Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1249/07-1
Relator: GOUVEIA BARROS
Descritores: INVENTÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) Tendo sido deduzida reclamação tendente à exclusão de um saldo bancário relacionado pela cabeça de casal em inventário divisório por alegadamente pertencer a uma irmã do reclamante e apurando-se da prova produzida que o exacto valor relacionado havia sido transferido de conta da mesma irmã, justifica-se a audição desta, mesmo que oficiosamente, em ordem a esclarecer o fundamento da reclamação.
II) Da consideração do disposto no nº3 do artigo 265º e nº1 do artigo 645º do CPC resulta que, verificada a situação neste último configurada, cumpre ao juiz o poder-dever de promover ele próprio a audição de quem pode contribuir relevantemente para a decisão da causa, sendo sindicável nos termos gerais o seu exercício.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

Nos autos de inventário para separação de meações que corre termos pelo 2º juízo do tribunal judicial da comarca de Esposende sob o nº 285-A/2000 foi relacionado pela cabeça de casal ROSA C., como verba número 15, um saldo bancário no valor de 7.712.192$00.
Notificada a relação de bens veio o interessado e ora agravante M. J. deduzir reclamação na qual, além do mais que agora não interessa considerar, alega que tal verba deve ser excluída do elenco dos bens a partilhar, uma vez que aquele saldo pertence ao irmão do reclamante, H. C. M.
Ouvida sobre a reclamação no tocante à verba em litígio, disse a cabeça de casal não corresponder à verdade o alegado pelo reclamante, pugnando assim pelo indeferimento da reclamação no que a tal verba respeita.
Tendo o reclamante indicado como testemunha o alegado dono do dinheiro em questão (cfr. fls 20) veio entretanto requerer a audição de R. Maria C. (requerimento não certificado), pretensão que lhe foi indeferida por despacho de 11/1/06 (cfr. fls 58) por se ter considerado intempestiva face ao disposto nos artos 1344º, nº 2 e 1334º, ambos do CPC.
Inconformado com o decidido, agravou o interessado pugnando pela revogação do despacho, por entender que a inquirição de tal testemunha tem manifesto interesse para a descoberta da verdade, sem todavia formular como lhe cumpre as pertinentes alegações.
Tendo o incidente prosseguido seus termos, veio a reclamação a ser julgada improcedente no que concerne à verba em litígio, por despacho exarado em 5/12/06 e certificado a fls 68 e 71.
Recorre de novo o interessado pretendendo que se revogue a decisão impugnada, alinhando razões várias que mais uma vez não cuidou de sintetizar.
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Não foram apresentadas contra alegações.
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Em despacho tabelar o Sr. juiz a quo manteve as decisões postas em crise pelo agravante.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
Apreciação:
Em jeito de nota prévia, diremos que no recurso nº 579/07 - em cujas alegações, subscritas pelo mesmo ilustre mandatário que assina as oferecidas neste processo, também se omitia a indicação dos fundamentos (conclusões) - entendemos que, dada a simplicidade de apreensão das questões controvertidas, não se justificava o aperfeiçoamento a que se refere o nº 4 do artigo 690º do CPC.
Alberto dos Reis diz ter pugnado, sem êxito, no seio da Comissão Revisora do CPC pelo estabelecimento de uma norma que legitimasse o não conhecimento do recurso pelo tribunal ad quem sempre que não fossem apresentadas conclusões.
Justificava tal solução com o direito comparado (“no estrangeiro é matéria corrente que o tribunal superior só aprecia as conclusões dos recorrentes e, portanto, de nada tem de conhecer quando não se apresentem”) e, por outro lado, dizia que a solução por que pugnava era mesmo um bom serviço que se presta aos próprios advogados pois essa regra de boa disciplina científica levá-los-á a imprimir método, ordem e arrumação nas suas alegações.”(CPC Anotado,V, pag.353).
Como se sabe tal proposta não vingou, pois se impôs ao juiz o dever de promover o suprimento da omissão pelos advogados da observância do ónus de formular conclusões.
Porém, tal como fizemos no acórdão atrás referido, iremos conhecer dos recursos, não obstante a imperfeição assinalada, já que o seu objecto está perfeitamente delimitado e os argumentos dos recorrentes perfeitamente delineados e concretizados nas alegações. Feito este reparo, cumpre assinalar que o artigo 1350º do CPC confere ao juiz a faculdade de se abster de decidir a reclamação contra a relação de bens e remeter os interessados para os meios comuns sempre que a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a sua decisão no inventário, por implicar redução das garantias das partes.
Pode ainda o juiz, com base numa apreciação sumária das provas produzidas, deferir provisoriamente as reclamações, com ressalva do direito às acções competentes (nº 3 do artº 1350º).
