Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
763/04-1
Relator: ANTÓNIO GONÇALVES
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/28/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1. A abertura das propostas em carta fechada é uma diligência processual destinada a concretizar a venda judicial dos bens penhorados na execução, consubstanciando uma aquisição derivada em que a propriedade da coisa passa directamente do executado para o comprador - a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida, transferência que opera por mero efeito daquele acto.
2. O acto da abertura de propostas em carta fechada, tendo apenas como objectivo disciplinar o modo de tornar efectiva a alienação dos bens penhorados destinados a garantir o crédito exequendo, não constitui uma actividade que pressuponha a observância das exigidas as formalidades destinadas à prossecução desta finalidade.
3. Apesar de estar presente na diligência de abertura das propostas em carta fechada, não se poderá imputar à executada/requerente o conhecimento da irregularidade cometida na publicitação da venda.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:




Da decisão proferida no processo de execução sumária n.º 659 / 1996 - a correr seus termos no 1.º Juízo Cível do T. J. da comarca de Guimarães e que se encontram a prosseguir a impulso das credoras reclamantes "A" e "B" e executados "C", "D" e "E" - que indeferiu a nulidade da venda efectuada no processo de execução e arguida por esta última executada, recorreu a requerente/executada "E" que alegou e concluiu do modo seguinte:.
1. Foi determinada a venda das fracções identificadas nos autos mediante propostas em carta fechada.
2. Os correspondentes anúncios foram publicados no jornal "O Correio da Manhã".
3. As fracções supra referenciadas estão localizadas na área desta cidade, sendo certo que o referido jornal, de âmbito nacional, é de reduzida venda nesta localidade, não sendo certamente um dos jornais mais lidos.
4. A publicação dos anúncios para a venda judicial tem de ser efectuada, segundo o artigo 890° n.º 3, do Código de Processo Civil, num dos jornais mais lidos, publicados na localidade da situação dos bens e só se aí não houver periódicos é que se recorre a um jornal que nela seja mais lido - Ac. RP, 11101/2001, Proc. 0031561, www.dgsi.pt/jtrp.
5. É também nulidade (artigo 890° n.º 3, do Código de Processo Civil) a publicação dos anúncios em jornal de outra localidade, ainda que muito divulgado na da situação do bem, se na localidade onde se situa a coisa a vender existe jornal - Ac. RP, 26/03/1992, Proc. 9210057, www.dgsi.pt/jtrp.
6. A Recorrente veio arguir a nulidade daquele acto nos termos do disposto nos artigos 201° n.° 1, 890° n.° 3 e 909° n.º 1 alínea c), do Código de Processo Civil,
7. Sendo certo que o fez em tempo, não obstante encontrar-se presente, acompanhada do seu mandatário, na audiência de abertura de propostas.
8. É que uma vez que tal nulidade não foi praticada na audiência de abertura de propostas, situação que a ocorrer obrigaria a que fosse imediatamente arguida tal nulidade, dispunha a ora Recorrente de dez dias para o fazer, tudo conforme se alcança do disposto nos artigos 205°, n.° 1 e 153° do Código de Processo Civil.
9. Pelo que o despacho recorrido viola o disposto nos artigos 201°, 205°, 890° e 909° do Código de Processo Civil.
Termina pedindo que seja revogado o despacho recorrido
Contra-alegou a recorrida "D" pedindo a manutenção do julgado e a Ex.ma Juíza manteve a decisão recorrida.


Colhidos os vistos cumpre decidir.

