nº20.4/90 , de 15-1 e actualmente pelo artº 105º, nºs 1,4,7 e 11 do RGIT em 300 dias de multa à taxa diária de € 1,00 (um euro); e
b) relativamente aos factos do processo apenso, por um crime de fraude fiscal qualificada p. e p. á data da prática dos factos, pelo artº 23º, nºs 1 e 2, c) e 3 a) e) e f) do RJIFNA e actualmente artº103º, nº1 , a) e c) e 104º, nº2 do RGIT, sendo a responsabilidade desta arguida nos termos dos arts. 7 e 11 do RGIT, em 500 (quinhentos) dias de multa à razão diária de €1,00 (um euro).
E, em cúmulo jurídico destas penas parcelares, na pena única de 625 (seiscentos e vinte e cinco) dias de multa à taxa diária de € 1,00 (um euro).

*

Deste acórdão interpuseram recurso os arguidos Filipe P... e José R....

Suscitam as seguintes questões:

- impugnam a decisão sobre a matéria de facto;
- alegam que, dos factos imputados, só são criminalmente puníveis os relativos às declarações referentes aos meses de Março de 1999 e Junho, Julho e Agosto de 2000, estando despenalizados os factos referentes às declarações relativas aos meses de Janeiro, Feverreiro, Abril e Maio de 1999, Setembro Outubro, Novembro e Dezembro de 2000; e
- consideram que em qualquer caso, devem ser condenados por apenas um crime e não dois, como se decidiu no acórdão recorrido

*

Respondendo, a magistrada do MP junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso, embora limitando a resposta às questões relativas à impugnação da matéria de facto.

Nesta instância o sr. procurador geral adjunto emitiu parecer no sentido da procedência parcial do recurso, por considerar que os factos integram apenas a prática de um crime por parte dos recorrentes.

Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.

Colhidos os vistos, realizou-se a audiência.


*

I – No acórdão recorrido foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):

