Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2347/07-1
Relator: CONCEIÇÃO BUCHO
Descritores: LIQUIDAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/07/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – No incidente de liquidação, não sendo a prova produzida suficiente, deve o julgador oficiosamente ordenar a produção de prova suplementar que julgue adequada para o efeito, nomeadamente a pericial, de acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 380º do Código de processo Civil .
II – E se mesmo depois não for possível atingir tal desiderato, então, deverá sempre, e a final julgar de acordo com a equidade.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

Proc. n.º 2347/07-1
Apelação.
2º juízo Cível de Guimarães.


I - Os autores ª. e mulher M... vieram deduzir contra os réus BB.... e mulher CC..., incidente de liquidação, nos termos do disposto no art. 378º n.º 2 do CPC, pugnando pela procedência deste incidente e pela liquidação da quantia exequenda, fixando-se em 10, 00 Euros, a taxa diária de indemnização devida pela violação do direito dos autores, até cessar o impedimento do exercício do direito de servidão de passagem.

Tal incidente foi suscitado na sequência do despacho proferido a fls. 28, dos autos de execução apensa, nos termos do qual, o título dado à execução foi julgado ilíquido, quanto ao quantitativo da indemnização pela violação do direito de servidão de passagem, sendo por isso inexequível, razão pela qual foi a execução rejeitada, nos termos do art. 820º do CPC.
Admitido o incidente, foi a instância extinta declarada renovada e ordenada a notificação da parte contrária para, querendo, deduzir oposição, no prazo legal.
Os réus deduziram oposição ao incidente de liquidação, defendendo-se por excepção dilatória, arguindo a inexequibilidade do título, na medida em que o título dado à execução – sentença condenatória transitada em julgado – não fixou o local onde se situa o caminho de servidão, pelo que a sentença é, inexequível. Impugnam ainda a afirmação feita pelos autores, no sentido de que os autores alguma vez tivessem estado impedidos do exercício do seu direito, pugnando pela condenação dos autores como litigantes de má fé, em indemnização a favor dos réus, não inferior a 500, 00 Euros.

Em resposta, sustentam os autores que a douta sentença aderiu aos fundamentos alegados pelos autores e considerou reconhecidos os factos que os réus não contestaram e, por isso, confessaram, designadamente os alegados sob os n.ºs 16 e 17 da P.I., onde se descreve e localiza o caminho em questão.

Efectuado o julgamento foi proferida sentença na qual se decidiu:
Pelo exposto, julgo parcialmente procedente o incidente de liquidação formulado pelos autores A.. e M... e, em consequência, liquido o montante indemnizatório devido pelos réus BB... e CC..., em consequência da violação por parte destes, do direito de servidão de passagem de que aqueles são titulares, em 5 000, 00 Euros.

Inconformados os réus interpuseram recurso, cujas alegações de fls. 335 a 348, terminam com as seguintes conclusões:

Nos termos do disposto no artigo 380º, n.º 4 do CPC, caso a prova não seja bastante para a fixação do montante indemnizatório incumbe ao juiz, com recurso aos seus poderes de indagação oficiosa, ordenar a produção de prova pertinente, designadamente perícia, recorrendo depois, se necessário, à equidade.
Entendemos que o tribunal violou o exercício de um autónomo poder-dever de indagação da verdade ao proferir um julgamento de equidade, arbitrando uma indemnização, sem que previamente se tivesse socorrido de alguma diligência de prova possível, designadamente a perícia.
Resultou do depoimento das testemunhas e da inspecção ao local que, quer a casa quer o logradouro encontravam-se abandonados, muito tempo antes dos recorrentes terem procedido à construção do muro e impedirem os recorridos de acederem ao seu prédio pelo caminho de servidão que existia.
Para determinar a indemnização deveria ter sido produzida prova no sentido de que, não fosse a falta do caminho de servidão e os recorridos teriam cultivado o terreno durante estes quatro anos.
O tribunal considera os valores do milho, batata, e vinho referidos pelas testemunhas como constituindo tudo lucro.
O tribunal não considerou as despesas com a aquisição, designadamente, das sementes, adubos, tratamentos fitossanitários, os custos dos trabalhos agrícolas.
Todos os custos têm de ser considerados no arbitramento da indemnização, e nenhum foi atendido.
O valor da indemnização depende de múltiplos factores que não foram contemplados, nomeadamente dos referidos custos inerentes às culturas e das regras do mercado.
A prova de tais valores poderia ser efectuada de várias formas, nomeadamente através da prova pericial oficiosamente ordenada, e se se verificasse que tal prova era impossível aí sim o tribunal fixaria a indemnização segundo as regras de equidade, dentro dos limites que tiver por provados.
Por outro lado, o tribunal não atendeu devidamente aos depoimentos das testemunhas Maria da Conceição..., António.... e Felicidade..., pelo que perante a prova produzida impunha-se outra decisão.
A douta sentença violou os artigos 566º do Código Civil e 156º, 380º, n.º 4 e 265º, n.º 3 do Código de Processo Civil.

