Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2145/07-1
Relator: GOUVEIA BARROS
Descritores: MENORES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) Na determinação do “superior interesse da criança” deve ser visada a protecção física, moral e social do menor mas não pode postergar-se o direito da família biológica, se subsistir a relação afectiva entre a criança e os seus progenitores.
II) Não pode ser decretada a medida de confiança a instituição com vista a adopção relativamente a crianças com base na pobreza da mãe e na genérica imputação de dificuldades cognitivas mesmo que com rebate sobre o exercício da parentalidade, quando é patente o afecto que a progenitora por eles nutre e do exame de personalidade a que foi sujeita resulta que tais limitações podem ser supridas ou pelo menos minoradas com adequada assistência.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

O Ministério Público junto do Tribunal Judicial de Viana de Castelo requereu a instauração do presente processo de promoção e protecção de jovens em perigo relativo aos menores A. P. L. G., nascida a 20/9/1992, J. L. G., nascida em 26/7/98, S. D. L. G., nascido a 11/6/99, J. R. L. G., nascido a 22/1/03 e C. M. L. G., nascida a 7/10/03.
Por acordo de promoção e protecção estabelecido em 12 de Dezembro de 2003 e dando continuidade a medida provisória no mesmo sentido, foi aplicada aos menores a medida de acolhimento em instituição (Centro de Acolhimento “O B…..”), medida que foi sendo sucessivamente prorrogada na pendência do processo, com excepção da atinente à A., entretanto entregue a família de acolhimento (fls 205).
Prosseguiu o processo os ulteriores termos, tendo-se procedido às pertinentes diligências instrutórias, incluindo avaliação psicológica dos menores e da progenitora, bem como à realização dos necessários relatórios sociais.
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A fls 294 a mãe dos menores veio requerer que a avaliação psicológica destes fosse levado a efeito pelo Centro Hospitalar do Porto e não pela técnica da instituição onde aqueles estão colocados como fora sugerido pela Segurança Social, alegando a sua falta de isenção, pretensão que foi indeferida.
Do assim decidido recorreu a requerente pretendendo a sua revogação.
Em resposta o MºPº defendeu a confirmação da decisão, dizendo todavia dever solicitar-se outro relatório sobre os menores a outra entidade, isenta e imparcial, sugestão que foi acolhida, solicitando-se à Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto a pretendida avaliação psicológica.
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Encerrada a instrução, foi designada conferência onde se frustrou o acordo de promoção e protecção e, produzidas alegações pelo MºPº e pela mãe dos menores (fls 327 e 359), teve lugar debate judicial na sequência do que foi proferida sentença, aplicando à A. P. a medida de acolhimento em instituição até à sua maioridade, entregando-se o Joel à progenitora, mediante a imposição de obrigações determinadas e confiando os outros três menores à instituição de acolhimento “O B…..” com vista a futura adopção.
Inconformada com o decidido, recorreu a mãe dos menores, pugnando pela revogação da decisão, oferecendo alegações que conclui nos termos seguintes:
1.- A Meritíssima Juíza a quo não deveria ter escolhido a medida de institucionalização da menor Andreia nem a medida de confiança judicial dos restantes menores com vista a futura adopção.
2.- A Meritíssima Juíza a quo entendeu que a recorrente não reuniu ou criou durante todo o tempo que durou o acolhimento dos seus filhos (quatro anos) as condições necessárias para a todos receber.
3.- A Meritíssima juíza a quo entendeu que a situação não é só de pobreza e de falta de recurso materiais, mas que a mesma radica antes na incapacidade ou falta de recursos internos que revela para gerir a vida de cinco filhos simultaneamente.
4.- A Meritíssima Juíza a quo deu como provado que a recorrente recebeu apoio quando foi solicitado, o que a recorrente nega ter recebido, sem que exista nos autos, salvo erro, qualquer documento que comprove a entrega de tais quantias à recorrente.
5.- Foi dado assente que a recorrente ama os seus filhos e nutre para com eles um grande carinho e afecto, o que aliás é repetido ao longo de toda a douta sentença, que a recorrente ama os seus filhos
6.- A recorrente aufere o salário mínimo nacional, isto é cerca de EUR: 400,00, e a Segurança Social, com a retirada dos seus filhos, não contribui com qualquer quantia.
7.- Perante esta evidente falta de meios financeiros, é evidente que nunca a recorrente conseguiria alugar uma casa com pelo menos quatro quartos com o seu vencimento, nunca poderia dar de comer de forma equilibrada aos seus filhos, nunca poderia ter uma ama que lhe tratasse dos seus filhos enquanto estivesse a trabalhar para ganhar os seus EUR: 400,00.
8.- A Meritíssima Juíza a quo afirma na douta sentença que não se trata apenas de falta de meios, quando a própria, logo no início do debate, colocou a seguinte pergunta à A. “Mas tu sabes que a tua mãe tem dificuldades, nomeadamente a nível económico, não é assim? Sabes disso?”
9.- Quer as queixas dos menores, quer os próprios relatórios fazem única exclusivamente referência à falta de dinheiro da recorrente, exemplo disso são as declarações do menor S. D. quando perguntado porque é que não quer voltar para junto da mãe este respondeu “ Porque um dia nós só comemos um pão”, e ainda o relatório de fIs…., o qual descreve o fim de semana onde foram apanhar marisco porque não havia comida, foram pela linha de comboio porque não havia dinheiro para os bilhetes de autocarro, foram ao fontanário porque a água tinha sido cortada por falta de pagamento devido à falta de dinheiro e a C. chegou à instituição “B….” cheia de chichi porque a recorrente não tinha dinheiro para comprar fraldas.
10. É falso que a recorrente se tenha recusado a receber o apoio e orientações dos técnicos da Seg. Social, já que nunca os mesmos existiram.
11.- As técnicas da Segurança Social nunca souberam criar um laço de confiança com a recorrente.