Neste processo principal
I-A arguida Construções N..., Lda, é contribuinte com o nº503357748 registada em IRS, tendo como competente o Serviço de Finanças de Fafe.
II- Foi constituída por escritura lavrada no Cartório Notarial de Fafe, tendo como actividade principal a construção e reparação de edifícios que iniciou ( CAE045410) em 18 de Outubro de 1996, sendo seus representantes legais os sócios-gerentes, e aqui arguidos, Filipe P... e José R....
III- Como tal, a sociedade arguida está sujeita a Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) e está enquadrada para efeitos do Imposto Sobre Valor Acrescentado (IVA) no regime normal de periodicidade mensal, desde 1 de Janeiro de 1999, sendo a sua sede no lugar da Boavista, Passos, Fafe.
IV-Os contribuintes como a firma arguida, são obrigados no período de IVA respectivo, efectuar o apuramento do imposto exigível e ao envio das declarações periódicas acompanhadas dos respectivos meios de pagamento, conforme determinam os artºs 19º a 25º e 71º do CIVA.
V-Os arguidos Filipe Pereira e José Rocha , nos períodos abaixo assinalados, decidiram , no seu próprio interesse e da sua firma e relativamente aos meses de Novembro e Dezembro de 2000 praticar operações tributáveis , tendo procedido ao apuramento do imposto exigível.
VI-A Sociedade arguida nos períodos indicados não procedeu ao envio das declarações periódicas acompanhadas dos respectivos meios de pagamento. Deste modo não procedeu à entrega nos cofres do Estado do IVA liquidado no montante de 10.774,55 euros relativo a Novembro de 2000, correspondente à base tributável de 127.455, 10 euros e ao imposto de 21.667, 37 euros.
VII-De igual modo, registou na sua contabilidade as facturas de Dezembro de 2000, no montante de 63.493,01 euros, mais IVA no montante de 10.793,82 euros, e não procedeu à entrega do respectivo IVA liquidado e que recebeu no valor de 6.380,96 euros, no montante global de 17.155, 51 euros, relativo ao citado ano de 2000 ( 10.774, 55 +6.380,96). Ocultando desta forma os valores efectivamente recebidos e tendo por finalidade a obtenção de vantagem patrimonial indevida à custa do estado, susceptível de causar diminuição da receita tributária.
VIII-Ao liquidar o IVA a que estava obrigado, a sociedade arguida, deveria ter procedido à entrega do respectivo montante liquidado e efectivamente recebido daqueles clientes nos cofres do Estado, devendo efectuar a entrega do imposto liquidado juntamente com as respectivas declarações periódicas de IVA e referentes ao imposto liquidado naquele 4º trimestre de 2000.
IX-Contudo, a despeito de ter recebido tais quantias daqueles clientes, a firma arguida, com renovado propósito não procedeu a cada uma daqueles entregas nos Cofres do Estado como estava legalmente obrigada.
X- E não procedeu ao seu pagamento dentro do prazo de quinze dias e, decorridos mais noventa dias sobre tal prazo também não o realizou.
XI-Estes arguidos conheciam os factos descritos, quiseram actuar da forma como o fizeram, bem sabendo:
-que o IVA é uma prestação deduzida nos termos da lei e que está obrigado a entregar nos cofres do Estado os valores efectivamente cobrados e recebidos;
-que ao omitir, como omitiu nas declarações periódicas do IVA o valor de IVA cobrado e recebido daqueles seus clientes e relativos áquelas facturas tinha em vista hedibriar a administração fiscal e a apropriar-se daquelas prestações e, com isso, a lesar os interesses da Fazenda Nacional;
-que ao não proceder á sua entrega nos cofres do Estado o valor do IVA cobrado e recebido daqueles seus clientes se estava a apropriar daquelas prestações e, com isto a lesar os interessados da Fazenda Nacional;
que tais condutas eram susceptíveis de causar diminuição das receitas tributárias;
que tal era proibido e punido por lei.
XII-com o intuito de obter dedução de IVA e a menção de custos superiores aos da sua actividade no apuramento do rendimento dos exercícios de 1999 para efeitos de IVA, decidiram os arguidos, utilizar facturas emitidas pelos subempreiteiros Hélder S... e Domingos R... com o propósito concretizado de as preencher e as introduzir na respectiva contabilidade para suporte de serviços fictícios.
XIII- ao longo do ano de 1999, a firma arguida contabilizou como custas e deduziu IVA correspondente ás facturas mencionadas, no quadro abaixo, facturas essas emitidas conforme o já exposto com a convivência 1, 2 e 3.
Do Domingos R..., Nif 101454430, com domicílio fiscal no lugar de Balugães, Barcelos:
Factura nº data base tributável IVA
158 29-3-1999 31.424,27€ 5.342,13€
160 30-3-1999 26.436,29€ 4.494,17€
161 28-4-1999 4.888,78€ 831,00€
TOTAL 62,749,34€ 10,667,30€

Do Hélder S..., NIF: 211723533, com domicílo fiscal na rua Serpa Pinto, 177, r/c, Fafe.
49 30-1-1999 23.692,90 4.027,79
51 25-2-1999 12.220,55 2.077,49
52 25-2-1999 13.118,38 2.230,12
65 29-3-1999 15.462,73 2.628.66
66 29-3-1999 17.058,89 2.900,01
68 29-3-1999 13.467,54 2.289,48
85 29-4-1999 12.719,35 2.162,29
86 20-4-1999 9.477,16 1.611,12
87 29-4-1999 10.973,55 1.865,50
115 27-5-1999 12.469,95 2.119,89
116 27-5-1999 19.951,92 3.391,83
117 27-5-1999 9.975,96 1.695,91
TOTAL 170.588,88 29.000,09

