Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
| Processo: |
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| Relator: | ANTÓNIO GONÇALVES | ||
| Descritores: | INSOLVÊNCIA CULPA | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 09/20/2007 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | JULGADA IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | 1. Enquanto toda e qualquer particularidade factual incluída no n.º 2 do art.º 186.º do CIRE se tem de considerar, inflexivelmente (iure et de iure - presunção inilidível), como insolvência culposa - considera-se sempre culposa a insolvência, diz a lei - da verificação daqueles requisitos, ou seja, a ocorrência das situações aí previstas determina, inexoravelmente, a atribuição de carácter culposo à insolvência, o mesmo se não passa quando estivermos perante qualquer dos casos que integram o contemplado no n.º 3 do art.º 186.º do CIRE. 2. Nesta última proposição legal, porque se estabelece tão só uma presunção de culpa - genericamente definida no n.º 1 de tal preceito (que impõe, para que a insolvência seja qualificada como culposa, que se verifique o nexo de causalidade entre a acção do devedor dirigida a esse resultado) - a exigir uma actuação dolosa ou com culpa grave, o que pragmaticamente nos oferece esta prescrição legal (n.º 3 do art.º 186.º do CIRE) é que os casos que aí se contextuam presumem a culpa do insolvente tal qual está descrita no seu n.º 1 e, por isso, só podendo ser entendida no âmbito da redacção posta naquele preceito legal (n.º 1 do art.º 186.º), o juízo sobre a culpabilidade a atribuir ao insolvente tem de assentar ainda em que a actuação com culpa grave presumida criou ou agravou a situação de insolvência. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES: No presente incidente de qualificação de insolvência que corre por apenso aos autos de insolvência em que é Requerida “Q... - Indústria de T..., L.da” e é requerente Abel S..., o Exmo. Sr. Administrador da Insolvência e o Digno Magistrado do Ministério Público vieram propor a qualificação da insolvência como culposa. Citados para o efeito, o gerente José C... e a sua mulher Maria C... vieram alegar a caducidade do parecer do Exmo. Ex.mo Sr. Administrador da Insolvência, considerando o teor dos pareces conclusivos e sem qualquer factualidade, alegando também que os bens retirados da empresa pertenciam a terceiros ou ao próprio requerido. Foi proferido despacho saneador, fixados os factos assentes e elaborada a base instrutória, a qual veio a merecer reclamação que foi deferida. Procedeu-se a julgamento e, a final, o Ex.mo Juiz proferiu sentença em que se decidiu o seguinte: a) Qualificar como culposa a insolvência de “Q... – Indústria de T..., Lda.”, com sede na Rua de O..., ...97, U..., em Guimarães, matriculada na C.R.C. de Guimarães sob o n.º 502028149 (correspondente à antiga 3015/880816), considerando que essa qualificação abrange o gerente da devedora, José C..., residente na Urbanização do Pedral, Bloco C, Lote B., 765, 1º direito, Candoso (Santiago), 4835-245 Guimarães; b) Decretar a inabilitação de José C..., pelo período de dois anos, para a prática de quaisquer actos referentes ao seu património ou a patrimónios por si geridos que não sejam de mera administração, sendo necessário para os demais (actos de disposição de bens entre vivos) autorização do curador a nomear; c) Declarar José C... inibido para o exercício do comércio durante um período de três anos, não podendo, durante igual período, ocupar de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; d) Determinar a perda de quaisquer eventuais créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo referido José C... e condená-lo a restituir todos os bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos. Inconformado com esta sentença, dela recorreu o requerido José C..., que alegou e concluiu do modo seguinte: 1° - Sobe a V. Exas. o presente recurso da douta sentença que qualificou a insolvência como culposa, decretou a inabilitação do recorrente, declarou-o inibido para o exercício do comércio e determinou a perda de quaisquer créditos por si detidos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente. 2° - Desde logo, ao presente recurso devia ter sido qualificado como de Agravo, a subir nos próprios autos, imediatamente e com efeito suspensivo atendendo ao disposto no artigo 14°, n.