Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1587/03-1
Relator: ROSA TCHING
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
ACTO PESSOAL
NEGÓCIO MISTO
PARTILHA
FALTA DE RESPOSTA
QUESITOS
ANULAÇÃO DE JULGAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/15/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1ª- Acto de natureza pessoal para efeitos do disposto no artigo 610º do C. Civil, é aquele que verse sobre o estado das pessoas, acto estritamente ligado à pessoa do devedor, ainda que alguns dos seus efeitos possam ter natureza patrimonial.

2ª- A partilha de bens precedida de renúncia a doação feita por conta da quota disponível configura um negócio misto, que, para efeitos de impugnação pauliana, não pode deixar de ficar sujeito ao tratamento unitário de acto gratuito sempre que o valor dos bens doados exceda o valor dos bens partilhados.

3ª- A falta de resposta a um quesito, contendo matéria indispensável á boa decisão da causa constitui fundamento de anulação do julgamento, nos termos do art. 712º, n.º4 do C. P. Civil.

4ª- A contradição entre a decisão da matéria de facto e a fundamentação põe em causa aquela decisão, tornando-a obscura, o que de harmonia com o disposto no art. 712º, nº. 4 do C. P. Civil, implica a anulação do julgamento.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


"A", sociedade austríaca, com sede em Voegeisbergweg, Wattens, Áustria, intentou a presente acção, sob a forma de processo ordinário, contra "B", residentes no lugar de ... Barcelos, "C", residentes no Lugar da Igreja... Barcelos, "D", residentes no Lugar da ... Barcelos, e "E", pedindo que seja:
a) - declarada ineficaz, em relação à A, a rectificação à escritura de doação de 17.11.80, a partilha e a partilha em vida, operadas pela escritura de 04.06.98, lavrada no Cartório Notarial de Esposende, podendo, consequentemente, a A executar, no património do terceiro réu, a propriedade limitada pelo usufruto dos prédios referidos no artigo 1º da petição inicial;
b)- declarada ineficaz, em relação à A , a compra e venda da fracção autónoma identificada no artigo 2º da petição inicial, operada pela escritura de 19.11.98, lavrada no 1º cartório Notarial de Barcelos, podendo, consequentemente, a A executá-la no património da quinta ré.

Citados, os RR. contestaram, impugnando os factos articulados pela A, e concluindo pela improcedência da acção.

Foi proferido o despacho saneador, no qual se afirmou a validade e a regularidade da inastância, e foram elaboradas a matéria de facto assente e a base instrutória.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com observância de todo o formalismo legal, decidindo-se a matéria de facto controvertida pela forma constante do despacho de fls. 271, que não mereceu qualquer censura.

A final foi proferida sentença que julgou a presente acção procedente, por provada, e, em consequência, declarou impugnadas as doações e venda constantes dos factos provados n°s 4 e 11, efectuada pelos primeiros RR. aos RR. "B"; "C" e "D" e "E", respectivamente, reconhecendo-se à A., "A", o direito a executar, na medida do seu interesse, no património destes últimos, o seu crédito.
- Condenou os RR. no pagamento das custas.


