Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2659/07-1
Relator: AUGUSTO CARVALHO
Descritores: PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/21/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA PROCEDENTE
Sumário: 1.O prazo de prescrição de seis meses a que alude o nº 1, do artigo 10º, da Lei nº 23/96, de 26 de Julho, refere-se à faculdade de interpelação do devedor para pagamento, através da apresentação da respectiva factura; esse prazo começa a contar no dia imediato ao termo do período de prestação a que a factura respeita; o prazo para exigência judicial do pagamento do preço é de cinco anos ou de dois anos, consoante a energia eléctrica seja ou não destinada ao exercício industrial do devedor – artigos 310º, alínea g), e 317º, alínea b), do C. Civil, respectivamente; no caso, as facturas de energia eléctrica foram enviadas ao recorrido, para pagamento, nas datas nelas apostas, ou seja, o preço daquela foi exigido imediatamente a seguir à prestação e, por isso, antes do decurso do prazo de seis meses a que se refere o nº 1, do artigo 10º, da Lei 23/96, de 26 de Julho.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


E... – D... Energia, S.A., intentou procedimento de injunção contra A... Gomes, pedindo a condenação deste a pagar-lhe 5.863,51 euros, acrescidos de 724,24 euros, a título de juros de mora, à taxa de 4%, vencidos entre 17.3.2004 e 28.3.2007, atento o facto de ter prestado ao réu serviços de energia eléctrica que, apesar de devidamente facturados, não foram pagos.

O réu deduziu oposição, por excepção, alegando que é inepto o requerimento inicial, por falta de causa de pedir, e que, nos termos da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, aplicável ao caso dos autos, o prazo prescricional aplicável a estas dívidas é de 6 meses, após a prestação dos serviços, pelo que, o crédito da autora se encontra prescrito.
Por impugnação, alegou que não é ele o verdadeiro responsável pela dívida ora peticionada, mas sim a sociedade “S... Carnes, Lda.”.

A autora respondeu à oposição, concluindo que é manifesta a existência e a inteligibilidade do pedido e, no que respeita à causa de pedir, o citado requerimento não deve ser considerado inepto, dado que identifica os elementos essenciais do pedido; a obrigação assumida perante o réu traduz-se em prestações de execução continuada, sendo que aquele não solicitou a cessação dos contratos, no decurso da sua execução; a interpelação do réu para pagar o preço verificou-se imediatamente a seguir à data das facturas. Pelo que, não decorreu o prazo a que alude o n.º 1 do artigo 10.º, da Lei n.º 23/96, entre os momentos das referidas facturações e a interpelação ao réu para pagar os respectivos preços.

No despacho saneador, a Exmª Juiz, com o fundamento de que o prazo previsto no artigo 10º, nº 1, da Lei nº 23/96, já estava integralmente decorrido, à data da entrada do requerimento de injunção, julgou verificada a excepção peremptória da prescrição e, por via disso, absolveu o réu do pedido.

Inconformada com a referida decisão, a autora recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões:
1.A recorrente E... celebrou com o recorrido dois contratos de fornecimento de energia eléctrica.
2.A obrigação assumida pela recorrente, no âmbito dos referidos contratos, traduz-se em prestações duradouras de execução continuada.
3.A E... forneceu energia eléctrica ao recorrido no cumprimento dos mencionados contratos, serviços estes facturados, em 10.1.2003 a 3.6.2003 e 14.1.2004 a 14.4.2004, tendo remetido à recorrida, para pagamento, as respectivas facturas, nas datas das citadas facturações.

4.A interpelação do recorrido para pagar o preço dos serviços prestados pela recorrente verificou-se imediatamente a seguir às prestações.
5.Não decorreu o prazo a que alude o nº 1, do artigo 10º, da Lei nº 23/96, entre o momento da entrega da energia e a interpelação da recorrida, para pagar os respectivos preços.
6.A citada Lei refere expressamente no nº 1, do artigo 10º, que “o direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses, após a prestação” e não que o preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses.
7.Igualmente, não decorreu o prazo a que alude a alínea g), do artigo 310º, do C. Civil, entre o momento da prestação do serviço e a citação da recorrida para a acção.
8.Os fornecimentos de energia eléctrica destinaram-se a instalação industrial do recorrido, sendo o valor da facturação elucidativo da sua dimensão, ressalvando que não foi este tipo de consumidores que a Lei 23/96 visou proteger.
9.Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo violou, além do mais, o disposto na alínea g), do artigo 310º, do C. Civil, e o disposto no nº 1, do artigo 10º, da Lei 23/96.
Nestes termos, deverá revogar-se a sentença recorrida e, em consequência, julgando-se improcedente a deduzida excepção peremptória da prescrição do direito da autora, devendo a acção prosseguir os seus termos até final, no que respeita à matéria que foi impugnada pelo réu.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Os elementos de facto a considerar, por relevantes, para o conhecimento do recurso são os seguintes:
1.A autora, na sua qualidade de prestador de serviço de fornecimento de energia, contratou com o réu a prestação de tais serviços.
2.Por contratos de 02/01/2001 e 25/10/2003, autora e réu acordaram que aquela prestaria a este fornecimento de energia eléctrica em Baixa Tensão, que se destinava a instalação industrial, para os locais sitos na Rua 5 de Outubro, 156, r/c, direito, Vila Praia de Âncora, Caminha e Rua do Bonjardim, 533, Porto.
3.O crédito aqui reclamado provém do fornecimento de bens ou serviços, de facturas não pagas, do contrato n.º 244997604, datado de 02/01/2001 e refere-se ao período de 10/01/2003 a 03/06/2003, bem assim como ao contrato N.º 324523903, datado de 25/10/2003 e refere-se ao período de 14/01/2004 a 14/04/2004.
4.O requerimento de injunção deu entrada em 28 de Março de 2007.
5.O réu foi citado a 3 de Abril de 2007.