° 6, al. b) do CIRE e aos artigos 733°, al. a) do n.° 1 do artigo 734° e n.° 1 do artigo 740° todos do CPC 3° - Ora, a sentença recorrida qualificou a insolvência como culposa, decretando a inabilitação e inibição do Recorrente por entender aplicar-se o disposto no artigo 186°, n.º 1, n.º 2, al. a) e 189° do CIRE. 4° - Nos termos do artigo 186°, n.º 1 do CIRE, a insolvência é considerada como culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores nos três anos anteriores ao início do processo. 5° - São requisitos da qualificação da insolvência como culposa: a) o facto (acção ou omissão) do agente; b) que, em consequência desse facto se possa dirigir um juízo de censura ao agente a título de culpa (que nos casos dos n.° 2 e 3 se presume) c) que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada em consequência do acto culposo; d) a existência de uma relação de causalidade entre a conduta do devedor e o estado de insolvência. 6° - O n.º 3 do mesmo artigo consagrou uma presunção de culpa grave quando ocorram determinadas situações nele previstas, a saber: a) não tiverem cumprido o dever de requerer a declaração de insolvência nos termos do artigo 18° b) estando o devedor obrigado a prestar contas anuais, a submetê-las a fiscalização ou depositá-las na conservatória do registo comercial, os seus administradores não cumpram estes deveres no prazo legal 7° - Enquanto o n.º 2 da mesma norma tipifica actos ou comportamentos que, quando praticados pelos administradores, considera-se "SEMPRE" culposa a insolvência. 8° - É já unânime que enquanto o n.° 3 desta norma prevê uma presunção iuris tantum, ilidível mediante prova em contrário, no n.° 2 é estabelecida uma presunção iuris et de iure, ou seja, inilidível. 9° - Analisando a aplicação do n.° 3 do artigo 186° do CIRE, entendeu o Tribunal (e bem) que, não obstante se ter verificado que o administrador não cumpriu o dever de requerer a declaração de insolvência nem depositou as contas na Conservatória do Registo Comercial, o certo é que a matéria factual dos autos não era suficiente para se poder concluir pela verificação dos seus pressupostos. 10° - Aplicou, então, o artigo 186°, n.° 2, al. a) do CIRE por entender que os factos provados nele podiam ser subsumíveis. 11° - Ora, de acordo com esta norma, "considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor." 12° - Tal norma concretiza os actos que corporizam o facto (acção ou omissão) do agente e é composta pelos seguintes requisitos: a) acto de destruição, danificação, inutilização, ocultação ou desaparecimento; b) no todo ou em parte considerável; c) o património do devedor. 13° - O incidente em causa tem por base o requerimento de Abel S... e os Pareceres do Ex.mo Administrador de Insolvência e do Digno M.° P.°, sendo estes, em termos factuais, manifestamente insuficientes e incipientes para o efeito pretendido, pois não contêm factos suficientes e susceptíveis de, após a produção da prova, se poder considerar preenchida a al. a) do n.° 2 do artigo 186°. 14° - Mas, primeiro, haverá que saber-se quem deve produzir a prova, ou seja, qual é a parte onerada com esse encargo. 15° - Nos termos do artigo 342° do Código Civil, "1. Aquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. 2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita." 16° - O ónus da prova deve ser lançado sobre quem alega o facto e o direito, recaindo sobre quem tem interesse em alegar. 17° - Nesta matéria de averiguação da responsabilidade do gerente na insolvência da empresa, aquele que exige a responsabilidade (o requerente da insolvência Abel Silva, o Administrador de Insolvência e M. P.) é que terá que alegar e provar que o gerente praticou o facto do qual pretende fazer derivar a responsabilidade e que praticou com culpa. 18° - No entanto, em matéria de qualificação de insolvência, haverá que ter em atenção a existência das supra referidas presunções, já que as regras do ónus de prova podem inverter-se conforme estatui o artigo 344° do Código Civil. 19° - Ora, é sabido que neste n.º 2 encontra-se consagrada uma presunção iuris et de iure, ou seja, em que não é admissível prova em contrário. 20° - Nesta norma estão previstos comportamentos dos administradores do insolvente que não seja pessoa singular, situações objectivas, impossíveis de transformação/geração de qualificação da insolvência como fortuita, porque a lei impõe que, mediante a verificação das situações aí previstas, a insolvência é sempre considerada culposa. 