Não se conformando com a decisão, dela, atempadamente apelaram os réus, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“l- Os Réus, ora apelantes, alegam na sua contestação que os bens doados ao Réu "B" com a declaração que o eram por conta das quotas disponíveis dos doadores, só o foi, para permitir que fossem dados como garantia hipotecária dos empréstimos que o mesmo iria contrair junto da banca e que esta só nessas condições é que faria o empréstimo.
2- Pois os doadores não queriam beneficiar nenhum filho em detrimento dos outros.
3- Por isso é que todos os interessados efectuaram essa correcção no acto da partilha, fls.4 da escritura de partilha.
4- Alegam ainda os Réus que os bens doados ao Réu "B" se encontravam hipotecados à banca e que as hipotecas são muito anteriores ao crédito da Autora, como, aliás, resulta da certidão da Conservatória do registo Predial de fls. 115 e segs.
5- Alegaram ainda que as hipotecas foram canceladas depois da partilha, como, aliás, também resulta da aludida certidão.
6- Alegaram os apelantes que o Réu "B" não efectuou nenhuma alienação dos bens doados, apenas fez a partilha com os demais herdeiros e, porque estes atribuíram um valor superior aos bens que lhe haviam sido doados, o Réu "B" preferiu receber dinheiro a ficar com bens pelos valores atribuídos pelos outros interessados.
7- Tais factos não foram levados à base instrutória, pelo que os apelantes reclamaram através do seu requerimento de fls. e, posteriormente na audiência de julgamento, tendo sido ambos os requerimentos indeferidos, como se constata do douto despacho de fls. 154 e da acta de fls. 269.
8- A referida matéria encontra-se vertida nos itens 7º a 24º da contestação e no seu entender tem interesse para uma correcta apreciação da causa.
9- Pelo que aqueles despachos violam o art° 511° do C. P. C..
10- A intervenção de um herdeiro na partilha, judicial ou extra-judicial, sobretudo sendo simultaneamente donatário, é um acto de natureza pessoal. O donatário, quer queira, quer não, terá que efectuar a partilha com os demais herdeiros. E verdade que não é o exemplo clássico de acto de natureza pessoal que se costume enunciar. Mas, que é de natureza pessoal, é.
11 - Os actos de natureza pessoal não podem ser objecto de impugnação pauliana - art° 610° do C. C..
12-Consta da escritura de partilha que o de cuius e sua esposa haviam feito doações por conta das suas quotas disponíveis tanto ao Réu Luís como ao "D" e que tais doações foram feitas naqueles termos "para não tolher a eventual obtenção de empréstimos junto das instituições bancárias, porquanto a sua vontade era que as mesmas fossem feitas por conta das legítimas dos respectivos donatários", fls.4 da mencionada escritura de fls.20 e seguintes dos autos.
13-Nos termos do disposto no art° 1365°, n°l do C. P. C., qualquer herdeiro legitimário pode requerer a licitação nos bens doados pelo inventariado e, se o donatário, seja ou não conferente, se não opuser, os bens regressam ao acervo da herança, podendo ir parar às mãos de qualquer interessado, que não o donatário.
14- Se em processo de inventário as coisas se podem passar da forma exposta, não se vê razão alguma para que nas partilhas extra-judiciais o donatário não possa abrir mão dos bens doados, quando os demais herdeiros legitimários atribuem aos bens doados valores superiores aos do donatário. Como aconteceu na partilha que se pretende impugnar.
15- E o resultado é o mesmo, quer se trate de doações por conta da legítima ou de doações por conta das quotas disponíveis dos doadores. Num e noutro caso, o donatário pode abrir mãos dos bens doados, recebendo dinheiro. E, tanto numa como noutra situação, o resultado para o eventual credor do donatário, é o mesmo. Aquele deixou de ter bens e passou a ter dinheiro.
16-Quer na partilha judicial, quer na partilha em vida, os quinhões hereditários do primeiro Réu foram preenchidos em dinheiro —alínea F) da matéria assente.
Daqui ressalta que o acto realizado pelo Réu "B" é um acto oneroso e não gratuito. Pois que abriu mão dos bens doados, mas recebeu dinheiro.
17- O acto oneroso só pode ser objecto de impugnação pauliana, se os intervenientes tiverem agido com má fé, como exige o art° 612° do C. C..
18-Ora, a Autora, não alegou e, fortiori, não provou que o Réu "B" e os demais herdeiros tenham agido de má fé, isto é, com consciência de que estavam a causar prejuízo à Autora.
19-Pelo que a partilha efectuada pelo Réu "B" com os demais herdeiros não está sujeita à impugnação pauliana.
20- As respostas aos n°.s l e 2 da base instrutória, no que respeita aos valores reais dos imóveis, é irrelevante para a decisão da presente causa, tanto mais que é um facto notório que nas partilhas amigáveis, tanto judiciais, como extra-judiciais, os valores atribuídos aos bens são os constantes do cadastro matricial e o valor das tornas recebidas são encontrados em função daqueles. Nunca os intervenientes atribuem aos bens e às tornas os valores reais. Como se disse, tal prática é um facto notório e os factos notórios não carecem de ser alegados nem provados -art° 514° C. P. C..
21-A venda da fracção, descrito na alínea J) da matéria assente é, obviamente um acto oneroso. Portanto, só está sujeito à impugnação pauliana se o credor vendedor e o terceiro comprador tiverem agido de má fé. Da resposta negativa ao n°5 e da resposta ao n°3,ambas da base instrutória, resulta de forma inequívoca que a Autora não logrou fazer a prova de que os Réus vendedores e a Ré compradora tenham agido de má fé ou com consciência de que o seu acto causava prejuízo à Autora.
22- Pelo que a referida venda não está sujeita a impugnação pauliana, nos termos do citado dispositivo legal.
23- A douta decisão recorrida violou o disposto nos art°.s 511°, 514° e 1365° do C.P. C. e ainda os art°.s 610° e 612° do C. C..