XIV - As facturas em causa, como era seu propósito, feitas por si mencionar nas respectivas declarações, determinaram que fosse deduzido IVA, indevidamente, no montante de €39.667,39.
XV - Todos os arguidos agiram de modo livre, deliberado e consciente de forma previamente concertada, de forma a ludibriarem o Estado, já que todas as facturas referidas, não tiveram subjacentes quaisquer transacções efectivamente realizadas entre os citados sujeitos passivos e a firma arguida.
XVI - Todos os arguidos referidos sabiam que falseavam a realidade e que se propunham obter benefícios do Estado com as declarações de actividades não realizadas por quem emitiu as facturas em apreço.
XVII – O Hélder S... colectou-se no dia 20-11-96 para o exercício de actividades de construção de edifícios no regime normal com periodicidade trimestral, mas apenas entregou declaração relativa ao 4º trimestre de 96, deixando de exercer tal actividade.
XVIII – Domingos R..., sujeito passivo, nunca emitiu qualquer factura para a firma arguida, sendo que as facturas que utiliza na sua actividade são diferentes destas..As facturas dos autos foram requisitadas à tipografia L..., Ldª, por pessoa não concretamente identificada.
XIX – Todos os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e que defraudavam o sistema de impostos instituídos pelo Estado e os objectivos que com eles se propõe prosseguir, nomeadamente em sede de IVA.
XX – Sabiam, ainda, que as apontadas facturas acima descritas e utilizadas referiam-se a operações não realizadas por quem emitiu as facturas em apreço e, ainda assim não se coibiram de as utilizar com aquele propósito.
XXI – Sabiam que lesavam a Fazenda Nacional enriquecendo o património pessoal daquela.
Não se provaram quaisquer outros factos.
xxx
No processo apenso
XXII – Com o intuito de obter dedução de IVA e a mensão de custos superiores da sua actividade no apuramento do rendimento do erxercício para efeitos de IVA, decidiram os arguidos, enquanto representantes legais da sociedade arguida, em benefício próprio e da mesma, contactar os sujeitos passivos Orlando N..., Rui R... e Rui L..., para o fornecimento de “facturas falsas “, com o propósito concretizado de as preencher e as introduzir na respectiva contabilidade para suporte de serviços não realizados por quem emitiu as facturas referidas.
XXIII - Todos os sujeitos passivos mencionados se disponibilizaram a requisitar e a fornecerem facturas em seu próprio nome e em nome da respectiva firma, para depois os arguidos as utilizarem como muito bem entendessem, fazendo-as concluir na respectiva contabilidade.
XXIV – Ao longo do ano de 2000 os arguidos contabilizaram como custos e deduziram IVA correspondente ás facturas mencionadas no quadro abaixo, facturas essas emitidas pelo procedimento atrás descrito.
XXV – Com o nome de Orlando R..., NIF 14877039, com domicilio fiscal declarado na rua Central do Seixo, 67-3º Esqº, Matosinhos:

Factura n º Data Base tributável IVA Período dedu IVA

24 31-7- 00 14.335,45 2.437,03 00/ 03 T
25 31-7-00 1.352,99 230,00 “
26 31-7-00 1.588,87 270,11 “
27 31-7-00 3.220,99 547,57 “
30 30-8-00 1.483,67 252,22 “
31 30-8-00 2.645,62 449,76 “
32 30-8-00 14.713,29 2.501,25 “
33 30-8-00 4.036,27 686,17 “
35 30-9-00 5.667,14 963,42 “
36 30-9-00 3.229,82 549,07 “
47 30-10-00 4.447,58 756,09 “
48 30-10-00 4.801,93 816,33 “
49 30-10-00 2.915,97 495,72 00/04 T
TOTAL 64.439,59 10.954,74

De Rui R..., Nif: 189.894.482, com domicílio fiscal declarado na Rua 1º Maio,2200 5º Esq. T-Valongo:

122 31-7-00 3.259,74 562,63 00/03 T
123 31-7-00 3.868,18 657,59 “
124 31-7-00 16.554,60 2.814,29 “
130 30-8-00 5.237,38 890,35 “
131 30-8-00 16.161,05 2.747.38 “
132 30-8-00 4.205,86 715,00 “
133 30-8-00 10.050,78 1.708,63 “
134 30-8-00 13.208,27 2.245,39 “
138 30-9-00 9.073,93 1.542,57 “
139 30-9-00 9.535.02 1.620,95 “
140 30-9-00 2.184,73 371,40 “
145 30-10-00 11.032,41 1.875,52 00/04 T
146 30-10-00 5.748,15. 977,18 “
TOTAL 110.120,00 18.728,88