12.- A Meritíssima Juíza a quo entende que, para além da falta de recursos externos, a recorrente também não possui recursos internos, fundamentando-se nas afirmações proferidas pela Técnica da Segurança Social, Dra J., a qual, perguntada se a recorrente tinha condições para mudar, respondeu “Não tem condições para mudar, não tem recursos internos para mudar” , explicando “Pronto, recursos internos, isto é, como disse, é a impossibilidade de transmitir regras, cumprir horários de definir prioridades, de gerir a frustração que nós todos temos, no dia a dia, quando as coisas, as tarefas começam a complicar, de gerir rotinas diárias que as crianças implicam e eu centro-me aí principalmente, não é? Como disse com uma criança é difícil. Com cinco, não é? Como será?
13 - E perguntado ainda se ela não tem recursos, nem com apoio, esta respondeu “Eu, para mim nem com apoio” para no entanto depois da Meritíssima Juíza a quo perguntar se calhar não tão rápido como os menores estão a exigir, esta respondeu: “Porque nós temos que ser realistas, não é? O apoio mesmo que haja não é efectivo. Nós podemos ajudar mas…”, qualificando a recorrente de “uma mãe com poucas capacidades parentais, pelas circunstâncias da vida que teve”.
14.- A conclusão totalmente oposta chegaram os peritos da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação do Porto no relatório constante de fls 243 e seguintes e que efectuaram a avaliação da recorrente, os quais mencionaram que pese embora reconhecer todas as dificuldades já enunciadas na douta sentença que efectivamente limitam o exercício da parentalidade, a recorrente “manifestou uma elevada motivação a criar condições para que os seus filhos regressem ao seu cuidado. Saliente-se que este facto é uma condição essencial para a mudança dos comportamentos da recorrente no domínio da parentalidade e que deve ser explorada e potenciada, por exemplo através da inclusão da examinada num programa de educação parental, ou através da assessoria de técnicos especializados, de forma a minimizar as suas limitações ao nível de conhecimentos necessários ao exercício da parentalidade”.
15.- A recorrente nunca foi integrada em nenhum programa de educação parental nem nunca lhe foi proposto.
16.- Foi dado como assente que todos os filhos mantêm uma boa ligação afectiva com a recorrente e que os mesmos sentem amor e carinho por esta.
17.- A própria menor A. refere que a menor J. é muita ligada à recorrente e mantém uma boa imagem e uma vinculação forte e quando perguntado à J. se vai ter saudades da mãe, de viver com a mãe, esta respondeu claramente : “sim.”, ainda perguntado porque é que não gostaria de ser adoptada, esta respondeu “Porque depois vou ter saudades da minha mãe.”
18.- Quanto ao S., a Meritíssima Juiz a quo refere que também existem sentimentos positivos e proximidade afectiva entre a recorrente e aquele, sendo no entanto o seu regresso a casa incompatível com as suas necessidades e o que perspectivou para o seu futuro.
19.- O menor sente carinho pela progenitora, embora considere que esta não tem condições para desempenhar o papel de mãe, referindo “em casa só me dava pão”, “a minha mãe não me dava comida” “Eu ao fim de semana ia com ela (mãe) mas agora não vou porque passei pela linha de comboio”, referindo ainda “Eu gostava de ter pais novos, mas quero continuar a ver a minha mãe”, o que foi repetido por diversas vezes por este.
20. – A própria C. é referenciada como gostando da recorrente, nas palavras da menor A. que tantas vezes é citada nesta douta sentença., afirmando “E assim quando eu chego lá, a minha irmã, principalmente a minha irmã C. vem ao pé de mim e pergunta pela mãe. Eu digo que ela deve de vir aí, que no fim do trabalho deve vir.”
21.- Quanto à A., de 14 anos de idade, esta referiu claramente querer estar com a mãe.
22.- A douta sentença ora recorrida a ser mantida, não só ira afastar a mãe dos seus filhos, mas também contribuirá para que irmãos sejam afastados uns dos outros, já que deixarão de estar juntos.
23.- Ora, face a tudo o supra exposto, entendemos que as medidas decretadas pela Meretíssima Juíza a quo não tomaram em conta todos estes factores e que são em nossa modesta opinião muito importante porque é toda uma família que deixa de existir não é só uma mãe que deixa de ter quatro filhos, são ainda irmãos que deixam de se ter uns aos outros, e isto é uma experiência que nunca será escondida por qualquer um aos menores e irá sem qualquer dúvida marcá-los para sempre.
24.- Por todas estas razões, é que entendemos que a Douta Sentença não satisfaz minimamente os interesses dos menores.
25.- Entendemos, face aos relatórios constantes nos autos, que existem as condições para que a recorrente seja apoiada no exercício da parentalidade, e porque discordamos do douto entendimento da Meritíssima Juíza a quo segundo o qual a recorrente nunca será uma boa mãe para acolher os seus cinco filhos, entendemos que se deveria ter recorrida à medida de apoio à família.
26.- O Tribunal optou, mal, pelas medidas mais radicais da institucionalização e a Adopção – e em flagrante oposição ao que sobre a matéria se encontra constitucionalmente consagrado.
27. Não há qualquer fundamento que permita concluir que a ora recorrente possa vir a pôr em perigo, de forma grave, a segurança, a saúde, a formação moral ou a educação do menor.
28.- Violou, destarte, a douta sentença proferida pela Mma. Juiz “a quo” o disposto no art. 1978º, do Cód. Civil, o n°4, do art. 1978°, do Cód. Civil, os arts. 1º, 4°, alíneas a) e g), 35º, 39°, 41° e 42°, da Lei n° 147/99, de 01/09 com as alterações introduzidas pela Lei 31/03, de 22 de Agosto e os arts. 36°, 67°, 68° e 69º, da Constituição da República Portuguesa.
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Respondeu o MºPº oferecendo também doutas alegações que conclui dizendo que a sentença sob recurso merece melhor apreciação e ponderação.
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Corridos os vistos, cabe-nos agora decidir.
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Factos provados:
Na primeira instância deram-se por provados os seguintes factos:
1) Os menores são filhos de R. M. S. L. e de S. C. G., nascidos respectivamente a 29/9/1975 e 15/10/1966.