A final pede seja proferido despacho que admita na base instrutória a matéria constante dos itens 7º a 24º da contestação ou, quando assim se não entenda, revogada a douta decisão recorrida, absolvendo-se os Réus dos pedidos formulados pela apelada, como é de

A autora não contra-alegou.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:

Os factos dados como provados na 1ª instância são os seguintes:
1- Por sentença de 12.01.98, proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca Barcelos e já transitada em julgado, foram os primeiros réus condenados a pagar à autora a quantia de ATS (xelins austríacos) l 494 300,00 acrescida de juros de mora, à taxa legal, sobre cada uma das importâncias constantes das facturas mencionadas nos n°. 3) e 4) da mesma sentença e a partir de cada uma das respectivas datas - 19.05.93, 30.05.93 e 01.07.93, conforme documentos juntos a fls. 39 a 49 e 133 a 135 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
2- Por escritura lavrada em 17.11.80, no 1° Cartono Notarial de Barcelos, os pais do primeiro réu mando, Aires ... e "C", ora segunda ré doaram-lhe, por conta das suas quotas disponíveis e com reserva de usufruto, os seguintes prédios:
- Prédio misto sito no Lugar de Vilar, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo n° 202 e na respectiva matriz predial rústica sob o artigo n° 359 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob os n°s 103.618 do Livro B-217, 91.475 do Livro B-231 , 89.601do Livro B-226 e 45 de Minhotães (actualmente n° 00257 de Minhotães);
- Bouça de Vllar, de pinhal, eucaliptal e mato, ou Leira do Monte de Vilar ou Monte de Dentro, sito no Lugar do Monte de Dentro ou Vilar, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo n°. 385 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob os n°s. 40, 41, 42, 43 e 44 de Minhotães;
- Leira das Giestas ou Bouça de Vilar, de lavradio e pinhal, sito no Lugar de Vilar, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo n°. 367 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o n°. 103621 do Livro B-263;
- Campo de Vilar ou da Deveza, sito no Lugar de Vilar, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo n° 340 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o n°. 103620 do Livro B-263;
- Campo de Revolta ou Campo de Vilar, sito no Lugar de Vilar, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo n°. 354 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o N°. 103619 do Livro B-263;
- Cortelho das Lavadouras ou Campo de Vilar, sito no Lugar de Vilar, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo n° 361 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Barcelos sob o n° 91474 do Livro B-231.
3- O pai do primeiro réu marido, Aires ..., faleceu no dia 22.02.94, conforme documento constante de tis. 50 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
4- Os primeiros, a segunda, o terceiro e os quartos réus celebraram entre si, no dia 4 de Junho de 1998, no Cartório Notarial de Esposende, uma escritura de habilitação, partilha em vida, na qual começaram por rectificar a escritura de 17.11.80, no sentido de a doação em causa ser feita por conta da legítima do primeiro réu marido, conforme documento junto a fls. 17 a 32 e cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
5- Tendo os bens doados sido restituídos ao acervo da herança e à meação da segunda ré e, posteriormente, partilhados.
6- Sem qualquer contrapartida patrimonial para o primeiro réu.
7- Quer na partilha, quer na partilha em vida, os quinhões hereditários do primeiro réu marido foram preenchidos em dinheiro.
8- Os outorgantes, na mencionada escritura, atribuíram aos bens a partilhar os valores correspondentes aos respectivos valores patrimoniais, num total de Esc. 905.203$00 para os vinte imóveis.
9- O primeiro réu mando declarou ter recebido, a titulo de tornas, na partilha, a quantia de Esc. 113.151 $00.
10- E declarou ter recebido, a titulo de tornas, na partilha em vida, a quantia de Esc. 112.139$00.
11-Os primeiros réus e a quinta ré celebraram entre si, no dia 19 de Novembro de 1998, no 1° Cartório Notarial de Barcelos, uma escritura de compra e venda, pela qual os primeiros réus declararam vender à quinta ré, livre de ónus ou encargos e pelo preço de Esc. 2.500.000$00, a fracção autónoma "H" do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito em Vila Nova de Famalicão, na Avenida Dr. Carlos Bacelar, Lugar da Ribeira ou Sinçães, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo n° 1105, com o valor patrimonial de Esc. 2.445.768$00, e descrito na Conservatória do. Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o n° 75 da mesma freguesia, conforme documento junto a fls. 33 a 37 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
12- Tal fracção estava, à data da venda, livre de ónus ou encargos.
13- Tem a área de 44,2 m2.
14- A Sociedade "E" ora quinta ré, foi constituída em 1994 entre o primeiro réu marido e a primeira ré mulher, com o capital de Esc. 5.000.000$00, conforme documento de üs. 57 a 64 e cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
15- Por escritura lavrada no dia 19 de Novembro de 1998, no l ° Cartório Notarial de Barcelos, os primeiros réus cederam as suas quotas, representativas da totalidade do capital social da Sociedade quinta ré, a Domingos ... e Joaquim ..., conforme documento de fls. 65 a 70 e cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
16- O sócio e gerente da quinta ré, Joaquim ..., depôs, como testemunha arrolada pelos primeiros réus, na audiência de julgamento da acção declarativa de condenação que a autora contra eles intentou e que originou , a sentença referida na alínea l).
17- Tendo dito aos costumes ser empregado do réu, conforme documento junto a fls. 71 e 72 e cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.
18- Os valores patrimoniais, a preço de mercado, dos imóveis mencionados na escritura referida em 4), e descritos de l) a 6) da relação de bens de fls.27 a 32, ascendem aos montantes de 41.850.000$00, 1.800.000$00, 75.000$00, 630.000$00, 1.000.000$00 e de 50.000$00, respectivamente.
19-0 valor patrimonial, a preço de mercado, da fracção autónoma "H" a que alude a alínea 11) dos factos assentes ascendem ao montante de 3.500.000$00.