E, no caso de o juiz se abster de decidir e remeter os interessados para os meios comuns, “não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou e permanecem relacionados aqueles cuja exclusão se requereu.”
Quer isto significar que a insuficiência das provas tem como consequência permanecer intocado o elenco dos bens apresentado pela cabeça de casal e, no que aqui interessa, deveria o saldo bancário objecto da reclamação continuar a figurar na relação de bens.
No caso em apreciação o recorrente pretendeu a exclusão de um saldo bancário relacionado pela cabeça de casal, alegando que o mesmo pertence a seu irmão, H. C., “cujas poupanças, por razões que não interessam à economia da presente reclamação, estiveram durante cerca de um ano depositadas numa conta do ora reclamante.”
Faz-se notar que, se é exacto o que o reclamante afirma, a circunstância de ser partilhado o referido saldo neste inventário, não preclude o direito do referido irmão reclamar a quantia em questão em acção própria, o que vale por dizer que, ainda que nenhuma reclamação tivesse sido deduzida, a cada um deles iria ser adjudicada metade de coisa nenhuma.
Com a reclamação apresentada ofereceu o recorrente a pertinente prova, arrolando como testemunha apenas o alegado titular do saldo em discussão, H. C. M..
Na audiência que teve lugar em 11 de Maio de 2004 a cabeça de casal requereu a junção de um documento (fls 23) comprovando a transferência, em 22/4/97, da quantia de 9.300.000$00 da conta do casal para a conta do identificado irmão do recorrente.
Na circunstância o mandatário do recorrente solicitou se oficiasse à CGD para informar sobre a origem do saldo transferido o que lhe foi deferido, vindo a apurar-se, após esclarecimentos complementares (fls 31 e 34), que procedia de uma conta no offshore da Madeira, aberta em 11/8/95 pelo casal com 8.400.000$00 provenientes de uma outra conta do casal sedeada no balcão do BNU de Esposende.
Todavia nessa conta de Esposende havia sido depositada em 28/12/94 a quantia de 7.712.192$00 (ou seja, precisamente o saldo relacionado), por transferência, efectuada na mesma data, de uma conta da mesma agência titulada por A. M. R. (casado com R. Maria C. M. R., irmã do recorrente e do referido H.).
Pretendeu então o ora recorrente que sua referida irmã fosse ouvida como testemunha em requerimento não certificado, mas que é referenciado como sendo fls 159 dos principais (no de fls 174 transcrito nas alegações o recorrente reitera o pedido mas identifica como irmã a própria cabeça de casal, seu ex-cônjuge).
Tal pretensão foi indeferida por se ter considerado intempestiva tal indicação, “atento o estatuído no artº 1344º, nº2 e 1334º ambos do CPC.”
Sem dúvida que em harmonia com tais disposições estava precludida a possibilidade de os interessados oferecerem novas provas, pois é entendimento pacífico que as mesmas devem ser requeridas com o próprio requerimento e resposta, dada a remissão feita pelo nº 3 do artº 1349º do CPC (neste sentido Ac. do STJ, in CJ I/98, pag. 54).
Sucede, porém, que a prova carreada para os autos sob requerimento do reclamante conferia consistente verosimilhança à alegação do reclamante, pois o saldo relacionado pela cabeça de casal corresponde à quantia transferida em 28/12/94 da conta de que era titular o cunhado dos interessados para a conta do casal.
São bem conhecidas as dificuldades inerentes à prova da titularidade efectiva dos saldos bancários, ainda mais quando, tal como vem alegado, a titularização em nome do casal visaria, ao que foi alegado, a obtenção de uma taxa de juro a que o irmão do recorrente não tinha direito.
Neste quadro justificava-se plenamente que o tribunal por sua iniciativa e em cumprimento do poder-dever plasmado no nº 3 do artigo 265º do CPC tivesse querido ouvir os titulares da conta (A. R. e esposa R. Maria R.) para indagar sobre a razão de ser da transferência de 28/12/94.
Como assinala Lopes do Rego (Comentários ao CPC, pag. 207) “o nº 3 do artº265º consagra, em termos aparentemente idênticos aos que já resultavam do estatuído no nº 3 do artº 264º, na versão anterior à reforma, o poder-dever do juiz de realizar oficiosamente quaisquer diligências probatórias ou instrutórias que considere indispensáveis ao apuramento da verdade dos factos de que pode legitimamente conhecer, nos termos previstos nos artigos 264º e 664º.
Porém, é diversa a formulação literal do preceito ora em análise, no segmento em que comete ao juiz, não apenas um poder – eventualmente discricionário – mas uma incumbência na investigação dos factos alegados pelas partes.