21° - No fundo, estipula-se que, nas situações aí previstas, se considera sempre como culposa a insolvência, isto é, causada ou agravada por dolo ou culpa grave do devedor ou dos administradores, desde que provadas objectivamente quaisquer das situações aí indicadas. 22° - Então, o que se presume na norma é a CULPA e não o facto ilícito praticado pelo agente que terá que ser objectivamente provado. 23° - Neste caso, o Legislador previu que, quando provado o facto, deveria, desde logo, ser presumida a culpa do agente, ou seja, basta a prova do facto para se considerar sempre culposa a insolvência. 24° - No n.° 2 do artigo 186° do CIRE (por prever uma presunção inilidível), não é possível ao administrador produzir prova em contrário, tentando demonstrar que, apesar de ter ocorrido aquele facto, não agiu com culpa. 25° - Desta forma, não existindo qualquer inversão do ónus de prova, era sobre o requerente da Insolvência, o Administrador da insolvência ou o M.° P.° que impendia o ónus de provar o facto e, caso o lograssem obter, então considerar-se-ia logo provada a culpa. 26° - Para que a situação da insolvência dos autos fosse declarada como culposa era necessário provar o FACTO ou ACTO ilícito que leva a presumir a culpa (provar que o Recorrente destruiu, danificou, inutilizou, ocultou ou fez desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor) 27° - Por PATRIMÓNIO DO DEVEDOR deve entender-se todos os bens, móveis ou imóveis, e direitos susceptíveis de avaliação pecuniária pertencentes ao devedor ou na sua titularidade. 28° - Esses bens ou direitos hão-de pertencer ao devedor ou por este detidos por um qualquer título ou contrato que atribua à empresa o poder pleno de uso, fruição e disposição sobre eles já que o que se visa sancionar é o acto do agente de desapossar ou subtrair da esfera de disposição da empresa bens que responderiam pelo seu passivo. 29° - Nenhum dos impulsionadores do incidente e nem sequer o Tribunal, através do seu poder de investigação, carreou para os autos a prova necessária e suficiente do facto susceptível de se extrair a propriedade dos bens móveis existentes na empresa ou o título sobre o qual esta os detinha. 30° - Dos factos provados apenas consta que em 06 de Junho de 2006 "existiam na empresa as seguintes máquinas e equipamentos..." (sublinhado e negrito é nosso) 31° - No entanto, tais bens poderiam "existir" na empresa por diversos títulos ou motivos, sem, contudo, a ela pertencerem ou sobre os mesmos não ser a empresa titular de qualquer direito susceptível de avaliação pecuniária capaz de satisfazer, no todo ou em parte, o passivo. 32° - Da matéria de facto provada não consta qualquer facto capaz de demonstrar que os bens constituíam património da devedora, fossem da sua propriedade ou do seu imobilizado. 33° - Da matéria assente, deveria constar, por exemplo, um dos seguintes factos: - "As máquinas e equipamentos foram adquiridos pela empresa, que deles ficou dona e legitima possuidora" - "As máquinas e equipamentos eram pertença da devedora por as ter adquirido através de contrato de X" - "As máquinas e equipamentos constituem parte do imobilizado da empresa por ter sido celebrado o negócio Y" - "A empresa detinha as máquinas e equipamentos por via do contrato de Z" 34° - Mas, apesar disso, apenas ficou provado que "EXISTIAM" na empresa as referidas máquinas e equipamentos. 35° - A douta sentença, na fundamentação de direito, refere que "tal comportamento visou ocultar tal património da insolvente, subtraindo-lhe imobilizado cuja venda poderia lograr satisfazer parte do passivo", sendo certo que tal afirmação não tem qualquer sustentação factual, não podendo ser retirada tal conclusão dos factos provados. 36° - Aliás, dos factos provados consta que da escrituração (imobilizado) da empresa "fazia parte apenas um tear de marca Mayer jogo 1830", não se podendo afirmar que os restantes equipamentos faziam parte do imobilizado da empresa. 37° - O facto de que "na empresa existiam máquinas e equipamentos" não é suficiente para preencher o pressuposto - património do devedor - da al. a) do n.° 2 do artigo 186° do CIRE. 38° - A sentença recorrida ao decidir como o fez olvidou que o ónus da prova de que tais bens eram do património da empresa cabia aos interessados na qualificação da insolvência como culposa (Abel F..., Administrador de Insolvência e Digno M.