FUNDAMENTAÇÃO:

Como é sabido, o âmbito do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente – art. 660º, n.º2, 684º, n.º3 e 690º, n.º1, todos do C. P. Civil - , só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, ainda que outras, eventualmente, tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas. Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respectivamente.

Assim, as questões a decidir traduzem-se em saber se:

1ª- há lugar à anulação do julgamento com vista à ampliação da base instrutória;

2ª- a partilha é um acto sujeito á impugnação pauliana;

3ª- está, ou não, preenchido o requisito de má fé relativamente à venda efectuada.

I- Quanto á primeira das supra enunciadas questões, defendem os réus/apelantes que a matéria vertida nos itens 7º a 24º da contestação tem interesse para uma correcta apreciação da causa e, por isso, impunha-se que fosse levada à base instrutória.

Nos referidos artigos da sua contestação, alegaram os réus, em síntese, que os bens doados ao Réu "B" com a declaração que o eram por conta das quotas disponíveis dos doadores, só o foi, para permitir que fossem dados como garantia hipotecária dos empréstimos que o mesmo iria contrair junto da banca e que esta só nessas condições é que faria o empréstimo; os doadores não queriam beneficiar nenhum filho em detrimento dos outros; por isso é que todos os interessados efectuaram essa correcção no acto da partilha; os bens doados ao Réu "B" encontravam-se hipotecados à banca e as hipotecas são muito anteriores ao crédito da Autora; tais hipotecas foram canceladas depois da partilha; o Réu "B" não efectuou nenhuma alienação dos bens doados, apenas fez a partilha com os demais herdeiros e, porque estes atribuíam um valor superior aos bens que lhe haviam sido doados, preferiu receber dinheiro a ficar com bens pelos valores atribuídos pelos outros interessados.