2) A Segurança Social acompanha o agregado familiar destes menores desde
Outubro de 2002, tendo-lhe sido atribuído o Rendimento Social de Inserção em
Agosto de 2003, com retroactivos no valor de 1.725,64 euros, tendo passado a
receber mensalmente a este título a quantia de 433,99 euros.
3) Enquanto aguardava o rendimento social de inserção o agregado foi apoiado pela Seg. Social e pelo Centro Social e Paroquial de S. Romão que recebeu os menores no Jardim de Infância e passou a garantir as refeições da mãe e dos menores, mesmo ao jantar, dando todos os dias a comida já preparada para as crianças levarem para casa.
4) Em Junho/03 um dos menores foi hospitalizado com uma pneumonia e nessa altura foi detectada sarna na mãe e no filho, e ainda uma gravidez de 7 meses não vigiada.
5) Nessa altura todos os menores e a mãe foram encaminhados para o Centro de Saúde, pois que todos tinham sarna e não tinham a vacinação em dia.
6) A mãe não cumpriu os tratamentos nem sequer deu seguimento às consultas de maternidade e deixou de levar as crianças ao infantário por causa da sarna.
7) Mesmo após ter recebido o rendimento social de inserção, a mãe continuou a não prestar os cuidados básicos aos menores, designadamente ao nível da alimentação, higiene e educação, não sabendo gerir o dinheiro que recebia daquele rendimento aplicando-o nos menores, e bem assim não sabendo gerir as ajudas em géneros (entre elas, refeições confeccionadas) que lhe eram concedidas por outras instituições.
8) ASSIM até à data da decisão urgente era frequente:
a. - A mãe dos menores deixar estragar as refeições que já lhe eram dadas confeccionadas;
b. – Não cuidar da assiduidade dos filhos na escola e no jardim de infância, em especial da menor A. que à data da instauração do processo, e apesar desta já ter idade para a frequência do 5º ano, encontrava-se a frequentar o 2° ano de escolaridade por falta de apoio em casa e falta de assiduidade;
c. – Os menores andarem sujos, uma vez que a mãe não lhes dava banho e mal alimentados, saindo com eles para a rua em jejum ou apenas lhes dando pão ou batatas fritas durante todo o dia, confeccionando a mãe as refeições e muitas vezes nada tendo em casa para as alimentar;
d. – Os menores faltarem às consultas marcadas porque não dava jeito à mãe levá-las, ou não efectuar os tratamentos prescritos;
e. - A mãe recusar ou não cumprir as orientações das técnicas do serviço social que acompanhavam o agregado.
f. - A mãe não conseguir impor regras aos filhos, deixando-os comportarem-se como bem entendiam, sem com eles se zangar, tratando-os de igual para igual.
9) A menor C. M., institucionalizada com apenas 19 dias de vida, nasceu em
casa, na presença dos irmãos e foi alvo de uma gravidez não vigiada e dum parto
em casa sem as condições mínimas para tal, uma vez que a mãe recusou-se a ir
para a maternidade e o pai apenas chamou a ambulância depois do bebé ter
nascido.
10) Já na maternidade foi diagnosticada sarna em estado activo na mãe.
11) A menor C. M. com duas semanas de vida frequentava o café com a mãe, mal agasalhada.
12) O pai dos menores tem problemas alcoólicos e agredia fisicamente a mãe dos menores em frente a estes, sendo que desde há dois anos a esta parte não visita os seus filhos, desconhecendo-se o seu actual paradeiro.
13) Desde que estão institucionalizados, a mãe dos menores visita-os com alguma regularidade, quase diariamente, em visitas de cerca de 10 minutos, devido ao horário do seu trabalho e o horário de visitas da instituição.
14) Após o acolhimento dos menores na instituição, a mãe manteve uma relação com um novo companheiro de nome “M…..” com quem passou a coabitar.
15) A mãe dos menores tem dificuldades relativamente às suas capacidades de abstracção (capacidade de analisar informação de acordo com temas, conceptualizar significados, generalizar de acordo com categorias, formar hipóteses e raciocinar, utilizando pensamento dedutivo e indutivo, planear tarefas e antecipar resultados),
16) Estas limitações ao nível da capacidade de abstracção prejudicam a avaliação, interpretação e actuação da examinada perante um determinado problema.
17) A mãe dos menores revela dificuldades na compreensão de informação e estímulos complexos.
18) Tais dificuldades cognitivas da mãe dos menores limitam-lhe o exercício da parentalidade, nomeadamente na compreensão de algumas das suas exigências, quando nomeadamente assume que não sabia que era preciso justificar as faltas à escola da filha mais velha, revelando uma incapacidade de agir em conformidade com as necessidades dos menores ainda que com consciência das mesmas.
19) A mãe dos menores, após a aplicação da medida de acolhimento, tem vindo a recusar o apoio e orientações dos técnicos da Seg. Social.
20) Antes do acolhimento, era a menor A. quem prestava e realizava as necessidades básicas aos seus três irmãos, em substituição da sua mãe, dando-lhes de comer, vestindo-os, mudando-lhes a fralda tomar conta deles sempre que a mãe se ausentava, o que sucedia com frequência, chegando a faltar à escola, tendo inclusivamente por este facto reprovado anos lectivos por faltas.
21) Os menores integraram-se sem qualquer dificuldade na instituição de acolhimento, dando mostras de um ajustamento globalmente positivo e adaptativo.
22) Todos os menores, como irmãos, mantêm um relacionamento afectivo próximo entre si, e bem assim, á excepção da C., mantém uma boa ligação afectiva com a progenitora, em especial o Joel que dela tem uma boa imagem e uma vinculação forte.
23) A mãe dos menores verbalizou-lhes em várias visitas que “se forem para uns pais novos, nunca mais vos venho ver”, provocando nos mesmos confusão, tristeza e ansiedade.