Os recorridos apresentaram contra-alegações que constam dos autos a fls. 350 a 352, e nas quais pugnam pela manutenção do decidido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Nos termos do artigo 684º, n.º 3 e 690º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do n.º 2 do artigo 660º do mesmo código.


Em 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:

1. Na sentença lavrada a fls. 58e 59 dos presentes autos, decidiu-se pela procedência total da pretensão dos autores e, em consequência:
- declarou-se que os autores são proprietários do prédio dito em 1º da P.I.;
- declarou-se que os autores adquiriram por destinação de pai de família o direito de servidão de passagem, a pé, com animais, veículos de tracção animal e mecânica, todos os dias, durante todo o ano, num caminho com cerca de 4 metros de largura, em toda a sua extensão e sobre o prédio rústico dos réus, dito em 7º da P.I., e a favor do prédio urbano dos autores, dito em 1º da P.I., condenado-se os réus a reconhecer tais direitos;
- condenou-se os réus a pagar aos autores uma indemnização pela violação de tais direitos e a calcular em execução de sentença – Alínea A) dos factos assentes.
2. Nessa mesma sentença foram considerados reconhecidos os factos articulados na P.I., e aderiu-se aos fundamentos alegados pelos autores – Alínea B) dos factos assentes.
3. Na P.I., alegaram os autores, nos art. 15, 16º e 17º, o seguinte:
Caminho esse que como se disse, entronca no caminho público, que liga a estrada Municipal à freguesia de Atães.
O referido caminho sempre existiu no estado em que ainda actualmente se encontra, ou seja, em terra batida, devidamente delimitado, encimado por uma ramada, e com esteios em pedra e numa extensão aproximada de cerca de 60 metros até ao referido prédio urbano, prolongando-se até aos prédios rústicos existentes também junto ao referido prédio urbano.
Existindo ainda actualmente sinais visíveis na confrontação com o caminho público de pedras de cunhal que serviram para a colocação de dobradiças e respectiva cancela” – Alínea C) dos factos assentes.
4. Consta ainda dos pontos 28º a 31º da P.I., o seguinte:
“ Nos passados dias 3 e 4 de Outubro de 2003, os réus iniciaram a construção de um muro em blocos com 7 fiadas de altura e numa extensão aproximada de 20 metros, muro esse que tem o seu início junto a uma das pedras que servia de cunhal e onde se encaixava a cancela anteriormente existente. Com a construção do muro e vedação do terreno dos réus, os autores ficaram impedidos de ter acesso ao seu prédio, através do referido caminho, que é o único existente” – Alínea D) dos factos assentes.
5. Os autores usavam e fruíam o prédio, usufruindo das suas utilidades, colhendo os frutos, realizando obras e benfeitorias – art. 3º da P.I.
6. Os autores pretenderam vender o prédio urbano. Contudo, os potenciais compradores não têm querido comprometer-se com o negócio enquanto a situação do caminho se mantiver – art. 37º da P.I..
7. Em consequência do facto dito em 4º), sofreram os autores um prejuízo de 5 000, 00 Euros – Resposta ao ponto 1º da B.I..
8. Os autores estão impedidos de colher quaisquer frutos no logradouro – Resposta ao ponto 2º da B.I..
Ponto 3. E de proceder a obras de reparação – Resposta ao ponto 3º da B.I..
**
Fundamentalmente o que está em causa no presente recurso é a resposta que mereceram os artigos da base instrutória.
O que os recorrentes alegam é que deveria ter sido efectuada prova pericial para se responder à matéria de facto, bem como afirmam que o tribunal não valorou devidamente os depoimentos das testemunhas .

Conforme consta dos autos os recorrentes foram condenados a pagar aos recorridos uma indemnização em montante a liquidar em execução de sentença.