Significa, a nosso ver, esta alteração que a actividade do juiz, ao abrigo do nº 3 do artº 265º se configurará muito mais como o exercício de um autónomo poder-dever de indagação oficiosa – do que como a actuação de um mero poder discricionário, tendente a realizar uma função meramente supletiva e residual do tribunal em sede de produção de provas (…).
Por outro lado, a qualificação dos poderes instrutórios autónomos do julgador como revestindo a natureza de um poder-dever, tendente à plena realização do fim do processo – a justa composição do litígio – implicará que constitui nulidade a ostensiva e injustificada omissão de diligência essencial e patentemente necessária ao apuramento da verdade dos factos (…).”
Também o nº 1 do artigo 645º do CPC estatui que “quando, no decurso da acção, haja razões para presumir que determinada pessoa, não oferecida como testemunha, tem conhecimento de factos importantes para a boa decisão da causa, deve o juiz ordenar que seja notificada para depor.”
Comentando tal disposição o mesmo autor sustenta “que o poder conferido por este preceito não se configura, em rigor, como um poder discricionário do tribunal – sendo, consequentemente, o seu exercício (ou não exercício) sindicável, nos termos gerais.
É manifesta a importância do depoimento pretendido pelo recorrente, pois a quantia relacionada esteve em conta da testemunha e de seu marido até 28/12/94, passando nessa data directamente para conta dos interessados.
Aliás, o tribunal pode também, ao abrigo do disposto no artigo 552º, nº1, tomar depoimento à cabeça de casal no sentido de esclarecer por que esteve a quantia a dividir depositada em conta dos cunhados até à mencionada data.
Ora o depoimento intencionado pelo recorrente afigura-se plenamente justificado, ainda mais quando o Sr. juiz não conferiu credibilidade ao depoimento da única testemunha arrolada, por ter reputado ter interesse no desfecho do incidente (certamente porque o pouparia a ter de reivindicar em acção própria o que alegadamente lhe pertence) e por considerar inverosímil a explicação dada pela testemunha (com argumentos que, com o devido respeito, não são mais do que ousadas presunções, sem suporte fáctico evidente).
Com efeito, não é óbvio – nem existe nos autos o menor indício - que à data do depósito o H. M. fosse ainda emigrante e, a coberto de tal qualidade pudesse auferir os benefícios dispensados à poupança e, por outro lado, não sendo ele certamente jurista eminente, ter-lhe-á parecido bastante que ficasse consignado que os depósitos a prazo e as aplicações financeiras só pudessem ser movimentados por seu irmão (não pela sua cunhada, a cabeça de casal, co-titular da conta), pois ele próprio estava habilitado para a movimentar (cfr. fls. 15).
Não será normal, isso sim, é que os cônjuges, casados segundo o regime de comunhão geral de bens, abram uma conta para depósito das suas economias e deixem consignado que só um deles pode efectuar a sua movimentação.
Por isso diremos também que, diversamente do que foi entendido, a documentação bancária constante dos autos confere consistente verosimilhança à tese do recorrente, mas sobretudo justifica que o tribunal leve a efeito as diligências tendentes ao esclarecimento da origem do depósito, tornando assim desnecessário o recurso a presunções assentes em regras de experiência, tão contingentes quanto temerárias.
Para mais conclui-se ainda a motivação da resposta sobre a matéria de facto nos termos seguintes:
“(…) Cá está, alega o interessado reclamante Manuel M., o dinheiro era do H. e este depositou-o em conta da irmã R. Maria. Alega-se, mas não se prova, já que sobre a origem deste montante de 7.712.192$00 na conta de A. R. e R. Maria R. não há nos autos a mínima prova.”
É exacta a afirmação, mas esse é exactamente o cerne do recurso: não há nos autos a mínima prova sobre a origem do dinheiro depositado na conta dos cunhados da cabeça de casal porque o tribunal não fez o devido uso dos poderes que a lei lhe possibilita usar oficiosamente e, quando a parte lhe suscitou a diligência pertinente, considerou a pretensão intempestiva.
Assim e em resumo, merece provimento o recurso interposto do despacho que indeferiu a inquirição da testemunha R. Maria M., ficando consequentemente prejudicado o conhecimento do recurso que incidiu sobre a decisão do incidente de reclamação.
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DECISÃO:
Em face do exposto e no provimento do agravo admitido em 24/1/06, revoga-se o despacho por ele visado, devendo os termos do incidente prosseguir com a inquirição da testemunha indicada pelo recorrente.
Sem custas.
Guimarães, 12 de Julho de 2007