24) A menor A. não reconhece na mãe a capacidade para providenciar as condições mínimas necessárias a um desenvolvimento salutar e integral dos seus filhos, designadamente prestação de cuidados básicos de saúde, alimentação, higiene pessoal e habitacional, segurança e supervisão, estimulação desenvolvimental, considerando ainda que não tem capacidades e práticas educativas para providenciar um sistema de regras e implementar um sistema de reforços dos menores.
25) A menor A. referiu temer que, voltando para casa da mãe, seja novamente privada à sua educação, uma vez que no passado teve de faltar várias vezes a escola para cuidar dos irmãos, temendo que caso a J. volte a viver com a mãe, possa suceder-lhe o mesmo, ma vez que a mãe sozinha não consegue cuidar e exercer as suas responsabilidades parentais.
26) A menor A. considera ainda que decorrido todo este período em que estão em acolhimento, a sua mãe não se conseguiu organizar e estruturar de modo a reunir as condições mínimas necessárias e desejadas para todos possam regressar a casa, entendendo que independentemente do amor que sentem pela mãe todos beneficiariam com a adopção.
27) A menor J. refere como principal preocupação decorrente de uma eventual adopção o facto de não tornar a ver os seus irmãos.
28) Relativamente a sua mãe, esta menor adopta uma postura ambivalente oscilando entre uma eventual adopção e um possível regresso a casa, oscilando entre não estar a ser fiel à mãe (ao desejar ser adoptada), temendo que a mãe fique triste ou ofendida consigo, e por outro lado, não estar a ser fiel ao que deseja para seu futuro (ao desejar regressar para a mãe).
29) Também a menor J. tem consciência de que a mãe não reúne as condições para lhe providenciar um crescimento e desenvolvimento, recordando que os bens mais básicos já lhe faltaram várias vezes e referindo ter medo que a mãe não possa dar “mais comida e mais fruta”.
30) Nas visitas que faz ao menores, a J. refere que a mãe lhe traz presentes, conversa do novo namorado ou diz-lhe para dizer que não quer ser adoptada, que às vezes vai para o colo da mãe, mas que só muito raramente aquela lhe pergunta pelo seu dia-a-dia, pela escola, pelos seus interesses e preferências.
31) Também a menor A. entende que nas suas visitas a mãe fala maioritariamente do seu novo namorado, mas que não lhe faz perguntas sobre ela.
32) A menor C. não apresenta ou não possui uma vinculação significativa com a mãe, evidenciando uma representação daquela unicamente associada com a dádiva de um presente aquando das visitas.
33) O menor J. apresenta uma dependência emocional forte para com a mãe, sendo que nesta altura um corte neste relacionamento poderia conduzir a um desequilíbrio emocional do menor.
34) O menor S. D. não apresenta uma vinculação ou dependência afectiva muito próxima com a mãe, referindo sentir carinho por ela, mas considerando que a mãe não tem condições para cuidar dele, exemplificando com o facto de “só lhe dar pão para comer”.
35) Este menor demonstrou várias vezes, e ao longo do seu acolhimento na instituição, a vontade séria de ser adoptado.
36) Recentemente, a relação entre a menor A. e a pessoa por quem foi acolhida, D. F. M., fragilizou-se, em resultado desta última ter tido conhecimento de que há cerca de um mês a menor A. manteve relações sexuais com um colega da escola.
37) A mãe dos menores exerce actualmente a sua profissão de jardineira na Junta da Freguesia da M…., com um contrato de dois anos, auferindo o equivalente ao salário mínimo nacional, mostrando-se mais assídua e com um desempenho regular.
38) A mãe dos menores recusou-se perante a Sra. Técnica da Segurança Social a dar informações sobre a sua actual situação económica, profissional e habitacional.
39) Actualmente, a mãe dos menores vive maritalmente com J. da C., há cerca de 4 meses, numa casa já arrendada anteriormente por este último, de tipologia T2. Este companheiro tem 64 anos de idade, é viúvo, está desempregado e desde o passado mês de Abril que não recebe o subsídio de desemprego, tendo apenas de rendimentos uma pensão de sobrevivência no valor de 138,10 euros.
40) A pessoa – F. M. – que tem vindo a acolher a menor A. padece de doença do foro oncológico.
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Fundamentação:
Preliminarmente cumpre assinalar que, ainda que se não repute modelar a inventariação da matéria de facto assente, optou-se por se reproduzir no essencial como consta da sentença, expurgando apenas a menção aos actos processuais (v.g. sob 1.2 e 1.3) por manifesta redundância.
Refere-se ainda que, embora se trate de um processo de jurisdição voluntária, o tribunal só deverá valorar e relevar nele os que por qualquer forma tenham interesse para a decisão intencionada, tendo sempre presente que nos termos do artigo 117º da Lei 147/99, de 1 de Setembro (que adiante identificaremos por LPCJP) para a sua convicção e para a fundamentação da decisão podem ser consideradas as provas que puderem ter sido contraditadas durante o debate judicial.
Os presentes autos iniciam-se em 24 de Outubro de 2003 com a informação do Ministério Público que, reportando comunicação das técnicas de Serviço Social do ISSS, concluía pela necessidade de aplicação de uma medida de colocação, por considerar esgotadas as possibilidades de manter os menores no seio familiar dada “a situação de total irresponsabilidade parental no que toca tanto ao nascimento dos filhos como à sua educação”.
Por decisão de 27/10/03 foi aplicada a medida de acolhimento em instituição que foi sufragada pelos progenitores em acordo de promoção e protecção celebrado em 12/12/03 (fls 41), medida que foi sendo prorrogada em virtude de se considerar subsistirem os motivos que a haviam determinado (a A., por ter perfeito 12 anos, viu alterada, por decisão de 26/6/06, a medida de colocação para acolhimento familiar).
Como se sabe as medidas de promoção e protecção estão hierarquizadas em função de princípios orientadores plasmados no artigo 4º da lei mencionada, retirados da Convenção Sobre os Direitos da Criança, onde se fundem o “superior interesse da criança”, a responsabilidade parental e o da prevalência da família.