A nosso ver e, em consonância com o já decidido pelo tribunal a quo (cfr. despacho de fls. 154 e de fls. 269) os factos referidos nenhum relevo assumem em termos de decisão da causa, sendo que no que respeita aos primeiros dos factos referidos, constata-se que os mesmos estão exarados na escritura de doação e partilha, junta a fls. 17 a 32 dos autos.
Todavia, mesmo que com isso, seja pretensão dos réus, provar que ao celebrarem aqueles negócios não quiseram lesar ou prejudicar a autora, a verdade é que, de harmonia com as regras gerais de repartição do ónus da alegação e prova estabelecidas no artigo 342º do C. Civil, não é a eles que incumbe tal alegação e prova,
É, antes, à autora que compete alegar e provar a má fé dos réus na celebração dos ditos negócios.
Assim, quer aqueles factos viessem a ser julgados provados, quer não, isso em nada alteraria o destino dado à presente acção.
Quer isto dizer que qualquer que fosse a decisão sobre os eventuais novos quesitos formulados com a matéria dos referidos artigos 7º a 24º da contestação, a solução do presente litígio, no que respeita á impugnação da doação e partilha, seria sempre a mesma.
Acresce que a necessidade de repetição do julgamento para ampliação da base instrutória, nos termos do art. 712º do C. P. Civil, depende da possibilidade de formulação de novos quesitos úteis à decisão final, o que não acontece no caso dos autos.
Daí não se justificar a anulação do julgamento.

Improcederem as 1ª a 9ª conclusões dos apelantes.

II- Relativamente à segunda questão, sustentam os réus/apelantes que a rectificação da doação feita ao réu, "B", bem como a partilha extrajudicial, não estão sujeitos à impugnação pauliana.
E isto pela seguintes razões:
1º- a intervenção do donatário, "B", na partilha é um acto de natureza pessoal;
2º- na partilha efectuada, o réu "B" abriu mãos dos bens doados mas, em contrapartida, recebeu dinheiro e, por isso, trata-se de um acto oneroso;
3º- A autora não alegou a má fé deste réu nem dos demais herdeiros na partilha

Cumpre, assim, definir a natureza dos actos em causa, afim de se poder concluir pela sua impugnabilidade.
Exige o artigo 610º do C. Civil, como requisito da impugnação pauliana, que o acto praticado pelo devedor não seja de natureza pessoal.
Contudo, acto de natureza pessoal, não é sinónimo de acto que implica a intervenção de uma pessoa, tal como parecem defender os apelantes, significando, antes, acto que verse sobre o estado das pessoas, acto estritamente ligado à pessoa do devedor, independentemente da natureza patrimonial de alguns dos seus efeitos.
No dizer de Menezes Cordeiro In, “Obrigações”, 1980, 2º, pág. 490., «A expressão “que não sejam de natureza pessoal” tem o mérito de não excluir, da pauliana, todos os actos não patrimoniais, antes afastando também, os actos que, sendo patrimoniais, estejam no entanto, estritamente ligados á pessoa do devedor».
Assim, por exemplo, não são susceptíveis de impugnação um acto de perfilhação, a adopção e o casamento, ainda que deles resultem encargos de ordem patrimonial Neste sentido, vide Pires de Lima e Antunes Varela, in, “Código Civil, Anotado”, vol. I, 3ª ed. revista e actualizada, pág. 595..
E, porque nem a doação nem a partilha revestem tal natureza, daí a sem razão dos apelantes.

Averiguando, agora, da onerosidade ou gratuitidade dos negócios em causa, diremos, desde logo, não restarem dúvidas que a partilha, judicial ou extrajudicial, é um acto oneroso para efeitos do art. 612º do C. Civil e daí ser também exigida a má fé, consistente na consciência bilateral (devedor e terceiro) de prejuízo para o credor Neste sentido, vide, entre outros, o Ac. do STJ, de 20.2.1990, in, AJ, 6º/90, pág. 11..
E que, contrariamente, a renúncia à dispensa de colação não exige a verificação deste último requisito, pois que está sujeita a impugnação pauliana no regime aplicável aos actos gratuitos Neste sentido, vide, Francisco Pereira Coelho, in, “A Renúncia Abdicativa”, in, “Studia Iuridica, n.º8, Coimbra Editora, pág. 155 e segs..