Com interesse para a decisão em recurso foram considerados os factos seguintes:
a) - Por despacho de fls. 344, foi determinado o prosseguimento da presente execução, ao abrigo do disposto no art.º 920.º, n.º 2 do Cód. de Proc. Civil, e tendo por objecto os imóveis penhorados sob as verbas nºs 1 e 2 do auto de fls. 69.
b) - No mencionado despacho, foi designado o dia 29.01.03, pelas 10h00m, para abertura de propostas em carta fechada para venda dos referidos imóveis.
c) - Foram afixados os editais e publicados anúncios nas edições do “Correio da Manhã” de 13.1202 e 14.12.02 e de 23.12.02 e 24.12.02.
d) - Na diligência de abertura de propostas em carta fechada, a executada "E" declarou pretender, na qualidade de arrendatária da verba n.º 1 do auto de fls. 69, exercer direito de preferência, pelo valor da proposta aceite relativamente à mencionada verba.
e) - O requerimento mencionado em b) foi indeferido, tendo sido exercido o direito de remição por José ... relativamente à indicada verba.
f) - A executada "E" veio em 06.02.2003 (cfr. fls. 407-409) arguir a nulidade da venda assim efectuada, com fundamento na preterição de formalidade essencial na publicitação da mesma.
g) - Esta pretensão foi indeferida com este duplo fundamento:
1. A executada "E", mais do que estar simplesmente presente na diligência da abertura de propostas em carta fechada, nela interveio formulando pedido no sentido de que lhe fosse concedida a possibilidade de exercer o direito de preferência relativamente à verba nº 1 do auto de penhora de fls. 69, situação que trouxe implícita uma manifestação de vontade de prevalecimento do acto em curso, nas exactas condições em que o mesmo decorreu, deste modo aceitando os actos anteriores dos quais a venda dependia absolutamente e renunciando, tacitamente, à arguição da eventual nulidade consistente na não publicação dos anúncios em Jornal editado em Guimarães;
2. Ainda que assim não se entenda, a actuação da executada sempre seria contrária aos princípios da boa fé a que se encontra sujeita, por força do disposto no art.º 266º-A do Cód. de Proc. Civil, na medida em que se quis prevalecer de um acto cuja validade veio, posteriormente, questionar.
h) - É desta decisão de que se recorre.

Passemos agora à análise das censuras feitas à decisão recorrida nas conclusões do recurso, considerando que é por aquelas que se afere da delimitação objectiva deste (artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, do C.P.C.).

A questão posta no recurso é a de saber se foi atempadamente deduzida a arguição da nulidade processual consistente na preterição das formalidades legalmente impostas no que concerne à venda das fracções penhoradas mediante propostas em carta fechada.
I. A nossa lei distingue entre nulidades principais e nulidades secundárias.
Nas primeiras, as referidas nos artigos 193.º, 194.º, 199.º e 200.º, do Cód. Proc. Civil, ou seja, a ineptidão da petição inicial, a falta de citação, o erro na forma do processo e a falta de intervenção do Ministério Público como parte acessória, respectivamente, teve o legislador o cuidado de lhes fixar, caso por caso, o seu regime e efeitos.
Nas segundas, as ditas genericamente no art.º 201.º, do C.P.Civil, englobam "a prática de um acto que a lei não admite, bem como a omissão de um acto ou uma formalidade que a lei prescreve" e que "só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa".
O Prof. Anselmo de Castro Lições de Processo Civil - Actos e Nulidades Processuais - pág. 170aponta três princípios fundamentais em matéria de nulidades:
1. Princípio da nulidade meramente relativa - a nulidade só pode ser invocada pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do acto;
2. Princípio da redução da nulidade à mera irregularidade do acto, sem consequências, sempre que o acto haja atingido o seu fim;
3. Princípio do aproveitamento, no possível, do próprio acto cuja nulidade tenha de ser declarada.

Verificando o Julgador que foi omitido um acto exigido na lei, deve ordenar-se que o acto em falta seja mandado executar. Tal só não acontecerá se já expirou o prazo dentro do qual devia ser praticado e ser responsável pela infracção cometida a parte a quem aproveitaria a prática do acto (art.º 208.º do C.P.Civil).
E qual o prazo a respeitar na arguição da nulidade?
- Se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o acto não terminar; se a parte não estiver presente, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência - art.º 205.º, n.º 1, do C.P.Civil. É de dez dias o prazo para as partes arguírem nulidades (art.º 153.º do C.P.Civil).
O Prof. Anselmo de Castro define, de uma forma mais simples, acto processual como "factos voluntários que se integram numa sequência processual" e, de uma maneira mais rigorosa, caracteriza-os como "todos os actos cujos efeitos necessários e primários se produzem no domínio do processo ainda que dele derivem efeitos secundários de direito substantivo". in obra citada; pág. 9 e 13.
O "acto praticado no processo" a que alude o artigo 205.º, n.º 1, do C.P.Civil, não pode ter o mesmo rigor terminológico da noção de acto processual que se acabou de referir. O seu conceito terá de ser mais amplo, abrangendo toda e qualquer intervenção da parte no processo que revista uma tomada de posição sobre certo e determinado aspecto da causa e cujo posicionamento assim obtido fique a constar do processo como seu componente e parte integrante e a ele indissoluvelmente ligado.