É irrecusável que o “superior interesse da criança” foi elevado a critério fundamental e prevalente na escolha da medida, tendente a obviar a que seja causado dano físico, moral ou social ao menor, mas sempre mitigado pela consideração dos outros interesses legítimos presentes no caso concreto.
Na informação inicial depara-se um quadro sócio familiar profundamente degradado do qual perpassa uma absoluta irresponsabilidade do progenitor dos menores, mas que não é tão vincada no que à mãe respeita, ela própria vítima de maus-tratos infligidos pelo companheiro.
Entendeu-se na circunstância dever optar-se desde logo pela medida de acolhimento em instituição, sugerida pela técnica de Serviço Social que vinha acompanhando a família desde há alguns meses atrás.
Compulsados os ulteriores relatórios sociais, colhe-se deles significativo esforço por parte da progenitora para melhorar as suas condições de vida e poder ter consigo os menores, propósito que sempre claudicou em face do patente desequilíbrio entre a exiguidade dos rendimentos e a imensidão das necessidades de uma família tão numerosa.
A fls 71, por exemplo, é dada notícia de que o casal arrendara uma casa com três assoalhadas, mas naturalmente, logo se dizia que “as condições habitacionais não podem ser consideradas como as necessárias a uma família constituída por 7 membros”, acrescentando-se que “se sem os menores o ordenado que o casal aufere não é suficiente para fazer face aos gastos mensais, dificilmente será suficiente para alimentar mais cinco crianças”.
A fls 102 a técnica da Segurança Social, depois de assinalar que a ora recorrente “visita diariamente os filhos, deslocando-se a pé até à instituição depois do horário laboral que termina às 16,30 horas, durando as visitas cerca de dez minutos, pois terminam às 17horas”, espraia-se em juízos sem suporte fáctico relevante, acabando a sublinhar que “assegurar o desenvolvimento integral de cinco menores é muito difícil principalmente para alguém que não possui retaguarda familiar nem uma situação profissional estável”
As mesmas técnicas em novo relatório – junto em Novembro de 2005 - que constitui fls 113, referem de forma lapidar:
Não pomos em causa que a R. goste dos filhos, até porque quem não gosta não visita todos os dias, mas independentemente de gostar deles, não consegue funcionar nas tarefas que lhe são pedidas enquanto mãe. A capacidade de gostar é diferente da capacidade de cuidar, um pai ou uma mãe até pode gostar do seu filho, mas não se conseguir organizar para cuidar dele.”
E mais adiante acrescentam:
“Somos de opinião que a adopção deve ser a última medida, pois é a única que tem carácter definitivo. Contudo, temos também consciência que em dois anos de institucionalização o vínculo pelos filhos não foi suficiente para alterar os hábitos familiares. A Rosa não terá mudanças significativas, de forma que estas crianças possam em segurança regressar ao lar.”
E concluem sugerindo “que seja realizada uma avaliação psicológica por uma entidade competente que avalie as capacidades cognitivas e parentais da progenitora, de forma a ser reunido o maior número de dados que permita uma decisão devidamente fundamentada, tendo em conta o superior interesse da criança”.
Tal sugestão veio a ser acolhida, sendo deferida à Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto tal tarefa, cujo relatório conclui nos termos seguintes:
“Em síntese, os dados da avaliação não revelam, na examinada, a presença de psicopatologia relevante nem de padrões comportamentais indicadores de disfuncionalidade ao nível psicológico. No entanto, as dificuldades cognitivas evidenciadas pela Sra. R., nomeadamente no domínio da conceptualização, parecem limitar o exercício da parentalidade, nomeadamente, na compreensão de algumas das suas exigências. Por exemplo, a Sra. R. referiu-nos numa das sessões que a sua filha A. tinha reprovado de ano por faltas, dado ter estado doente, tendo esta situação acontecido porque não sabia que tinha que justificar as faltas da filha. Saliente-se também que a relação conflituosa entre a examinada e o pai dos menores terá sido um factor limitador do exercício da parentalidade para a Sra. R., dadas as suas consequências emocionais e logísticas (numa das sessões a examinada referiu que seria frequente o seu ex-companheiro expulsá-la a si e aos seus filhos de casa). No entanto, a Sra. R. manifestou uma elevada motivação a criar condições para que os seus filhos regressem ao seu cuidado. Saliente-se que este facto é uma condição essencial para a mudança dos comportamentos da Sra. R. no domínio da parentalidade e que deve ser explorada e potenciada, por exemplo, através da inclusão da examinada num programa de educação parental, ou através da assessoria de técnicos especializados, de forma a minimizar as suas limitações ao nível dos conhecimentos necessários ao exercício da parentalidade. No nosso entender será também importante avaliar as condições logísticas, nomeadamente ao nível habitacional e de recursos financeiros, que a Sra. R. possui actualmente.”
Manifestamente a sentença fez tábua rasa de tão avalizado contributo.
Vejamos se tal se justificaria no caso concreto, à luz do quadro legal vigente e valorado com o apoio de relevantes contributos recolhidos de especialistas, cientes de que neste domínio o engenho na interpretação dos textos legais será sempre inconsequente se não for sustentado por outros saberes que melhor desvendem a essência dos interesses a cuja tutela o processo é destinado.
Em Encontro que correu sobre a égide da Universidade Católica Portuguesa – Porto sob o lema “Cuidar da Justiça de Crianças e Jovens” (Almedina) dizia Maria Clara Sottomayor o seguinte:
No nosso país, o sistema de protecção de crianças e jovens tem detectado sobretudo, crianças que não vêem satisfeitas as suas necessidades básicas, por carências económicas da família e falta de apoio do Estado, e crianças abandonadas.