Ora, o que se verifica nos presentes autos é que, através da escritura pública de 4 de Junho de 1998, os primeiros, segunda, o terceiro e quartos réus começaram por rectificar a escritura de 17.11.80, no sentido de a doação feita ao 1º réu pelos seus pais e por conta das respectivas quotas disponíveis passar a ser feita por conta da legítima do primeiro réu marido, e que, uma vez restituídos todos os referidos bens doados ao acervo da herança e à meação da segunda ré, sem qualquer contrapartida patrimonial para o 1º réu, foram os mesmos, posteriormente, partilhados.
Constata-se, assim, que a um negócio oneroso (partilha) se associou uma disposição gratuita dos bens doados, pelo que importante se torna indagar qual o tratamento jurídico a dar a tal situação.

Mas, para tanto, importa ainda esclarecer o significado e o alcance a dar à dita alteração de doação feita por conta da quota disponível para doação por conta legítima.

Conforme ensina, Lopes Cardoso Neste sentido, vide, António Lopes Cardoso; in, “Partilhas Judiciais”, vol. II, 3ª ed., pág.353 e nota 2342. , tanto vale dizer que a doação é feita por conta da quota disponível como dispensar expressamente a colação, sendo que, neste caso, “há da parte do testador a manifestação de vontade no sentido de beneficiar o donatário e este nada confere, sem prejuízo de a doação poder vir a ser reduzida por inoficiosidade”.
Na doação feita por conta da legítima, “o doador não atribui ao donatário qualquer prevalência quantitativa em relação aos demais descendentes seus; apenas lhes antecipa a quota hereditária no todo ou em parte, preenchendo-a com os bens doados; assim o donatário haverá de conferir todo o objecto da doação”.
Verifica-se, assim, que tendo os bens supra identificados no n.º2 sido doados ao 1º réu pelos seus pais e por conta das respectivas quotas disponíveis, tal significa que esses mesmos bens ficam a pertencer, desde logo, ao 1º réu donatário, pois que os doadores dispensaram-nos da colação. (cfr. arts. 2113º, n.º1 e 2114, n.º1 do C. Civil).
Na verdade, a doação tem por efeito a imediata transferência dos bens doados – art. 954º, al. a) do C. Civil -, pelo que o 1º réu donatário, ficou, desde logo, dono desses mesmos bens.
Segundo Pires de Lima e Antunes Varela In, “Código Civil, Anotado”, Vol. II, pág. 188. e Batista Lopoes In, “Doações”, pág. 85., a doação é um contrato de eficácia real, no sentido de que a transferência da propriedade ou da titularidade do direito se verifica em consequência do próprio contrato e dele nasce, consequentemente, para o doador a obrigação de entregar a coisa.
E ainda que, na hipótese de a doação por conta da quota disponível ser inoficiosa, por ofender a legítima Isto é, a parte de que o “de cujus” não pode dispor (art. 2156º do C. Civil). dos demais herdeiros legitimários (no caso, terceiro e quarto réus ) – cfr. art. 2168º do C. Civil - , tal doação possa ser objecto de redução, a verdade é que, só haverá lugar à redução na medida estritamente necessária para garantir a legítima dos demais herdeiros legitimários não donatários Neste sentido, vide, Capelo de Sousa, in, “Lições”, vol. II, pág. 313 e segs..
Vê-se, assim, que o 1º réu ao abrir mão dos bens que lhe foram doados por conta da quota disponível dos doadores, permitindo, deste modo, que tais bens fossem restituídos ao acervo da herança do de cujus (doador) e à meação da segunda ré (também doadora), sem qualquer contrapartida económica, praticou disposição gratuita.
E a natureza gratuita deste negócio, em nosso entender, mantém-se inalterada não obstante a circunstância de os referidos bens doados virem a ser objecto de partilha com os demais bens dos referidos doadores, pois que, no caso dos autos é até gritante o desfasamento entre o valor real dos bens doados ao 1º réu (cujos valores patrimoniais, a preço de mercado, ascendem aos montantes de 41.850.000$00, 1.800.000$00, 75.000$00, 630.000$00, 1.000.000$00 e de 50.000$00) em relação ao valor recebido por aquele mesmo réu em consequência das partilhas ( Os outorgantes, na mencionada escritura, atribuíram aos bens a partilhar os valores correspondentes aos respectivos valores patrimoniais, num total de Esc. 905.203$00 para os vinte imóveis, tendo o primeiro réu marido declarado ter recebido, a titulo de tornas, na partilha, a quantia de Esc. 113.151 $00 e, a titulo de tornas, na partilha em vida, a quantia de Esc. 112.139$00).
No fundo, sempre se estaria perante um negócio misto, que, para efeitos de impugnação pauliana, não pode deixar de ficar sujeito a um tratamento unitário, aplicando-se o regime de acto gratuito Neste sentido, vide, Vaz Serra, “Responsabilidade Patrimonial”, in, BMJ, n.º 75, pág. 269, nota 405. .
Daí que não carecer a autora de alegar e provar a má fé dos réus , pois que este requisito não é exigido relativamente aos actos desta natureza.