São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do C. P. Civil.
A questão a decidir consiste em saber se, atento o teor do nº 1, do artigo 10º, da Lei 23/96, de 26 de Julho, o direito de exigir judicialmente o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses, após a sua prestação mensal, com foi decidido ou, pelo contrário, este mesmo prazo, como pretende a recorrente, apenas se refere à



faculdade de interpelação do devedor para pagamento, através da apresentação da correspondente factura.
I.Diz-se que há prescrição quando alguém se pode opor ao exercício de um direito pelo simples facto de este não ter sido exercido durante determinado prazo fixado na lei.
Pode dizer-se que «a prescrição pressupõe a verificação dos seguintes requisitos: um direito disponível; que possa ser exercido; mas que o não seja durante certo lapso de tempo estabelecido na lei; e que não esteja isento de prescrição». Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1980, 2º, pág.155 e 157.
O fundamento específico da prescrição reside na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo indicado na lei. Negligência que faz presumir ter ele querido renunciar ao direito ou, pelo menos, o torne indigno de protecção jurídica.
Outras razões se costumam invocar para a justificação do instituto prescricional, quais sejam: uma consideração de certeza ou segurança jurídica, a qual exige que as situações de facto que se constituíram e prolongaram por muito tempo, sobre a base delas se criando expectativas e se organizando planos de vida, se mantenham, não podendo ser atacadas por anti-jurídicas. Proteger os obrigados, especialmente os devedores contra as dificuldades de prova a que estavam expostos no caso de o credor vir exigir o que já haja, porventura, recebido. Exercer uma pressão sobre os titulares dos direitos, no sentido de não descurarem o seu exercício ou efectivação, quando não queiram abdicar deles. cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, pág. 446.
O réu fundamenta a prescrição do direito de crédito, no facto de terem decorrido seis meses a contar da data da prestação dos serviços, invocando o citado artigo 10.º, n.º 1, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, que dispõe: O direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
Por sua vez, o artigo 1º, da Lei 23/96, estabelece:
1. A presente lei consagra regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente. 2. São os seguintes os serviços públicos abrangidos: a) Serviço de fornecimento de água; b) Serviço de fornecimento de energia eléctrica; c) Serviço de fornecimento de gás; d) Serviço de telefone. 3. Considera-se utente, para os efeitos previstos no diploma, a pessoa singular ou colectiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo.
Os serviços de energia eléctrica em causa foram prestados nos períodos de 10 de Janeiro a 3 de Junho de 2003; e de 14 de Janeiro a 14 de Abril de 2004.
Daqui concluiu a sentença recorrida que se iniciou, em 15 de Abril de 2004, a contagem do prazo de 6 meses de que a autora dispunha para exercer o seu direito de exigir judicialmente o pagamento do preço do fornecimento de energia que prestou ao réu (pois, é no dia imediato ao último mês do serviço prestado que o prazo da prescrição se começa a contar, por ser desde esse dia que existe exigibilidade da obrigação e o direito está em condições de poder ser exercido pelo seu titular).
Seguiu-se a tese de que, atento o teor do nº 1, do artigo 10º, da Lei nº 23/96, o direito de exigir judicialmente o pagamento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses, após a sua prestação mensal, data da exigibilidade da obrigação e da possibilidade de exercício do direito. Calvão da Silva, RLJ, 132, págs. 155 e 156.
Não se pode concordar com esta posição, pois, melhor nos convence aquela de que o prazo de seis meses fixado no artigo 10º, nº 1, da Lei 23/96, se refere à apresentação da factura e não ao crédito do preço.
Como refere Menezes Cordeiro, “a Lei nº 23/96 será uma boa lei se se aplicar com segurança e previsibilidade, elevando o nível dos serviços e tranquilizando os utentes. A lei que empole a litigiosidade social nunca é uma boa lei”, sendo que não se pode interpretar o artigo 10º, nº 1, pensando apenas nos serviços de telefones em que há especiais facilidades de encontrar o preço, mas também nos outros, como a electricidade e água, em que o fornecedor pode precisar de tempo para efectuar as leituras, tendo-se entendido dar-lhes um prazo de seis meses, de modo que, se então, “não houver factura, há prescrição”. Assim, se enviada a factura no prazo de seis meses, o direito de exigir o pagamento foi atempadamente exercido; depois, cair-se-á na prescrição dos artigos 310º, alínea g) ou 317º, alínea b), do C. Civil, conforme a qualidade da pessoa do devedor. Da prescrição do Pagamento dos Denominados Serviços Públicos Essenciais, O Direito, 133; e acórdão do STJ, de 23.1.2007, in wwwdgsi.pt