(…)Os casos que todos os anos chegam às comissões de protecção de crianças e de jovens referem-se, principalmente, a crianças vítimas de abusos físicos, negligência ou em risco grave por falta de condições educacionais e financeiras da família. Os pais das crianças são geralmente analfabetos ou com um nível baixo de educação, sem habilitações profissionais, normalmente com problemas de saúde física ou mental, alcoolismo ou toxicodependência, vivem em casas sem condições de habitabilidade, num nível muito abaixo da linha de pobreza, não podendo prestar aos filhos cuidados básicos de alimentação, saúde e de higiene. Trata-se, portanto, de um problema de falta de apoio económico do Estado à família e da falta de instrução e carências educacionais dos adultos. A prevenção deste problema social reside no apoio económico à família, sobretudo, às famílias monoparentais, na educação parental e na educação dos futuros cidadãos.”
E acrescentava (página 54/55):
“Os modelos de protecção de menores têm-se caracterizado, em Portugal, pela aplicação excessiva de medidas de internamento, sendo o nosso país, aquele que na União Europeia tem um maior número de menores internados em instituições. Este número era de 14.000, em 1997, facto reflexo de uma cultura judiciária que vê as crianças como objectos que se depositam em instituições. As críticas feitas a este sistema residem também na sua acentuada selectividade, pois apenas as crianças das classes sociais mais desfavorecidas são atingidas, ficando de fora a negligência emocional das crianças, nas classes sociais altas.
Afigura-se-me que a margem de erro do sistema reside, por um lado, na aplicação desproporcionada de medidas de institucionalização a casos de negligência económica, deficiente alimentação das crianças ou falta de condições habitacionais as quais poderiam ser supridas pelo Estado, através de apoio económico às famílias (…).
Este sistema de protecção, que considera a criança como um indivíduo separado da sua família, conduzindo à institucionalização das crianças-vítimas, revelou-se desumano e traumatizante para a criança.”
Dizendo mais adiante que:o internamento institucional deverá ser a última solução a adoptar, após serem esgotadas todas as alternativas possíveis para a substituição do meio familiar da criança. Deve-se privilegiar a permanência na família, se necessário, com apoios de natureza psico-pedagógica, social ou económica.
O Estado deverá rentabilizar sinergias interinstitucionais, intersectoriais, interdisciplinares. Interessa procurar respostas criativas, usar recursos ainda não explorados e avaliar as acções e projectos de forma reguladora. (…)
O internamento será concebível numa situação transitória, numa crise e procurando que, durante o tempo de internamento, se faça um trabalho com as famílias ou se encontrem outras alternativas.”
No mesmo Encontro dizia um outro interveniente (Rui Assis, fls. 142/143 da obra citada) o seguinte:
“Censura-se aos sistemas de protecção, antes de mais, os abusos a que foram dando lugar, em especial em relação às crianças mais pobres, pelo que se pretende dotar esse novo sistema de todo um conjunto de garantias relativas à salvaguarda dos direitos dos menores e dos seus progenitores.
(…) No já referido plano internacional, o instrumento jurídico fundamental é a Convenção sobre os Direitos da Criança, adoptada no quadro da Organização das Nações Unidas e assinada em Nova lorque em 26 de Janeiro de 1990, da qual Portugal foi um dos primeiros subscritores.
A Convenção pode e deve ser olhada como um autêntico instrumento internacional de defesa dos Direitos Humanos, bastante inovador e inspirador no plano jurídico, quer pela abordagem integrada do problema que aí surge preconizada, quer mesmo pelo equilíbrio que procura alcançar nas soluções que contém para os diversos interesses em causa. É assim introduzido um sistema de protecção integrada da criança, no qual esta é considerada como um sujeito de direitos e não simplesmente como o ser frágil e vulnerável, carente de medidas de protecção e assistência. A Convenção assume uma perspectiva centrada na criança, em que as responsabilidades dos pais, da sociedade e do Estado são abordadas e definidas em razão da criança e da forma como os seus direitos devem ser protegidos e respeitados, considerando-se que tal perspectiva, ao enunciar o valor da criança como sujeito de direitos fundamentais inerentes à sua dignidade humana, deve ser mesmo determinante no quadro específico da justiça de menores, impondo e implicando alterações legislativas em conformidade.
(…) Acresce que a comunidade internacional ganha também consciência de que as famílias, mesmo as mais problemáticas, têm um papel insubstituível na vida das crianças e dos jovens, e que em boa verdade pouco se pode fazer sem a sua colaboração e intervenção. E que, para além disso, também as famílias têm inquestionáveis direitos face à intervenção do Estado. São por isso definidos, de forma precisa, os critérios que autorizam intervenções formais preventivas junto de crianças em situação de risco, as quais deverão sempre respeitar a regra da intervenção mínima do Estado.
Seleccionámos os textos atrás transcritos para, com o conforto de tão avalizadas opiniões, mais facilmente justificarmos por que não sufragamos a decisão recorrida.
Concede-se que, como certeiramente o Digno Procurador-Adjunto assinala na douta alegação produzida “ com as mesmas palavras com que se decide a adopção dos menores, pode decidir-se o seu contrário, desde que os pressupostos de facto variem de direcção e intensidade interpretativa. Sendo o interesse da criança o vector fundamental para as decisões em matéria de menores, com as ideias de sentido comum, de crianças felizes, saudáveis, também essas qualidades e valores se atribuem em primeira linha à família biológica para a respectiva protecção”.
(…) A ideia de adopção, mencionada pelos Serviços da Segurança Social, implica a ponderação de diversos factores que não estavam suficientemente presentes durante a maior parte do tempo decorrido. (…)
Actualmente, as condições objectivas e subjectivas da vida da mãe dos menores, melhoraram sensivelmente e de modo a poder dizer-se que se afastaram os receios iniciais e que perduraram estes últimos três ou quatro anos, no sentido da completa incapacidade da referida mãe em ter os filhos consigo e com apoio externo, eventualmente institucional.”
Pela nossa parte diremos que nem sequer vislumbramos nas informações trazidas aos autos justificação bastante para tão drástica medida cautelar, salvo evidentemente a decorrente da dificuldade de aplicação de qualquer outra das elencadas no artigo 35º quando está em causa fratria tão numerosa.
