Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1421/06-1
Relator: PEREIRA DA ROCHA
Descritores: FALÊNCIA
APREENSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Na vigência do Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência, aprovado pelo DL 132/93 de 23/4, na redacção dos DL 315/98 de 20/10 e 38/2003 de 8/3, o decretamento da falência implica a suspensão da acção executiva pendente contra a falida e a sua apensação ao processo de falência, sem levantamento da penhora de um terço do seu salário nela efectuada, nem restituição das quantias entretanto descontados e depositadas à ordem da acção executiva, penhora essa que se mantém e passa a ficar exclusivamente à ordem do processo de falência, através do liquidatário judicial, sob a fiscalização da comissão de credores e sob a direcção do juiz da falência, por o processo de falência ser uma execução universal destinada a apreender todo o património da falida susceptível de penhora, a liquidá-lo, e a repartir o produto obtido pelos seus credores.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I – Relatório
Nestes autos de recurso de agravo, é recorrente a falida M... e é recorrida a massa falida representada pelo liquidatário judicial P....
Vem interposto do despacho proferido, em 06/04/2006, pelo 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no processo de falência n.º 442/2002, instaurado, em 04/04/2002, pelo Banco... contra a Recorrente e contra o seu cônjuge J..., cuja falência foi declarada por sentença proferida em 04/11/2005 e transitada em julgado em 05/12/2005, que decidiu indeferir requerimento da ora Recorrente no sentido de ser levantada a penhora incidente sobre 1/3 de cada salário futuro dela e de lhe serem devolvidas todas as quantias dele descontadas após a data da sentença de declaração da falência.
O recurso foi admitido como agravo, com subida imediata, em separado, e com efeito devolutivo.
A Recorrente extraiu das suas alegações as seguintes conclusões:
1 - Foi nos autos decretada a falência da requerente, em 2005.11.04.
2 - Esta decisão transitou em julgado já em 2005.12.05.
3 - A requerente trabalha como funcionária.
4 - Os credores foram citados para se oporem à declaração de falência e nenhum o fez.
5 - A agravante pediu que fosse ordenado o fim dos descontos de parte dos seus salários e a devolução dos descontos efectuados após a prolação do despacho que decretou a falência.
6 - O Tribunal indeferiu estes dois pedidos sem qualquer fundamento legal, apenas porque: "(...) entendo que a declaração de falência não faz sustar as diligências necessárias à liquidação do activo, (..,) A decisão que impedisse os descontos no vencimento da falida, constituiria um prémio totalmente injustificado para o falido, em prejuízo dos credores (...)".
7 - Este despacho é nulo porque não fundamentado legalmente, como determina o art° 158° n° 1 do CPC.
8 - O despacho recorrido invoca argumentos quiçá com algum cabimento no plano do direito a legislar, mas sem oportunidade e adequação de lugar e fundamento legal.
9 - Não poderem prosseguir todas as diligências em acções executivas, como determina o art° 154° n° 3 do CPEREF é também, fazer parar as penhoras de, no caso, 1/3 dos salários da recorrente, posterior ao despacho que decretou a falência.
10 - Ora, o salário não é um bem futuro, na medida em que é a contrapartida do trabalho do falido, mas só existirá se este vier a trabalhar.
11 - Por outro lado, se não há mais diligências em acções executivas, não podem ser penhoradas as terças partes dos salário futuros.
12 - Quando muito, os mesmos poderiam ser apreendidos, mas como não existem nem se pode antecipar o seu vencimento, nada acontece.
13 - Toda a estrutura do CPEREF aponta no sentido de ser congelada a situação patrimonial do falido, serem liquidados os bens, serem aprovadas as suas contas, serem rateados os seus bens, cessarem as funções do liquidatário, etc.
14 - Em suma, tudo tem como fim liquidar tudo, e depressa.
15 - Com o entendimento subjacente ao despacho, nunca as contas seriam aprovadas, nunca haveria rateios, ou teria de os haver uma e outra e outra e outra vez (parciais, claro), nunca findariam as funções do liquidatário nem os autos, nunca se extinguiriam os efeitos da falência como determina o art° 238° nº 1 aI. c).
16 - O despacho recorrido violou o disposto no art° 154° n° 3 do CPEREF.
17 - O despacho recorrido, ao fundamentar-se meramente na opinião pessoal do seu autor, viola o princípio da separação de poderes consagrado no art° 111° nº 1 da CRP, por tentar legislar.
18 - Termos em que deve ser concedido provimento ao presente agravo, sendo proferida decisão que revogue o despacho recorrido e ordene o fim das penhoras de uma terça parte dos salários da falida, bem como a devolução à mesma de todas as quantias que lhe foram e venham a ser subtraídas aos seus vencimentos após a prolação do despacho que decretou a falência.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Por despacho de 22/06/2006, foi sustentada e mantida a decisão recorrida.
Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir.
São as conclusões das alegações do recorrente que fixam e delimitam o objecto do recurso e, por conseguinte, as questões a decidir, sem prejuízo da ampliação pelo recorrido do âmbito do recurso nos termos do art.º 684.º-A do CPC e do conhecimento de questões oficiosas(cfr. art.º 684.º, n.º 3, e 690.º e 660.º, n.º 2, este por remissão do art.º 713.º, n.º 2, do CPC), desde que as questões suscitadas pelo recorrente ou pelo recorrido se quedem no âmbito das questões apreciadas pela decisão recorrida ou de que a mesma devesse conhecer por referência ao pedido das partes.
Na verdade os recursos destinam-se à reapreciação das decisões recorridas, no quadro fáctico-jurídico vigente à data em que foram proferidas, tendo em vista a correcção de invocados erros de procedimento ou de julgamento por elas cometidas, pelo que, no recurso, não podem ser suscitadas, nem decididas, novas ou diversas questões das conhecidas pela decisão recorrida ou de que ela devesse conhecer, salvo quanto a matérias de conhecimento oficioso a todo o tempo (cfr. art.ºs 660.º, n.ºs 1 e 2, 668.º, n.º 1, d), 2.ª parte, 676.º, n.º 1, 684.º, n.ºs 1 a 4, 684.º-A, n.ºs 1 a 3, 690.º, n.º 1, 713.º, n.º 2, 715.º, n.ºs 1 e 2, 716.º, n.º 1, 749.º, 752.º, n.º 3, e 753.º, n.º 1, do CPC).
No caso em apreço, o despacho recorrido resolveu a questão suscitada pela Recorrente de, no entender desta, após o decretamento judicial da sua falência, dever, ao abrigo do art.º 154.º, n.º 2, do CPERE, ser sustada a penhora de um terço do seu salário feita em acção executiva e deverem ser-lhe restituídas as quantias até então descontadas em cumprimento daquela penhora, indeferindo-a, o que a Recorrente impugna através deste recurso.
Pelo exposto e atentas as conclusões da Recorrente, as questões a decidir consistem em saber se, após o decretamento da falência da Recorrente, deveria ter sido ordenado o levantamento da penhora de um terço do seu salário efectuada em acção executiva e ordenada a restituição dos montantes até então nele descontados em cumprimento daquela penhora, por não haver norma jurídica em vigor que permita manter a penhora e reter as quantias descontadas e se, em consequência, o despacho é nulo e deve ser revogado.
II - Apreciando
O processo de falência, onde se insere o despacho recorrido, foi instaurado em 04/04/2002, pelo que os seus trâmites regem-se pelo Código dos Processos Especiais de Recuperação de Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo DL 132/93 de 23/4, na redacção dada pelo DL 315/98 de 20/10, republicado integralmente em anexo a este DL, e na redacção dada ao n.º 1 do art.º 186.º pelo DL 38/2003 de 8/3 (em vigor desde 15/09/2003 e aplicável aos processos pendentes a partir de 15/09/2003), não obstante à data (06/04/2006) da prolação do despacho recorrido vigorar, desde 15/09/2004, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo DL 53/2004 de 18/03 e alterado pelo DL 200/2004 de 18/08, por, nos termos do art.º 12.º, n.º 1, do DL 53/2004 de 18/03, o referido CPEREF continuar a aplicar-se aos processos pendentes.
A Recorrente requereu a sustação da penhora de um terço do seu salário efectuada em acção executiva a partir de 04/11/2005, data da prolação da sentença que declarou a sua falência, e a restituição das quantias até então descontadas, invocando, para o efeito, o disposto no art.º 154.º, n.º 3, do CPEREF.
Estatui este normativo que a declaração de falência obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva contra o falido; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra eles.
O alvo deste preceito legal são as acções executivas instauradas ou a instaurar contra o falido, proibindo, respectivamente, o seu prosseguimento ou a sua instauração, nada estatuindo, pois, sobre se a penhora efectuada em acção executiva antes da sentença declarativa da falência do executado se deve manter, ou não, e se as quantias apreendidas devem, ou não, ser restituídas ao executado, pelo que o disposto no art.º 154.º, n.º 3, do CPEREF é inservível para resolver a questão jurídica suscitada pela Recorrente.