De Rui L..., Nif:165367610, com domic´´ilio fiscal declarado na Rua dos Amieiros, 2º Dtº Ermesinde:
481 28-6-00 127,007,31 21.591,24
807 28-7-00 13.964,12 2.373,90
808 28-7-00 49.663,99 8.442,88
810 30-8-00 33.934,12 5.786,80
812 29-9-00 4.912,66 835,15 01/06T
TOTAL 229.482,20 39.011,97

XXVI- As facturas em causa, como era seu propósito, feitas por eles mencionar nas respectivas declarações , determinaram que fosse deduzido IVA, indevidamente relativo ao exercício do ano 2000 o montante de €57.882,19.
Todos os arguidos agiram de modo livre ,deliberado e consciente de forma previamente concertada, de forma a hedibriarem o Estado, já que todas as facturas referidas não tiveram subjacentes quaisquer transacções efectivamente realizadas com os citados sujeitos passivos.
XXVII- Todos os arguidos sabiam que falseavam a realidade e que se propunham obter benefícios do Estado com declarações de actividades não realizadas, estando em dívida os valores mencionados.
XXVIII – No que concerne ao sujeito passivo Orlando R..., não procedeu ao envio das declarações periódicas do IVA no ano 2000 e na declaração de rendimentos do IRS do ano 2000a no ano de 2000 , apenas declarou rendimentos auferidos por conta de outrem. Não se encontrava registado como empresário na Segurança Social.
XXIX- Por sua vez, Rui R..., esteve colectado pela actividade de acabamentos entre 4-1-1994 e 30-4-1999. Contudo as facturas constantes dos autos têm data posterior à cessação de actividade. Não se encontra inscrito como empresário na Segurança Social.
XXX- Também o sujeito passivo, Rui L..., no ano de 2000 não entregou qualquer declaração fiscal. Não se encontrava registado como empresário na Segurança Social.
XXXI- Todos os arguidos sabiam que as suas imputadas condutas eram proibidas e punidas por lei e que de modo continuado e esclarecido defraudavam o sistema de impostos instituídos pelo Estado e os objectivos que com eles se propõe prosseguir, nomeadamente em sede de IVA.
XXXII- Sabiam, ainda, que as apontadas facturas acima descritas e utilizadas referiam-se a operações inexistentes e ainda asiim não se coibiram de as utilizar com aquele propósito.
XXXIII- Sabiam que lesavam a Fazenda Nacional, enriquecendo o património pessoal à custa daquela.
xxx
Considerou-se não provado que:
Nos autos principais
Com intuito de obter dedução do IVA e a menção de custos superiores aos da sua actividade os arguidos entraram em contacto com Hélder S..., seu conhecido e de quem sabiam ser fornecedor de “ facturas falsas “, facturas que o mesmo tinha obtido em nome e por contacto com Carlos F..., toxicodependente, o qual se havia disponibilizado a requisitar e a fornecer facturas em seu próprio nome para depois o Hélder as utilizar como muito bem entendesse junto de diversas pessoas que o procurassem para estas as fazer incluir na respectiva contabilidade, a troco de uma contrapartida em dinheiro por cada factura que viesse a ser entregue, bem sabendo todos eles que o que ali viesse a constar em n Ada correspondia a trabalhos ou obras efectivamente prestadas.
Para idêntico fim, para além daqueles livros de facturas e recibos relativos a Carlos F... o Hélder também tinha obtido facturas e recibos em de Marco P... e de Domingos R..., com o propósito de as vender a quem quisesse introduzir na respectiva contabilidade para suporte de serviços fictícios .
Outro tanto e de igual modo procedeu o sujeito passivo, já falecido Fernando M..., que obteve “ facturas “ em nome de António C... e de Manuel R....
As facturas em nome de Domingos R... foram requisitadas por Hélder S....
xxx
Nos autos apensos
O sujeito passivo Rui L... só para a empresa arguida em 4 meses facturou €268.494,17.