Instaurado o competente incidente foi elaborada a base instrutória.
No quesito 1º perguntava-se o seguinte :
“ em consequência do facto dito em d) sofreram os autores um prejuízo diário de € 10,00?
No quesito 2º perguntava-se se “os autores estão impedidos de colher os frutos existentes no logradouro” e no quesito 3º perguntava-se “ e de proceder a obras de conservação”.

Notificados nos termos e para os efeitos do artigo 512º do Código de Processo Civil, ambas as partes apresentaram róis de testemunhas e os recorrentes, para além de terem requerido a gravação da audiência, requereram ainda a inspecção ao local.

Realizada a audiência, com gravação da prova, a Mmª Juíza deslocou-se ao local, tendo ficado explanado em acta – fls. 266 – aquilo que o tribunal aí constatou .

A fls. 277, consta a resposta que mereceram os quesitos.

Ao quesito 1º respondeu-se : “ em consequência do facto dito em d) sofreram os autores um prejuízo de € 5.000,00.
Ao quesito 2º respondeu-se “provado apenas que os autores estão impedidos de colher quaisquer frutos que pudessem existir no logradouro. O quesito 3º mereceu a resposta de “provado”.

Por regra, à parte interessada é que incumbe o ónus de alegar factos constitutivos do seu direito e o ónus de prova dos mesmos.
A lei concede ao Juiz o poder de realizar por si, ou ordenar oficiosamente todas as diligências que considere necessárias para o apuramento da verdade, quanto aos factos alegados pelas partes e quanto àqueles de que o tribunal pode conhecer ex officio.
Mas, não se pode confundir o dever de esclarecimento que recai sobre cada uma das partes, na sequência deste poder inquisitório do Juiz com o ónus da prova imposto a qualquer delas.

Dispõe o n.º 3 do artigo 265º do Código de Processo Civil, que incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos que lhe é lícito conhecer.

Ora, do processo resulta que a Mmª juíza ouviu todas as testemunhas arroladas e deslocou-se ao local.
Conforme consta da fundamentação a Mmª juíza entendeu serem suficientes para a resposta à matéria de facto a prova produzida.
Os recorrentes não requereram qualquer diligência que tivesse sido recusada pela Mmª Juíza e que se enquadrasse dentro do disposto no artigo 265º.
E este princípio não pode ser entendido no sentido pretendido pelos recorrentes, ou seja que jamais o juiz pode decidir em equidade sem ter ordenado um exame pericial, uma vez que foram ordenadas várias diligências de prova – a inspecção ao local e a inquirição de testemunhas - .

Só há violação do dever previsto no n.º 3 do artigo 265º, quando o juiz deixe de ordenar uma diligência, que se mostre essencial à descoberta da verdade.

No entanto, no caso da liquidação dispõe o n.º 4 do artigo 380º do Código de Processo Civil que “quando a prova produzida pelos litigantes for insuficiente para fixar a quantia devida, incumbe ao juiz completá-la mediante indagação oficiosa, ordenando, designadamente, a produção de prova pericial.

O que isto quer dizer é que não sendo a prova produzida pelas partes suficiente para proceder à liquidação do crédito em causa, deverá o julgador levar a efeito a prossecução de tal objectivo oficiosamente ultrapassando a situação non liquet com a produção de prova suplementar que julgue adequada para o efeito (nomeadamente a pericial), e se mesmo depois não for, possível atingir tal desiderato, deverá sempre, então, e a final, julgar de acordo com a equidade, ou seja, fazendo um julgamento ex aequo et bono – neste sentido, entre outros, Ac. da R. Porto de 20/9/01, CJ, Ano XXVI, t. 4, pág. 194/195, da R. De Coimbra de 5/3/02, CJ, Ano XXVII, t. 2, pág. 7 -.
Neste caso, como vem sendo entendimento dominante da jurisprudência, não só as regras do ónus da prova não funcionam (no sentido de que a insuficiência da prova pelo credor teria como consequência a fixação do crédito apenas no montante provado, com a improcedência da parte restante), como também nunca poderá o incidente de liquidação vir a ser julgado improcedente, por falta de prova.