° P.°), não podendo a falta de prova ser julgada em desfavor do recorrente. 39° - Para além de que não fez correcta integração dos factos no direito pois da matéria assente não constam factos suficientemente capazes de preencher a norma da al. a) do n.° 2 do artigo 186° do GIRE. 40° - Nessa medida, a douta sentença extravasou os factos provados para condenar o recorrente nos termos da al. a) do n.° 2 do artigo 186° do CIRE e, por isso, está ferida de nulidade, que se invoca e violou o disposto no n.° 1 e na al. a) do n.° 2 do artigo 186° do CIRE e artigo 659°, n.° 2 do CPC. 41° - Os artigos 186° n.° 2 e 189° n.° 2, alínea b), do Dec.Lei n.º 200/2004, de 18/08, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) estabelecem uma cominação de inabilitação do administrador cuja conduta culposa tenha contribuído ou determinado a insolvência da empresa, presumindo a sua culpa caso destrua, inutilize, oculte, ou faça desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor; 42° - Tais normas prevêem a inabilitação, em paralelo ou simultâneo com a inibição, como uma verdadeira e própria incapacidade jurídica que o Código Civil tipifica como modalidades, a menoridade (artigo 122°) a interdição (artigo 138°) e a inabilitação (artigo 152°) 43° - A capacidade jurídica definida no artigo 67° do Código Civil encontra consagração no artigo 26° da Constituição da República Portuguesa como direito fundamental em termos de a todos ser reconhecido o direito à capacidade civil cujas restrições só podem efectuar-se nos casos e termos previstos na lei. 44° - Os motivos da restrição devem ser pertinentes e relevantes sob o ponto de vista da capacidade da pessoa e não pode servir de pena ou efeito de pena. 45° - A restrição dos direitos fundamentais, como a capacidade civil, devem obedecer aos requisitos de substância resultantes do artigo 18° da CRP, ou seja, que vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido, que seja exigida por essa salvaguarda, que seja apta para o efeito e se limite à medida necessária para alcançar esse objectivo e que a restrição não aniquile o direito em causa atingindo o conteúdo essencial do respectivo preceito. 46° - A inabilitação prevista no artigo 152° do Código Civil, como a interdição, assenta na demonstração da incapacidade do cidadão de reger o seu património, ou regê-lo convenientemente, pelo que o que se pretende prevenir com uma tal limitação à capacidade jurídica do cidadão é o seu próprio interesse. 47° - Ao invés, a inabilitação prevista no artigo 189° n.° 2 alínea b) do CIRE visa, primariamente, o interesse dos credores, e não o interesse do próprio inabilitando, pelo que uma tal restrição da capacidade civil não é "pertinente" e"relevante" sob o ponto de vista da capacidade da pessoa e não visa salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido. 48° - Na inabilitação a que se refere o artigo 189° do CIRE, além do interesse protegido não ser o do próprio inabilitando mas sim dos credores da insolvente, nada justifica uma tal restrição do direito fundamental na óptica de que a mesma é inócua nos efeitos que produz no processo de insolvência ou mesmo nos próprios interesses dos credores. 49° - Tal inabilitação assume, pois, carácter ou natureza sancionatória, sendo que a Constituição da República Portuguesa - artigo 26° - não consente que uma restrição (como a inabilitação) de um direito fundamental (como a capacidade jurídica) tenha um efeito de pena. 50° - O que conduz ao decretamento da inabilitação é um juízo de culpabilidade na insolvência que recai sobre a pessoa do administrador, culpa que se acha pelo recurso a presunções "iuris et de iure" como as que vêm reflectidas no citado artigo 186° n.° 2° do CIRE. 51° - O legislador ordinário, em matéria de restrições ao direito fundamental como a capacidade civil não podia instituir um regime que, na forma (recurso a presunções) e na substância (tipificação de situações que nada têm a ver com a capacidade jurídica) facilitam o decretamento da inabilitação. 52° - Não constitui fundamento sério, equilibrado, adequado, exigível e proporcional decretar a inabilitação de um cidadão só porque se presume culpado da insolvência, presunção essa alicerçada no simples facto do sujeito ter inutilizado ou ocultado bens do património do devedor ou não ter cumprido com as regras comerciais estabelecidas como sendo manter a contabilidade organizada reproduzido art.