Não fosse tal dificuldade, a aplicação de medida de colocação a um menor com os elementos carreados para os autos representaria, sem sombra de dúvida, inequívoca violação dos princípios da proporcionalidade e adequação plasmados no artigo 4º da LPCJP.
Mas ainda que norteada por elementar pragmatismo, isso não lhe confere o toque indiscutível da legalidade, pois representou uma restrição de direitos fundamentais dos menores e sua progenitora só possível em situação absolutamente excepcional que in casu não se verificava.
E tanto basta para que, em circunstância alguma, a decisão pudesse manter-se.
Neste domínio, esgrime-se com frequente desacerto a referência legal ao superior interesse do menor”, conceito que vem sendo moldado às conveniências várias que neste domínio se entrecruzam, normalmente associado à prevalência da chamada “família de afecto” em contraposição à família biológica.
Como refere o Dr. Rui Assis (obra citada, pág 140) “o Estado dogmatiza o conceito do “interesse do menor”, que ele próprio define sem limites, sendo patente que a intervenção estadual levada a cabo em nome da protecção de tal interesse arrasta consigo o perigo de deixar o menor e os seus progenitores desprotegidos face a essa mesma intervenção.”
Por isso, defende, “o “interesse do menor”, em nome do qual se limitam direitos fundamentais dos menores e dos seus pais, não pode hoje caber mais à discricionariedade do Estado, não pode conceber-se como categoria cuja densificação pertença por inteiro a esse mesmo Estado. É justamente esse o sentido da Convenção quando faz emergir o novo conceito de “interesse superior da criança”.
(…) Por isso, a intervenção do Estado, por constituir uma intromissão na esfera jurídica dos menores e dos seus pais, deve ser rigorosamente escrutinada e limitada, traduzindo-se ainda o mais possível em soluções alternativas às soluções institucionais. Também com a consciência de que as famílias têm um papel insubstituível e central em tudo o que aos menores diga respeito, e que o apoio às famílias se deve primacialmente traduzir em medidas positivas, numa perspectiva de responsabilidade e solidariedade sociais que abra espaço à participação comunitária.
É nesse quadro global que se situa o processo de reforma legislativa relativa aos menores entretanto iniciado em Portugal, o qual é aliás anunciado como uma “verdadeira refundação de todo o sistema” de intervenção do Estado junto das crianças e dos jovens”.
No caso que nos ocupa e ao menos no que diz respeito à progenitora, perpassa por todo o processo o seu amor aos filhos que a levou, durante anos a fio, a deslocar-se a pé para os ver diariamente nos escassos minutos que mediavam entre o fim da sua jornada laboral e o termo das visitas que a instituição lhe consentia.
Concede-se que isso não possa ser bastante para obstar à intervenção do Estado, mas é-o seguramente para “temperar” a intensidade dessa mesma intervenção.
Como a recorrente sublinha na alegação de fls 359 e segs. a única imputação consistente que lhe é feita é a sua própria pobreza, directamente proporcional à prole por si gerada, não havendo notícia nos autos de maus tratos infligidos a seus filhos.
Claro que se não subscrevemos – antes repudiamos com veemência - a equiparação que surge subliminarmente em posições públicas que inferem os maus tratos da impossibilidade material dos progenitores em tratar melhor os seus filhos, do mesmo modo que se enjeita a concepção fundamentalista aflorada no discurso de alguns responsáveis de que não é a família que tem direito à criança, mas esta que tem direito à família.
Será provável que como a própria assinala na alegação de fls 359, não possa prodigalizar a seus filhos o conforto a que eles têm direito, ou a panóplia de bens de que as outras crianças normalmente desfrutam.
Mas se a intervenção do Estado fosse justificada por tal circunstância ou sequer influenciada por ela, quantos pais não seriam preteridos por outrem com maior capacidade financeira?
Aliás, será mesmo pertinente a questão deixada pelo Prof. Dr. Guilherme de Oliveira, invocado na mesma peça, sobre se “o valor disponibilizado às instituições pelo recolhimento das crianças não poderia ser aplicado no apoio à família, de modo a não as afastar dos progenitores.”
Soube-se recentemente pela imprensa de 12/11 p.p. que por portaria que aguarda publicação as famílias de acolhimento irão receber por cada criança €168,20 mais €145,60 de subsídio de manutenção.
Sabendo-se que a recorrente, satisfeita a renda da casa e despesas associadas, pouco mais lhe sobra do que o valor do subsídio de manutenção referido, é legítimo perguntar em nome de que interesse poderia defender-se o acolhimento profissional e sem afecto, quando no caso vertente se pode ter tudo, conforto e afecto, desde que o Estado cumpra a sua parte?
No entanto, está anunciado que no OE do próximo ano o acompanhamento das famílias que têm crianças e jovens numa instituição tem um aumento de 122%, pois “pretendemos que aquelas crianças a quem foi aplicada uma medida no âmbito da lei de protecção possam ver as suas famílias mais capacitadas, uma vez que sempre que as famílias tenham condições, as crianças estão bem é junto dos seus pais, avós, ou tios.” (extracto da entrevista da Srª Secretária de Estado Adjunta e Reabilitação ao jornal “Público” da referida data).
Dizia Maria Clara Sottomayor na obra já citada, que “quando se trata de famílias que não podem criar os seus filhos, apenas por carência económica, as opções políticas do Estado, na distribuição dos recursos, deviam concentrar-se no apoio às famílias.
Considero também que o sistema legal em vez de oferecer um sistema de tudo ou nada, deveria, antes, criar figuras intermédias entre a adopção e a guarda, a chamada adopção aberta ou adopção com contacto entre a criança e a família biológica, para casos em que existe uma relação afectiva entre as crianças e os pais biológicos.”
Em acórdão da Relação de Lisboa de 19/9/06 (Rijo Ferreira) escreveu-se que “na aplicação de medidas de promoção e protecção de menores deve dar-se prevalência às soluções que permitam a integração na família natural e só quando esta não se mostre viável se deverá optar por soluções institucionais, preferindo a estas a adopção.”