*
FUNDAMENTAÇÃO
1 – A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Os recorrentes impugnam “em bloco” os factos provados sob os nºs V a XXXIII, ou seja todos os factos com relevância para a incriminação. Mas a argumentação assenta num equívoco: o de que a Relação pode fazer um novo julgamento da matéria de facto, decidindo, através da consulta do registo da prova e dos elementos dos autos, quais os factos que considera «provados» e «não provados». Como escreveu o Prof. Germano Marques da Silva, talvez o principal responsável pelas alterações introduzidas no CPP pela Lei 59/98 de 25-8, “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” – Forum Justitiae, Maio/99. É que “o julgamento a efectuar em 2ª instância está condicionado pela natureza própria do meio de impugnação em causa, isto é, o recurso… Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…” – ac. TC de 18-1-06, DR, iiª série de 13-4-06.
Por isso é que as als. a) e b) do nº 3 do art. 412 do CPP dispõem que a impugnação da matéria de facto implica a especificação dos «concretos» pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados e das «concretas» provas que impõem decisão diversa. Este ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados. Em relação a cada um têm de ser indicadas as provas concretas que impõem decisão diversa (é mesmo este o verbo - «impor» - utilizado pelo legislador) e em que sentido devia ter sido a decisão. É que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução.
Não concretiza aquele Professor a que “vícios” se refere, mas alguns poderão ser sumariamente indicados.

Por exemplo, se o tribunal a quo tiver dado como provado que A bateu em B com base no depoimento da testemunha Z, mas se da transcrição do depoimento de tal testemunha não constar que ela afirmou esse facto, então estaremos perante um erro manifesto no julgamento. Aproveitando ainda o mesmo exemplo, também haverá um erro no julgamento da matéria de facto se, apesar da testemunha Z afirmar que A bateu em B, souber de tal facto apenas por o ter ouvido a terceiros. Aqui estaremos perante uma indevida valoração de meio de prova proibido (arts. 129 e 130 do CPP), que pode ser sindicada pela relação. Poderá ainda afirmar-se a existência de um “vício” no julgamento da matéria de facto, quando a decisão estiver apoiada num depoimento cujo conteúdo, objectivamente considerado à luz das regras da experiência, deva ser considerado fruto de pura fantasia de quem o prestou. Ou quando alguma ilação que o julgador tirou de um facto conhecido contenda com as mesmas regras da experiência.
O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127 do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, ed.1974, pag. 204.
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”. E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar” – Anotado, vol. IV, pags. 566 e ss.