° 186° n.º 2, al. a) e h) respectivamente do CIRE, norma que, assim, viola os princípios da proibição do excesso, da adequação, da exigibilidade e da proporcionalidade em sentido restrito. 53° - O art. 186°, n.° 2 do CIRE, ao fixar uma presunção de culpa dos administradores do devedor, presunção essa inilidível, ou seja, sem possibilidade de prova em contrário traduz-se numa flagrante inconstitucionalidade (orgânica e material), pois os administradores da insolvente poderão ter praticado o facto, inclusive, a coberto de um dever mas não podem sequer tentar demonstrar e provar que não tiveram culpa no facto e na situação de insolvência. 54° - A Lei n.º 39/2003 de 22 de Agosto - art. 2°, n.° 5, 6, 7 e 8 - autorizou o Governo a prever, no processo de insolvência, um incidente de qualificação da insolvência como fortuita ou culposa, prescrevendo-se que ela será culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, caso em que o Juiz deverá declarar a inabilitação do administrador. 55° - Ao presumir-se, automaticamente, a culpa e cominar-se com as consequências previstas no art. 189, n.° 2 do CIRE, nos casos do art. 186°, n.° 2 - o legislador ordinário ultrapassou e violou os poderes legislativos conferidos pela citada Lei de autorização legislativa. 56° - Para além de que está-se a violar clara e inequivocamente os mais elementares princípios e direitos constitucionalmente protegidos, nomeadamente o direito ao trabalho protegido pelo art. 58°, n.º 1; o direito à livre escolha de uma profissão, salvaguardado pelos arts. 47° e 58°, n.° 2, alínea b); o direito à iniciativa económica privada, plasmado no art. 61° e o direito à propriedade privada consagrado no art. 62°. 57° - Assim, os artigos 186.° n.° 3 e 189.° n.° 2 alínea b) do CIRE são orgânica e materialmente inconstitucionais por violação do disposto nos artigos 18°, 26°, 165° e 198° da CRP e bem assim dos princípios da proporcionalidade e da não retroactividade. Termina pedindo que seja revogada a decisão recorrida e seja o recorrente absolvido. Contra-alegou o Digno Magistrado do Ministério Público pedindo a manutenção do julgado. Colhidos os vistos cumpre decidir. A sentença recorrida considerou assentes os seguintes factos: 1. A insolvente não apresentou nem depositou na respectiva Conservatória do Registo Comercial as contas anuais relativas aos anos de 2000 e seguintes. 2. Abel S..., melhor identificado nos autos, veio requerer a declaração de insolvência de “Q... - Indústria de T..., Lda.”, com sede na Rua O..., ...97, U..., em Guimarães, alegando, em síntese, ser credor da Requerida, tendo esta cessado pagamentos aos trabalhadores, à Segurança Social e ao Estado. 3. A “Q... - Indústria de T..., Lda.” veio a ser declarada no estado de insolvência por sentença de 10 de Outubro de 2006, já transitada em julgado. 4. Não foram elaboradas as contas anuais relativas ao ano de 2005. 5. A empresa insolvente encerrou no dia 6 de Junho de 2006. 6. Da escrituração da empresa fazia parte apenas um tear de marca Mayer jogo 1830. 7. Na data referida em 5. existiam na empresa as seguintes máquinas e equipamentos: 4 máquinas (teares) circulares de fabrico de malhas; 1 compressor; 1 Porta - paletes; 1 cilindro; 1 Balança e material diverso de escritório. 8. No último sábado de Setembro de 2006, o sócio gerente da insolvente retirou da empresa três daqueles teares e retirou ainda diversos acessórios do tear que ficou na empresa, o que, além de lhe diminuir o valor, diminuiu também a sua funcionalidade. 9. A Requerida jamais praticou qualquer acto de gestão da insolvente, nem era conhecedora dos actos de gestão, dívidas da mesma ou do seu património. 10. A Requerida jamais agiu em representação da insolvente, em nome desta nada comprou, nada vendeu, contratou, dirigiu ou por qualquer forma a obrigou em qualquer acto, nunca assinou qualquer documento relativo a acto de gerência da insolvente. 11. A Requerida sempre confiou no seu marido e na sua gestão e, por isso, em nenhum momento compareceu nas instalações da insolvente para tratar de qualquer assunto que fosse, assuntos que eram sempre tratados pelo oponente marido que nem sequer dava conhecimento à sua mulher. 12. Em Outubro de 2002, a insolvente sofreu um incêndio. 13. O tear referido em 6. tinha incorporado umas peças ou aparelhos próprios para o uso de malha “lycra”. 