Não se ignora obviamente que a solução a que a sentença sob recurso acolheu não se ancorou apenas – nem sequer primacialmente – na constatação das dificuldades económicas da progenitora, antes relevou aquilo que vem designado como “falta de recursos internos”, expressão claramente associada às dificuldades cognitivas assinaladas no relatório da avaliação psicológica elaborado pela Faculdade de Psicologia, junto a fls 232 dos autos.
Simplesmente, enquanto nesse mesmo relatório se reputava adequado, em ordem a suprir tais dificuldades, a inclusão da examinada num programa de educação parental ou a simples assessoria técnica especializada, a sentença deu guarida à irreversibilidade dessas mesmas dificuldades, reiteradamente veiculada para os autos pelas técnicas de Serviço Social que foram chamadas a colaborar no decurso da instrução do processo.
Como se decidiu no Ac. de 22/2/07 da R. Lx. (Francisco Magueijo) “sempre que se evidencie dos factos provados que a mãe biológica não aproveitou, ao longo do tempo, as ajudas prestadas pelos serviços públicos a fim de adquirir as devidas competências maternais, continuando a revelar incapacidade para fornecer os cuidados e afecto adequados às necessidades do filho (…) a defesa dos interesses deste impõe que a mesma seja inibida do exercício do poder paternal e o menor permaneça na instituição apenas com vista a ser colocado à guarda de candidato com vista à sua adopção.”
Na sentença foi dado por provado que a recorrente, após a aplicação da medida de acolhimento, tem vindo a recusar o apoio e orientações dos técnicos da Segurança Social (1.23) e ainda que se recusou perante a técnica da Segurança Social a dar informações sobre a sua actual situação económica, profissional e habitacional (ponto 1.42).
Tal recusa não foi impeditiva da obtenção de tais elementos, sendo patente pelo incidente de suspeição que esteve na origem do agravo acima aludido que, justificada ou injustificadamente, atribui às mesmas técnicas a responsabilidade pela desproporcionada medida que foi aplicada aos menores.
Estando embora superado tal incidente, não deverá deixar de assinalar-se que em processo desta natureza, não estando naturalmente em causa nem a capacidade técnica nem a isenção dos técnicos da Segurança Social envolvidos, será razoável dissipar todos os factores de crispação em ordem a que as opiniões por eles emitidas não sejam apenas isentas, mas tenham ainda bem à vista a marca dessa mesma isenção.
Ou, como nos propõe ainda Maria Clara Sottomayor (obra citada, pág.61) “no exercício do poder judicial, existe uma relação particular entre o juiz e as partes litigantes, no sentido de que o juiz deve decidir os assuntos que afectam as crianças, de acordo com uma ética de cuidado, tal como os pais tomam decisões que afectam a vida dos seus filhos. No Direito das Crianças verifica-se uma interacção entre cuidado e justiça. A justiça não é a pureza positivista ou legalista mas requer uma apreciação da essência humana de cada participante e do seu dilema e o método jurídico deve atender ao particular e à contextualização, para dar voz aos excluídos.”
Tal ética de cuidado – acrescentamos nós – deve estar presente em todas as decisões, mesmo nas de natureza meramente interlocutória.
Assim e regressando ao fundo da causa, é óbvio que o regime de protecção em vigor não pretende diabolizar a pobreza, mas antes a ausência de afecto, sem embargo de acautelar igualmente as situações de pobreza com incidência sobre a saúde física ou moral do menor, enquanto se aguarda que os apoios de natureza psico-pedagógica, social ou económica conduzam à superação do perigo.
“A adopção – dizia recentemente o Cons. Laborinho Lúcio, em Fórum no Montijo – não existe como alternativa à família: existe porque não há família. Só as crianças adoptadas são felizes. Para bem delas, na maioria dos casos, as crianças são adoptadas pelos pais biológicos (…).”
Os menores a que estes autos se referem foram adoptados seguramente por sua mãe que, ainda que com dificuldades económicas e pessoais limitações, há-de merecer da parte do Estado os apoios necessários à sua superação, pois tal como a Srª Secretária de Estado citada, pensamos também que é com a sua progenitora que eles estão bem.
Pensamos todavia não se justificar por ora o arquivamento do processo e por isso temos por mais ajustada a opção pela medida de apoio junto da mãe, prevista na alínea a) do artigo 35º da LPCJP, em ordem a proporcionar às crianças e sua progenitora ajuda psicopedagógica, social e económica que é da essência de tal intervenção.
Sopesa-se naturalmente que a idade dos menores – e a facilidade associada à sua integração - e a duração da institucionalização podem ser factores de relevo a embaraçar a súbita mudança do seu quotidiano, ainda mais quando pode envolver para alguns deles algum constrangimento para a frequência dos mesmos estabelecimentos escolares.
Defere-se naturalmente à competência e sagacidade das equipas multidisciplinares de Solidariedade Social a implementação, sob supervisão do tribunal, a busca das medidas pontuais que se revelem adequadas à execução do decidido e finalisticamente orientadas à consecução da reintegração dos menores na sua família de origem, sem embargo de se reiterarem as aplicadas na sentença em apreciação face à sua manifesta pertinência.
***
DECISÃO:
Face ao exposto, acorda-se em conceder provimento ao agravo e, em consequência, revoga-se a sentença, devendo os menores ser entregues à mãe, com medida de apoio pedagógico, social e económico junto desta, pelo prazo de um ano, mediante o cumprimento dos seguintes deveres:
a) Inscrever os menores J. e C. em jardim infantil e/ou pré-primária;
b) Assegurar a assiduidade escolar de seus filhos e zelar pela sua assistência médica, cuidando da actualização das respectivas vacinas;
c) Prover à higiene pessoal dos menores e à sua alimentação;
d) Manter a habitação limpa e cuidada;
e) Participar nos programas que lhe forem propostos pela Segurança Social e
aceitar as orientações das respectivas técnicas, vocacionados para o melhor
desempenho da responsabilidade parental.
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Sem custas.
Guimarães, 6 de Dezembro de 2007