Improcedem, também, as 13ª a 19ª conclusões dos apelantes.


III- Relativamente á terceira questão, argumentam os réus/apelantes, por um lado, que, sendo um acto oneroso, a venda da fracção descrita na alínea J) da matéria assente só está sujeito à impugnação pauliana se o credor vendedor e o terceiro comprador tiverem agido de má fé.
E, por outro lado, que da resposta negativa ao n°5 e da resposta ao n°3, ambas da base instrutória, resulta de forma inequívoca que a Autora não logrou fazer a prova de que os Réus vendedores e a Ré compradora tenham agido de má fé ou com consciência de que o seu acto causava prejuízo à Autora.

Vejamos, então, se a má fé presidiu, ou não, no momento da outorga da escritura de compra e venda da fracção autónoma.”H”, onde o 1º e a 5º réus aparecem, respectivamente, como vendedor e compradora.

A este respeito, a sentença recorrida julgou a acção procedente, por ter dado por provada a existência de má fé por parte dos réus, entendida esta como a “consciência do prejuízo que o acto causa ao credor”.
E alicerçou tal conclusão nas seguintes permissas: “Ora, se resultou provada a existência de relações de parentesco entre os primeiros RR - devedores - que são marido e mulher, logrou igualmente adesão de prova que, à data da constituição da dívida eram eles os sócios da R., "E", pelo que, dúvidas não podem restar de que conheciam a existência da sua própria dívida para com a A., o mesmo sucedendo com, pelo menos, com uma das pessoas para a qual transmitiram as quotas q[ue possuíam nessa sociedade - o Joaquim... -, através de escritura celebrada na mesma data em que alienaram o imóvel em questão, que depôs como testemunha na audiência de julgamento da acção declarativa de condenação que a autora contra eles intentou e que originou , a sentença referida na alínea l), tendo sido arrolada pelos primeiros réus e, declarando, na ocasião ser empregado do réu”.

A verdade, é que, no caso em apreço, constata-se que nos quesitos 3º, 4º e 5º da base instrutória, pergunta-se, respectivamente, se:
- “ Ao alienarem a fracção autónoma “H” a que alude a alínea J) dos factos Assentes, os primeiros réus agiram com consciência do prejuízo que o seu acto causa à autora ?”
- “O valor de mercado da dita fracção é quatro vezes superior ao preço declarado pelas partes?”
- “Também a sociedade compradora e ora Quinta ré agiu com consci~encia do prejuízo que o acto causa á autora?”.

Conforme, se vê do despacho proferido a fls. 271, os dois primeiros quesitos mereceram a seguinte resposta conjunta “ Provado que o valor patrimonial, a preço de mercado, da fracção autónoma “H” a que alude a alínea J) dos Factos Assentes ascendem ao montante de 3.500.000$00”, merecendo o quesito 5º resposta negativa.
E o Tribunal a quo fundamentou tais respostas da seguinte forma: “A convicção positiva do tribunal no que concerne às respostas positivas dadas aos quesitos baseou-se no exame pericial de fls. 164 e segs.
Com relação à materialidade tida como não provada, alicerçou o tribunal a sua convicção negativa na ausência de prova, em audiência, tendente a permitir concluir pela sua verificação”.