*
A argumentação da motivação do recurso consiste na análise de toda a prova produzida no julgamento e na extracção das conclusões que os recorrentes têm por pertinentes. Mas o momento processualmente previsto para o efeito são as alegações finais orais a que alude o artigo 360 do CPP. A impugnação da decisão da matéria de facto não se destina à repetição, agora por escrito, do que então terá sido dito.
No caso os recorrentes não contestam que os inspectores tributários depuseram no sentido indicado no acórdão recorrido. Contrapõem-lhes as suas próprias versões dos factos, que não mereceram a credibilidade do tribunal, sendo que tal falta de credibilidade não aparece com o algo fruto do puro arbítrio e da mera subjectividade dos juízes.
Vejamos, por exemplo: os recorrentes juntaram ao processo com abundante documentação, nomeadamente contratos de subempreitadas. Mas os juízes não são meros depositários acríticos de provas. Na motivação da decisão sobre a matéria de facto refere-se que o Rui L... não tinha pessoal na segurança social, não estava inscrito como empresário, não estava inscrito como trabalhador por conta de outrem. Apresentou declaração de IRS sem qualquer rendimento.
Apesar disso assinou os contratos de subempreitadas de fls. 1132 e ss e emitiu as facturas referidas nos factos provados.
A conclusão de que tudo isso são documentos forjados não colide com as regras da experiência (art. 127 do CPP), pois é normal o recurso a pessoas como o Rui L..., para justificar fraudes tributárias. É conclusão que está claramente no âmbito da livre convicção do julgador. Poderia, eventualmente, o colectivo ter candidamente acreditado na versão dos recorrentes de que todas as facturas correspondiam a trabalhos efectivamente prestados pelo Rui L.... Mas se a Relação agora decidisse que foi como pretendem os arguidos estaria a efectuar um novo julgamento da matéria de facto, ultrapassando em muito o controle dos “vícios” detectáveis no julgamento da primeira instância. Vício haveria se os recorrentes demonstrassem que, ao contrário do considerado pelo colectivo, o Rui L... tinha trabalhadores inscritos na Segurança Social e estava inscrito como empresário. Isso sim, seria uma prova que impunha decisão diversa da recorrida.
Como se disse, os recorrentes não fizeram as especificações do art. 412 nºs 3 e 4 do CPP. Isso sempre levaria à improcedência da impugnação sobre a matéria de facto. Porém, mesmo que tal óbice não existisse, na argumentação que desenvolveram não se detecta a existência de algum “vício” no julgamento da matéria de facto com os contornos acima referidos. Alongam-se a exporem à Relação as razões porque teriam decidido a absolvição se tivessem sido os juízes do seu próprio caso, mas nenhumas consequências isso pôde ter, pois é aos juízes e não a outros sujeitos processuais, naturalmente condicionados pelas específicas posições que ocupam, que compete o ofício de julgar. Verdadeiramente, nesta parte, a procedência do recurso implicava que a Relação censurasse o tribunal recorrido por, cumprindo a lei, ter decidido segundo a sua livre convicção, conforme lhe determina o art. 127 do CPP.
2 – “A despenalização das irregularidades imputadas aos arguidos referentes às declarações relativas aos meses de Janeiro, Feverreiro, Abril e Maio de 1999, Setembro Outubro, Novembro e Dezembro de 2000
Na argumentação da motivação, os recorrentes partem do pressuposto de que não podem ser perseguidos penalmente pelos valores relativos aos meses indicados, por as respectivas condutas “estarem despenalizadas pelo limite de € 15.000 da actual redacção dos nºs 2 e 3 do RGIT”.
Porém (com excepção dos meses de Novembro e Dezembro de 2000), os factos não integram apenas a autoria de um crime de fraude fiscal «simples», mas de fraude fiscal «qualificada» pelo nº 2 do art. 104 – utilização de facturas ou documentos equivalentes por operações inexistentes.
A técnica legislativa é bem clara.
Os recorrentes não praticaram apenas factos previstos em “números anteriores” do art. 103 nº 2 . Praticaram esses e mais outros, que qualificam o crime (utilizaram facturas falsas – art. 104 nº 2). Os factos não puníveis são apenas os previstos nos “números anteriores”, não existindo nenhuma razão, literal ou outra, para suspeitar que o legislador quis também abranger os factos previstos nos «artigos seguintes».
São realidades de gravidades distintas. Uma coisa é a fraude consistir unicamente na comunicação da existência de um negócio simulado. Outra, bem mais grave, é forjar documentos para convencer que o negócio efectivamente existiu, tornando mais difícil a descoberta do crime. Foi apenas o primeiro comportamento que o legislador pretendeu beneficiar com a norma do art. 103 nº 2 do RGIT.