A abertura das propostas em carta fechada é uma diligência processual destinada a concretizar a venda judicial dos bens penhorados na execução, consubstanciando uma aquisição derivada em que a propriedade da coisa passa directamente do executado para o comprador - a venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida, transferência que opera por mero efeito daquele acto.
E, porque é assim, o envolvimento que esta diligência assinala é sempre perspectivado pela natureza de um acto gerador de venda/compra do bem penhorado e circunscrito aos seus legítimos destinatários, isto é, ao exequente (remidor nos termos do art.º 875.º do C.P.Civil), ao executado, aos credores reclamantes de créditos com garantia real sobre os bens a vender (n.º 1 do art.º 893.º do C.P.Civil), aos preferentes legais (artigos 47.º e116.º do RAU e artigos 1409.º, 1535.º e 2130 do C. Civil) e convencionais com eficácia real (421.º do C. Civil).
Ora, o acto da abertura de propostas em carta fechada, tendo apenas como objectivo disciplinar o modo de tornar efectiva a alienação dos bens penhorados destinados a garantir o crédito exequendo, não constitui uma actividade que pressuponha a observância das exigidas as formalidades destinadas à prossecução desta finalidade.
Com isto queremos dizer que, apesar de estar presente na diligência de abertura das propostas em carta fechada, não se poderá imputar à executada/requerente "E" o conhecimento da irregularidade cometida na publicitação da venda pelo facto de ela ter reclamado a possibilidade de exercer o direito de preferência relativamente à verba nº 1 do auto de penhora de fls. 69 e que esta sua intervenção terá equivalido à renúncia de arguição de qualquer irregularidade ou nulidade prévia.
Na verdade, este gesto assim tomado pela executada enquadra-se num contexto externo e alheio a toda a tramitação que antecedeu aquela diligência e, por isso, não pode presumir-se que daquele posicionamento ela sabia ou devia saber da irregularidade cometida, como nos ensinam as regras da experiência comum.
Não se comprovando que a recorrente tivesse tomado anteriormente parte nalgum acto do processo donde se possa inferir que dele poderia tomar conhecimento da falta de formalismo ora detectado e não se estando perante alguma atitude contemporizadora com este desenlace, também não poderemos ajuizar no sentido de que a recorrente deduziu extemporaneamente a arguida nulidade.

II. Dispõe o art.º 266.º -A que as partes devem agir de boa fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior.
Tem este normativo legal a acuidade de estender ao direito adjectivo as regras da lealdade, correcção e honestidade consagradas no direito substantivo.
Exige-se, porém, que essa deslealdade, detectada no comportamento desta omissão de fidelidade, tenha a suportá-la culpa sua ou grosseira incúria, isto é, que se lhe possa imputar um juízo de reprobabilidade pessoal da sua conduta, podendo exigir-se-lhe um outro comportamento.
Assim, a imposição do dever de agir no processo de boa fé implica, desde logo, que possam ser sancionadas por esta via condutas processuais imputáveis à parte ou ao seu mandatário a título de negligência grave - que não apenas dolo. Lopes do Rego; Comentários ao Código de Processo Civil; pág. 216.

Ajuizando o comportamento da recorrente não poderemos concluir que ela tenha agido em desrespeito pelos princípios da boa fé enunciados e exigidos pelo nosso ordenamento jurídico; e, não estando demonstrado que, apesar de saber da irregularidade cometida na publicidade dos anúncios, a recorrente, mesmo assim, reclamou o seu direito de preferência, deste circunstancialismo não pode tirar-se a ilação de que, como refere a decisão recorrida, ela “se quis prevalecer de um acto cuja validade veio depois a questionar”.

Pelo exposto dá-se provimento ao agravo e, julgando atempadamente deduzida a arguição da nulidade invocada, determina-se que a Ex.ma Juíza aprecie e decida a pretensão assim formulada pela agravante.

Custas pela recorrida "D".

Guimarães, 28 de Abril de 2004.