14. Por existir uma relação de amizade e confiança, Alcino P... acedeu ao pedido do Requerido para que lhe facultasse gratuitamente e por mero favor um porta-paletes, com a obrigação de o restituir logo que para tal fosse solicitado e de custear as despesas com a sua manutenção. 15. O material de escritório referido em 7. consistia numa máquina de escrever, uma secretária e um armário. 16. Os bens referidos em 15 foram dados ao Requerido pelo seu irmão, sendo que o Requerido os utiliza há mais de um, cinco, dez e quinze anos, de modo permanente e ininterrupto, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, como se seus fossem. 17. O Requerido mantém na sua mão o porta-paletes. 18. Está matriculada na C. Registo Comercial de Guimarães sob o n.º 502028149 (correspondente à antiga 3015/880816) a “Q... – Indústria de T..., Lda.”, com sede na Rua O..., ...97, U..., em Guimarães, sendo seus sócios e gerentes José C... e José F... (cfr. fls.1 a 5 dos autos principais cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido). Passemos agora à análise das censuras feitas à sentença recorrida nas conclusões do recurso, considerando que é por aquelas que se afere da delimitação objectiva deste (artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, do C.P.C.). Decidida que está já a questão de saber se o recurso interposto deve ser qualificado como de apelação ou agravo e que, considerando que o recurso incide sobre decisão final (art.º 691.º, n.º 1, do C.P.Civil), foi resolvida nos termos em que foi recebido na 1.ª instância (cfr. fls. 231), as questões postas no recurso são as de saber: - Se estão verificados os requisitos estatuídos na al. a) do n.° 2 do artigo 186° do CIRE para que se possa qualificar como culposa a insolvência declarada; - Se a sentença recorrida está ferida de nulidade, por violação do disposto no n.° 1 e na al. a) do n.° 2 do artigo 186° do CIRE e artigo 659°, n.° 2 do C.P.Civil; - Se o disposto nos artigos 186° n.° 3 e 189° n.° 2 alínea b) do CIRE são orgânica e materialmente inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 18°, 26°, 165° e 198° da CRP e bem assim dos princípios da proporcionalidade e da não retroactividade. I. Nos termos do disposto no n.º 1 do art.º art. 186.º do CIRE a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; e acrescenta logo a seguir a alínea a) do seu n.º 2 deste mesmo normativo que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor. Outro regime jurídico é o que o legislador atribui às situações circunstanciais prescritas no n.º 3 do art.º 186.º do CIRE, Artigo 186.º (Insolvência culposa) 3 - Presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido: a) O dever de requerer a declaração de insolvência; b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial. relativamente às quais estabelece uma presunção (iuris tantum) de culpa grave e, portanto, ilidível Teles de Menezes Leitão, CIRE Anotado, 2ª ed., 175 e Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, 2ª ed., 68.. Quer isto dizer que, enquanto toda e qualquer particularidade factual incluída no n.º 2 do art.º 186.º do CIRE se tem de considerar, inflexivelmente (iure et de iure - presunção inilidível), como insolvência culposa - considera-se sempre culposa a insolvência, diz a lei - da verificação daqueles requisitos, ou seja, a ocorrência das situações aí previstas determina, inexoravelmente, a atribuição de carácter culposo à insolvência Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Vol. II, 14; , o mesmo se não passa quando estivermos perante qualquer dos casos que integram o contemplado no n.º 3 do art.º 186.º do CIRE. Nesta última proposição legal, porque se estabelece tão só uma presunção de culpa - genericamente definida no n.º 1 de tal preceito (que impõe, para que a insolvência seja qualificada como culposa, que se verifique o nexo de causalidade entre a acção do devedor dirigida a esse resultado) - a exigir uma actuação dolosa ou com culpa grave, o que pragmaticamente nos oferece esta prescrição legal (n.º 3 do art.º 186.º do CIRE) é que os casos que aí se contextuam presumem a culpa do insolvente tal qual está descrita no seu n.º 1 e, por isso, só podendo ser entendida no âmbito da redacção posta naquele preceito legal (n.º 1 do art.º 186.