Ora, com excepção dos já referidos meses de Novembro e Dezembro de 2000, o processo criminoso implicou sempre o uso de documentos que referiam factos que o colectivo considerou inexistentes.
3 - O número de crimes cometidos
Alegam os recorrentes que “os vários actos não integram dois conceitos de crime continuado, mas um só crime continuado”.
Os recorrentes confundem o “crime continuado” com o crime cuja execução se prolonga no tempo.
A realização plúrima do mesmo tipo de crime pode constituir a) um só crime, se ao longo de toda a realização tiver persistido o dolo ou a resolução inicial; b) um só crime na forma continuada, se toda a actuação não obedecer ao mesmo dolo, mas este estiver interligado por factores externos que arrastam o agente para a reiteração das condutas; e c) um concurso de infracções, se não se verificar qualquer dos casos anteriores – por todos, v. ac. S.T.J. de 25-6-86 in BMJ 358/267.
O «crime continuado» pressupõe sempre a existência de uma pluralidade de resoluções. Isso decorre inequivocamente da norma do art. 30 nº 2 do Cod. Penal.
No caso destes autos, decorre dos factos provados sob os nºs XII (processo principal) e XXII (processo apenso) que os respectivos comportamentos foram fruto de uma resolução inicial. A execução do plano criminoso prolongou-se no tempo, mas isso não é suficiente para que se possa considerar estarmos perante um crime continuado.
Posto isto, têm razão os recorrentes quando entendem que os factos integram um só crime (embora não “continuado”).
Vejamos:
Na economia dos factos, no processo principal, a execução do projecto de defraudar o fisco teve início em Janeiro de 1999 (facto XIII) e fim em Dezembro de 2000 (facto VII).
No meio deste período ficam os factos do processo apenso, que vão de Junho de 2000 a Outubro de 2000 (facto XXV).
Ora, nenhum sentido faz considerar que no meio da execução dos factos do primeiro processo, os arguidos tomaram nova resolução, distinta e independente da inicial, mas com os mesmos objectivos e modo de execução da primeira. O número de crimes resulta da configuração real dos factos e não do número de processos ou acusações “autónomas” que o MP decide subjectivamente proferir.
Temos, pois, que cada um dos arguidos cometeu apenas um crime (e não dois) de fraude fiscal p. e p. à data dos factos pelo art. 23 nº 1, 2 al. c) e 3 als. a), e) e f) do RJIFNA e actualmente pelos arts. 103 nº 1 als. a) e c) e 104 nº 2 do RGIT – Aliás, os recorrentes não impugnam a incriminação, nem as penas concretas, para o caso de os factos se manterem inalterados, não sendo isso objecto do recurso.
Assim, para o crime por que os recorrentes vão condenados, fixa-se uma pena igual à pena parcelar mais grave fixada no acórdão recorrido – dois anos de prisão – mantendo-se a suspensão da execução, mas agora pelo período de dois anos.
Quanto à condição a que fica subordinada a suspensão, exclui-se do pagamento as quantias relativas aos meses de Novembro e Dezembro de 2000, pois, não se verificando relativamente a elas as circunstâncias qualificativas do art. 104 nº 2 do RGIT, os respectivos comportamentos estão despenalizados pelo limite de € 15.000 da actual redacção dos nºs 2 e 3 do art. 103 do RGIT.
Finalmente, o recurso aproveita à arguida “Construções N..., Lda” (art. 402 nº 2 al. a) do CPP), pelo que também esta arguida deve ser condenada apenas por um crime (de fraude fiscal qualificada p. e p. á data da prática dos factos, pelo artº 23º, nºs 1 e 2, c) e 3 a) e) e f) do RJIFNA e actualmente artº103º, nº1 , a) e c) e 104º, nº2 do RGIT), fixando-se para esta arguida, tal como com os recorrentes, uma pena igual à pena parcelar mais grave fixada no acórdão recorrido – 500 dias de multa à taxa diária de 1 euro.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães, concedendo provimento ao recurso, condenam:

1 – Cada um dos arguidos Filipe P... e José R..., por m crime de fraude fiscal p. e p. à data dos factos pelo art. 23 nº 1, 2 al. c) e 3 als. a), e) e f) do RJIFNA e actualmente pelos arts. 103 nº 1 als. a) e c) e 104 nº 2 do RGIT em dois anos de prisão.

Suspendem a execução destas penas pelo período de dois anos sob a condição do pagamento das quantias em dívida nos termos acima indicados.

2 – A arguida Construções N..., Lda, em 500 (quinhentos ) dias de multa á razão diária de 1 (um) euro

Não são devidas custas nesta instância – art. 513 nº 1 do CPP.