Ora, a Mmª Juíza e quanto aos rendimentos que os autores deixaram de auferir pelo facto de estarem impedidos de acederem ao prédio, não necessitava de ordenar qualquer perícia, pois a prova produzida em audiência foi suficiente.
Refere a Mmª Juíza na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, e analisando criticamente os depoimentos, que os autores deixaram de produzir pelo menos 3 pipas de vinho tendo deixado de auferir € 1500,00 (em três anos); que deixaram de auferir pelo menos € 600,00 pelo facto de não produzirem batata, e deixaram de auferir € 600,00 por não terem produzido milho.
O que acontece nos presentes autos é que a Mmª juíza não podia chamar à colação a equidade para a resposta ao quesito 1º, o que é outra questão.
E assim há que efectivamente assinalar um erro na resposta ao referido quesito e isto porque, conforme decorre do disposto no artigo 653º do Código de Processo Civil, na decisão sobre a matéria de facto o tribunal declarará quais os factos que considera provados e os que considera não provados.
A decisão sobre a matéria de facto e a sentença correspondem a momentos distintos.
Na resposta à matéria de facto exige-se que o tribunal indique os factos que julga provados, analisando criticamente as provas.
Se bem que a Mmª Juíza tivesse feito uma análise crítica das provas e explicasse por que razão concluiu que os autores tiveram prejuízos e o seu montante, responde posteriormente calculando os prejuízos como se estivesse já na fase da sentença e responde que os autores sofreram um prejuízo de € 5.000,00.

Em primeiro lugar não é possível a resposta tal qual ela foi dada, uma vez que a mesma excede o âmbito do facto quesitado.
Em segundo lugar, a Mmª Juíza tal como descreveu na decisão sobre a matéria de facto tinha todos os elementos para decidir sobre a matéria de facto, não necessitando de socorrer-se de qualquer outro elemento de prova.

Retornando à matéria de facto, tendo em consideração o que consta da fundamentação e da inquirição de testemunhas, é possível responder ao quesito sem ultrapassar o facto quesitado.
Assim, ouvida toda a prova produzida não vemos que a decisão sobre a matéria de facto deva ser alterada, a não ser a redacção que consta da referida resposta.

Efectivamente, resulta da inquirição das testemunhas, que foi efectuada no local, quais os rendimentos que anualmente era possível colher no prédio.
Nos rendimentos está englobado aquilo que se produz e o que se gasta para produzir , representando os mesmos os lucros.
E por isso a resposta que deve ser dada ao respectivo artigo é que “em consequência do referido em d) os autores deixaram de retirar um rendimento agrícola diário do prédio de, pelo menos, € 2,5”.
Quanto ao prejuízo sofrido pelo facto de estarem impossibilitados de procederem à venda do prédio, em consequência da actuação dos recorrentes é que a Mmª Juíza fez apelo à equidade.
E se concordamos que só por essa via é possível proceder à liquidação desse danos o certo é que o momento para a sua apreciação é o da sentença e não da resposta à matéria de facto.

Com efeito, se em sede de liquidação em execução de sentença se vier a constatar a impossibilidade de fixação do valor exacto dos danos a indemnizar, por falta de prova do seu quantitativo, tal impossibilidade não pode significar a eliminação do direito à indemnização, cabendo, então ao tribunal fixar a indemnização com recurso à equidade nos termos do artigo 566º, n.º 3 do Código Civil.

E assim, tendo em conta que até à data da entrada da liquidação – 2/06/2005 - e a data em que os autores ficaram impedidos de usarem o seu prédio 1 ano e sete meses - é liquidada a quantia de € 1.425,00, pela perde de rendimentos agrícolas.
A isto acresce a indemnização pelo facto de não poderem vender o seu prédio.
Como foi referido na sentença, só recorrendo à equidade, é que é possível liquidar a referida quantia.
Como aí consta, o período de privação do caminho corresponde ao início do período de crise do sector imobiliário, sendo certo que o facto de os autores estarem impedidos de proceder a qualquer obra de conservação no prédio, é determinante da sua desvalorização, e esse facto tem impedido a sua venda.
Deste modo não vemos razões para alterar o montante de € 2.500,00 fixados na sentença.

Atento o supra referido liquida-se em € 3.925,00 os prejuízos sofridos pelos autores.
Sobre esta quantia são devidos juros de mora desde a data da notificação para a oposição à liquidação.
E assim, procede parcialmente a apelação.
**
III – Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção, em julgar a apelação parcialmente procedente, nos seguintes termos: Julgam o incidente de liquidação parcialmente procedente, por parcialmente provado e, em consequência, liquida-se a indemnização a arbitrar aos autores no montante de € 3.925,00, acrescida de juros de mora nos termos acima expostos.
As custas do recurso, por recorrentes e recorridos na proporção de 2/3 e 1/3 respectivamente, e na 1ª instância, na proporção do decaimento.
Guimarães, 7/02/08