º), o juízo sobre a culpabilidade a atribuir ao insolvente tem de assentar ainda em que a actuação com culpa grave presumida criou ou agravou a situação de insolvência. Ficando comprovado que da escrituração da empresa fazia parte apenas um tear de marca Mayer jogo 1830, mas que, aquando do seu encerramento estavam na empresa 4 máquinas (teares) circulares de fabrico de malhas, 1 compressor; 1 Porta/paletes; 1 cilindro; 1 Balança e material diverso de escritório e que, muito embora o diverso material de escritório é propriedade do requerido e que o porta/paletes estava a ser utilizado na empresa a título de empréstimo, foram os outros bens retirados das instalações pelo requerido e apenas dois dias depois da citação da insolvente (cfr. fls. 26 dos autos principais) na pessoa do requerido, considerou a sentença recorrida que a factualidade apurada preenche o circunstancialismo da alínea a) do referido artigo 186º/2 do CIRE e, em consequência, qualificou como culposa a insolvência de “Q... - Indústria de T..., Lda.”. Acompanhamos a sentença recorrida neste juízo que faz sobre os acontecimentos que antecederam a declaração de insolvência proferida. Na verdade, comportando tais factos uma presunção iuris et de iure da culpabilidade que sempre tem de ser imputada ao recorrente, não pode merecer qualquer dúvida a qualidade de insolvência culposa que, merecidamente, lhe é atribuída. Argumenta o recorrente no sentido de que, presumindo-se a culpa no n.º 2 do art.º 186.º do CIRE, esta prescrição não se estende aos factos ilícitos praticados pelo agente; e este requisito legal não se encontra provado, já que os bens poderiam "existir" na empresa por diversos títulos ou motivos sem, contudo, a ela pertencerem ou sobre os mesmos não ser a empresa titular de qualquer direito susceptível de avaliação pecuniária capaz de satisfazer, no todo ou em parte, o passivo; e da matéria de facto provada não consta qualquer facto capaz de demonstrar que os bens constituíam património da devedora, fossem da sua propriedade ou do seu imobilizado, conclui o recorrente. Não lhe assiste, porém razão. Salientemos que pode também o Juiz socorrer-se de presunções judiciais - ilações que o Julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido (art.º 349.º do C.Civil), que não são propriamente meios de prova, mas meios lógicos ou mentais ou afirmações formadas em regras da experiência Ac. do STJ de 12.11.1974; BMJ; 241.º; pág. 290., pressupõem a existência de um facto conhecido (base das presunções) cuja prova incumbe à parte que a presunção favorece e pode ser feita pelos meios probatórios gerais; provado esse facto intervém a Lei (no caso de presunções legais) ou o Julgador (no caso de presunções judiciais) a concluir dele a existência de outro facto (presumido), servindo-se o julgador, para esse fim, de regras deduzidas da experiência da vida, das quais resulta que um facto é consequência típica de outro. RLJ; 108; 352. Ora, estando provado que na data do seu encerramento (6 de Junho de 2006) existiam na empresa 4 máquinas (teares) circulares de fabrico de malhas, 1 compressor, 1 Porta - paletes, 1 cilindro, 1 Balança e material diverso de escritório, deste evento se retira a ilação, que resulta das regras da experiência comum a grande mestra da vida, no sentido de que estes bens, por se encontrarem nas instalações em que a empresa exercia a sua actividade mercantil, não podem deixar de lhe pertencer . Caberia, assim, ao recorrente demonstrar que, apesar desta aparente realidade de ser a insolvente a detentora de tais bens, tal objectividade não era aquela que efectivamente se verificava e aqueles identificados bens pertenciam, isso sim, a outrem e que concretamente naturalmente teria individualizar. Não tendo sido dado este necessário passo com vista a demonstrar esta denunciada e eventual particularidade, fica destituída de valor a argumentação que neste contexto aduz o recorrente em seu proveito. II. As causas de nulidade da sentença estão taxativamente enumeradas no artigo 668.º, do CPC. É nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento - n.º 1, al. d), deste preceito legal. 1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas. 1. A todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação. A dificuldade que sempre teremos para individualizar o critério diferenciador dos vários tipos de regalias constitucionalmente assumidas, em confronto com os direitos que o legislador ordinário também descreve, obriga a que nos esforcemos no sentido de encontrarmos os traços mais relevantes que esta categoria de privilégios encerra e conceitua. |