Segundo a decisão recorrida, este normativo não tinha a virtualidade de obstar a que a liquidação do activo se iniciasse após o trânsito em julgado da sentença declaratória de falência nos termos do art.º 179.º, n.º 1, nem que, nos termos do art.º 175.º, n.º 1, proferida a sentença declaratória da falência, se procedesse imediatamente à apreensão dos elementos de contabilidade e de todos os bens susceptíveis de penhora, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, inferindo destes normativos o seguinte: «Assim, entendo que a declaração de falência não faz sustar as diligências necessárias à liquidação do activo, incumbindo ao Sr. liquidatário cumprir o encargo de preparar o pagamento das dívidas do falido à custa dos bens que integram o património do falido. A decisão que impedisse os descontos no vencimento da falida, constituiria um prémio totalmente injustificado para o falido, em prejuízo dos credores, contrariando a teleologia própria do regime jurídico falimentar e fazendo tábua rasa do seu objectivo principal, que consiste, como já referi, na protecção do interesse dos credores prejudicados pela insucesso empresarial dos falidos, em obter o pagamento das dívidas à custa do falido. Não devem, pois, ser suspensas as diligências próprias e inerentes à liquidação do activo, necessárias ao ressarcimento dos credores. Pelo exposto, decido indeferir o requerido pela falida Maria da Graça Cardoso Borges, por falta de fundamento legal».
O processo de falência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património do devedor falido e a repartição do produto obtido pelos credores (cfr. art.ºs 175.º, nºs 1 a 3, 188.º, n.ºs 1 e 4, 200.º, n.ºs 1 a 4, 205.º, n.ºs 1 a 3, 209.º a 215.º do CPREF e 52.º do CCJ), cuja concretização implica a convocação para ele de todos os credores do falido a fim de nele reclamarem os seus créditos, a apreensão à ordem dele de todo o património do falido susceptível de penhora e a proibição legal do prosseguimento de acções executivas em curso contra o falido e da sua instauração.
Na sentença que declarar a falência deve o tribunal decretar a apreensão, para imediata entrega ao liquidatário judicial, de todos os bens do falido, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for, com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infracção criminal ou de mera ordenação social, podendo os bens isentos de penhora ser integrados na massa falida se o falido voluntariamente os apresentar e devendo ser requisitados, para apensação aos autos de falência, todos os processos nos quais se tenha efectuado qualquer acto de apreensão ou detenção de bens do falido (cfr. art.ºs 128.º, n.º 1, c), e 175.º, n.ºs 1 a 3, do CPEREF).
Assim, a acção executiva, onde foi efectuada a penhora de 1/3 do vencimento da Recorrente, não prossegue após o decretamento da falência da executada, porque deve ser apensa ao processo de falência e porque, em substituição dela, bem como em substituição de todas as execuções já instauradas ou susceptíveis de instauração, prossegue apenas o processo de falência em curso contra a Recorrente, por ser um processo de execução universal com a finalidade de liquidação da totalidade do património susceptível de penhora da Recorrente falida e a repartição do produto obtido pelos seus credores.
No processo de falência vigora, pois, supletivamente, a regra constante da alínea a) do n.º 1 do art.º 824.º do CPC sobre a penhorabilidade, e por conseguinte sobre a apreensabilidade à ordem do processo de falência, de dois terços do vencimento, salário ou prestações de idêntica natureza, auferidos pelo falido.
A apreensão de bens no processo de falência é feita pelo liquidatário judicial, cujo poder, para o efeito, advém da declaração da falência e da sua nomeação na respectiva sentença, mantendo-se as penhoras ou apreensões anteriormente feitas em qualquer processo, bem como os seus depositários, passando, no entanto, a ficar, exclusivamente, à disposição e à ordem do processo de falência, através do liquidatário judicial, sob a fiscalização da comissão de credores e sob a direcção do juiz da falência (cfr. art.º 128.º, n.º 1, b), 176.º, n.ºs 1 a 4, a), 180.º, a), 184.º, 141.º, 145.º, , n.ºs 2 e 3, 146.º, n.º 1, e 185.º, n.ºs 1 a 3, do CPEREF), donde estar, legalmente, vedado ao juiz da falência deferir a pretensão da Recorrente de levantamento da penhora de 2/3 do seu salário efectuada em acção executiva e de restituição das quantias já descontadas, com o alegado fundamento de haver sido decretada a falência da executada, ora Recorrente, por sentença transitada em julgado.
A decisão recorrida não enferma da invocada nulidade por falta de fundamentação jurídica, visto se fundar na aplicação e na interpretação dos art.ºs 154.º, n.º 3, 29.º, 175.º, n.º 1, e 179.º, n.º 1, do CPEREF.
Inexiste norma específica ou princípio genérico impeditivos da apreensão em processo de falência de qualquer bem penhorável, por a sua apreensão poder prolongar no tempo a pendência do processo.
Flui do exposto a improcedência do recurso, com a consequente manutenção do despacho recorrido.
III – Decisão
Termos em que se decide negar provimento ao recurso e manter o despacho recorrido.
Custas pela massa falida.
Guimarães, 14/09/2006.
Pereira da Rocha
Teresa Albuquerque
António Ribeiro