Ainda que o cliente tenha a possibilidade de, ele próprio, efectuar a recolha das indicações dos equipamentos de medição, a apresentação da factura é sempre exigível, nos termos do artigo 9º, nº 1, da Lei 23/96, factura que tem, designadamente, de indicar o prazo de pagamento (no caso de baixa tensão, 10 dias; nos restantes casos, 26 dias, a contar da apresentação).
Como se diz no parecer juntos autos (da autoria de Rui de Alarcão e J. Sousa Ribeiro), a cujas conclusões se adere inteiramente, «a factura desempenha, pois, a função de liquidação do preço e a sua apresentação ao cliente vale como interpelação para pagamento, com simultânea fixação do prazo de cumprimento. Ainda que temporalmente periodizado e renovado, o crédito do preço não se vence automaticamente, pelo simples decurso do tempo a que corresponde. Esse vencimento está condicionado à exigência, pelo credor, do montante devido, com indicação da data limite de pagamento. Nos termos legais, essa exigência tem que ser feita documentalmente, através da apresentação de factura.
Este acto do credor representa, assim, um passo instrumentalmente necessário para a realização do direito ao preço. Apresentação da factura e exercício do “direito de exigir o pagamento do preço do serviço prestado” são uma e a mesma coisa, já que aquele é um comportamento a que o credor está vinculado como forçoso modo de exercício deste direito. (…) Em conformidade, a norma (artigo 10º, nº 1, da Lei 23/96) deve ser lida como se dissesse o direito ao preço prescreve se a respectiva factura não for apresentada dentro dos seis meses após a prestação do serviço». No mesmo sentido, acórdãos do STJ, de 13.5.2004 e de 23.1.2007; e acórdãos da RP, de 25.3.2004 e de 21.9.2004, in www.dgsi.pt.
As facturas de energia eléctrica, com datas de 10.1.2003 a 3.6.2003 e de 14.1.2004 a 14.4.2004, foram enviadas ao recorrido, para pagamento, nas datas nelas apostas, ou seja, o preço daquela foi exigido imediatamente a seguir à prestação e, por isso, antes do decurso do prazo de seis meses a que se refere o nº 1, do artigo 10º, da Lei 23/96, de 26 de Julho.
Portanto, o prazo de prescrição de seis meses estabelecido no nº 1, do citado artigo 10º, da Lei 23/96, refere-se à faculdade de interpelação do devedor para pagamento, através da apresentação da factura. Omitido, em tempo, este acto de interpelação, prescreve o crédito do preço do serviço. Mas, apresentada tempestivamente a factura, exigiu-se o pagamento e não ocorreu a prescrição, havendo, então, que atender ao prazo de extinção do crédito estabelecido na alínea g), do artigo 310º, do C. Civil, que, no caso, é de cinco anos, dado o destino industrial do fornecimento.
A recorrente exerceu, devida e tempestivamente, o seu direito, dado que o preço relativo à energia eléctrica que é objecto da presente acção foi exigido, logo a seguir, à prestação e, por isso, muito antes de terminar aquele prazo de seis meses.
Deste modo, e em conclusão, dir-se-á que o prazo de prescrição de seis meses a que alude o nº 1, do artigo 10º, da Lei nº 23/96, de 26 de Julho, refere-se à faculdade de



interpelação do devedor para pagamento, através da apresentação da respectiva factura; esse prazo começa a contar no dia imediato ao termo do período de prestação a que a factura respeita; o prazo para exigência judicial do pagamento do preço é de cinco anos ou de dois anos, consoante a energia eléctrica seja ou não destinada ao exercício industrial do devedor – artigos 310º, alínea g), e 317º, alínea b), do C. Civil, respectivamente; no caso, as facturas de energia eléctrica, com datas de 10.1.2003 a 3.6.2003 e de 14.1.2004 a 14.4.2004, foram enviadas ao recorrido, para pagamento, nas datas nelas apostas, ou seja, o preço daquela foi exigido imediatamente a seguir à prestação e, por isso, antes do decurso do prazo de seis meses a que se refere o nº 1, do artigo 10º, da Lei 23/96, de 26 de Julho.

Decisão:
Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta secção cível em julgar a apelação procedente e, revogando a sentença recorrida, julgam a excepção peremptória da prescrição improcedente e ordenam que a acção prossiga seus termos, no que respeita à matéria que foi impugnada pelo réu/recorrido.

Custas pelo apelado.





Guimarães, 21.2.2008