Mas se assim é, então, teremos de concluir de tudo o que se deixou exposto, que a resposta dada conjuntamente aos quesitos 3º e 4º da base instrutória, abarcou tão somente a matéria vertida no quesito 4º, deixando sem resposta (afirmativa ou negativa) a matéria contida no quesito 3º, sendo certo que, neste caso, tal falta de resposta e por tratar-se de matéria indispensável à boa decisão da causa Na verdade, nenhum obstáculo existindo a que se quesite directamente, na acção de impugnação, se houve consciência do prejuízo causado ao credor. Neste sentido, vide, Ac. do STJ, de 15.2.2000, in, CJ/STJ, ano VIII, tomo I, pág. 91. , daria sempre lugar á anulação do julgamento, nos termos do art. 712º, n.º4 do C. P. Civil Vide, neste sentido, Acs da Relação de Coimbra, de 12.2.1985, in, BMJ, n.º 344, pág. 472 e da Relação de Évora, de 4.2.1993, in, BMJ, n.º 424, pág. 758. .
Acresce que, face a tal resposta restritiva- “Provado que”-, mas que não abarcou nenhuma da matéria perguntada no quesito 3º, fica-se sem saber se é o Mmo juiz a quo considerou não provada a matéria do referido quesito 3º, ou simplesmente e, por mero lapso motivado pela associação daquele quesito ao 4º , se esqueceu de responder a essa mesma matéria.
E esta dúvida acabada de enunciar suscita-se ainda com maior evidência face á conclusão extraída na sentença recorrida e elaborada pelo mesmo juiz que procedeu a tais respostas no sentido de que “ houve má fé da parte dos primeiros e da quinta R., ao intervirem na referida venda. E, nesta medida, está demonstrado que tal acto (venda) foi feita dolosamente com o fim de impedir a realização do direito do credor dos primeiros RR.- a A”..
De igual modo, impõe-se salientar que esta mesma conclusão (extraída com base na matéria dada como assente nas alíneas O), P) e R) e supra descrita sob os n.ºs 15º, 16º e 17º) colide com as respostas dadas aos quesito 3º e 5º da base instrutóra.
E ainda que, em nosso entender, não se trate de verdadeira contradição entre a factualidade dada como provada, pois que a resposta dada ao quesito 3º e a resposta negativa ao referido artigo 5º revelam apenas que a matéria neles vertida se não provou, a verdade é que a enunciada “contradição” não deixa de por em causa as respostas dada a tais, suscitando dúvidas sobre as respostas dadas aos referidos quesitos e afectando-as de obscuridade..
Torna-se, assim, evidente que a aludida contradição torna as respostas aos artigos 3º, 4º e 5º obscuras.
E apesar de no caso presente não ser possível, em sede de recurso, um reexame e consequente correcção da decisão da matéria de facto, quer porque nenhuma das partes interpôs recurso da decisão da matéria de facto, quer porque nem houve gravação dos depoimentos das testemunhas, a verdade é que existe sempre a possibilidade de anulação da referida decisão, nos termos do citado art. 712º, n.º4, conducente a uma ulterior apreciação dos factos pela instância recorrida.
Na verdade, segundo este dispositivo legal, “(...) pode a Relação anular, mesmo oficiosamente, a decisão da 1ª instância, quando repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou quando considere indispensável a ampliação desta (...)”.

DECISÃO:

Pelo exposto, julga-se a a apelação parcialmente procedente e, consequentemente:

1º Confirma-se a sentença na parte em que declarou impugnada a rectificação da escritura de doação de 17.11.80, a partilha e a partilha em vida, operadas pela escritura de 04.06.98, lavrada no Cartório Notarial de Esposende, reconhecendo, á A o direito de executar, no património do terceiro réu, a propriedade limitada pelo usufruto dos prédios referidos no artigo 1º da petição inicial;

2º- Nos termos do artigo 712º, nº.4 do C. P. Civil, anula-se parcialmente o julgamento relativamente às respostas aos quesitos 3º, 4º e 5º e a sentença na parte respeitante ao pedido formulado pela A sob a alínea b) da petição inicial.

Custas, em ambas as instâncias, a cargo dos réus, na proporção de 1/2, ficando o restante ½ a cargo da parte vencida a final.