Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2725/07-1
Relator: GOMES DA SILVA
Descritores: JUSTO IMPEDIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/21/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: 1. A situação incidental de verificação de justo impedimento só ocorrerá perante a normal imprevisibilidade de um evento, estranho à vontade da parte, que determine a impossibilidade da prática do acto no prazo peremptório/legal, pela parte ou seu mandatário.
2. À parte interessada cabe alegar e provar a sua falta de culpa, por ter ocorrido caso fortuito ou de força maior impeditivo.
3. Sendo o evento susceptível de previsão, em face da normal experiência e cuidado, se ela não tomou cautelas contra a possibilidade da sua verificação, sucumbirá na pretensão.
Decisão Texto Integral: ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:


I –

INTRODUÇÃO

1. Aos 2006.10.09, MASSA FALIDA DE D..., LDA fez intentar acção declarativa e condenatória, com processo comum, sob a forma ordinária, contra B... PORTUGUÊS, S. A. e I... IMOBILIÁRIA, S. A. .

2. Na sequência de invocação de apresentação de pedido para apoio judiciário na Segurança Social de Braga e após informação de tal entidade (2007.05.30), no sentido de que aquele fora desatendido por decisão de 2006.12.19 – após averiguação do Tribunal (2007.03.12), veio a prolatar-se decisão no sentido da verificação de justo impedimento quanto ao pagamento da taxa de justiça, entretanto paga.
3. Inconformado, dela agravou o 1º R., tendo apresentado leque conclusivo.
Nada foi contra-alegado.

4. Sustentado o agravo, cumpre apreciar e decidir.

II –

FACTICIDADE

A materialidade é a acima sumariamente exposta, tão pouco descriminada como suporte da falada decisão, mas espelhada de fls. 26 a 31.

III –

JURISCIDADE

1.
a)
É pela censura trazida pelo Agravante que se define o objecto e o âmbito do recurso (arts. 684-nº3 e 690º-nº1 CPC).

b)
As questões jurídicas suscitadas no agravo reconduzem-se ao seguinte:
- não foi alegada nem apurada factualidade integradora de justo impedimento;
- tendo a Agravada pago e junto a taxa de justiça seis meses após a notificação da decisão de desatendimento do apoio judiciário, nunca poderia obter provimento …
2.
a)
O acesso ao Direito e aos Tribunais está garantido no art. 20º da Constituição da República: ”a todos é assegurado o acesso ao Direito e aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a Justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”.
Esse normativo visa promover a todos os cidadãos o acesso à Justiça, especialmente por parte daqueles que, por via da sua condição económica e sócio-cultural, mais dificuldades enfrentarão para poderem estar em juízo a conhecer, fazer valer ou defender os seus legítimos direitos.
A Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro, dá conteúdo a essa exigência fundamental, estabelecendo um sistema de protecção jurídica que envolve, para além da dispensa, total ou parcial, da taxa de justiça e demais encargos do processo, a nomeação de patrono e o pagamento de honorários ou, alternativamente, o simples pagamento de honorários do patrono já escolhido pelo impetrante (cfr. art. 15º).
A decisão sobre a atribuição de tal vantagem processual está actualmente cometida (excepto quanto aos pedidos deduzidos em processo penal – cfr. Ac. R. Porto, de 2002.04.17, CJ II/240), ao dirigente máximo dos serviços de Segurança Social da área da residência do requerente (art. 21º da dita Lei).
A questão incidental será, pois, deferida a quem nisso mostrar interesse, formalize devidamente a sua pretensão, preencha os respectivos requisitos e comprove no processo que tal vantagem lhe foi legalmente atribuída.
Quanto à sua dedução, ocorre o seguinte: ou o requerente pede a nomeação, através do O. A. do advogado de escala, porque tão débil é a sua condição económica que nem sequer se abalançou a consultar um e a obter dele o respectivo assentimento (abrangendo aquele benefício, então, o acto de nomeação, para além da dispensa de preparos e outros encargos) ou, confiando no que seleccionou e contactou previamente, apenas carece da ajuda do Estado para acorrer ao pagamento dos consequentes honorários. Das duas modalidades de apoio, a segunda é mais restritiva, limitando-se ao aspecto económico do pagamento do trabalho jurídico da pessoa cuja nomeação se não defere à entidade encarregada de promover o acesso à justiça.
O prazo que estiver em curso interrompe-se com a junção aos autos do documento comprovativo de apresentação do requerimento com que é promovido o procedimento administrativo ou, ao menos, com a sua invocação (cfr. art. 24º-nºs 4 e 5); esse prazo reinicia-se a partir da notificação ao patrono nomeado da sua designação ou a partir da notificação ao requerente da decisão de indeferimento do pedido de nomeação de patrono.
No caso de pagamento de honorários a patrono já escolhido (em que se pressupõe que a parte já tem o seu patrono judicial - pois que o indica, decerto que depois de conhecer a bondade e consistência da sua pretensão - e que esse advogado teve oportunidade de medir a problemática do litígio), está em jogo apenas o pagamento dos honorários que vierem a ter-se por devidos, no âmbito dessa modalidade de apoio judiciário, que pressupõe a constituição de verdadeiro mandato, só que não documentado (arts. 1161º e 1178º CC).

c)
Notificada a decisão que desatenda o pedido, a parte dispõe do prazo geral para proceder ao acto que se lhe imponha efectivar no processo, alargado até trinta dias no caso de haver de intentar acção (cfr. 33º).
No caso da não pagamento comprovação do pagamento a taxa de justiça inicial, no prazo de dez dias, cumpre à respectiva secção elaborar a parte da liquidação da correspondente multa, acrescida da taxa de justiça em falta, notificando-a devidamente, sob a sanção da extinção da instância.

3.
a)
Para que se verifique justo impedimento, tal como ressalta da formulação legal do art.° 146° do CPC, impõe-se que o evento que obste à prática atempada do acto não seja imputável à parte nem ao seu mandatário; assim, é exigível às partes/mandatários que procedam com a diligência normal, perante factos e circunstâncias previsíveis, do dia a dia ou não excepcionais.
Conforme Rodrigues Bastos (Notas ao CPC, 1°/321), na sua anterior redacção, o n.° 1 deste art° 146 definia o justo impedimento como o evento normalmente imprevisível, estranho à vontade da parte, que a impossibilite de praticar o acto, por si ou por mandatário, definição essa que levava a doutrina a restringir a respectiva previsão legal aquelas hipóteses em que “a pessoa que devia praticar o acto foi colocada na impossibilidade absoluta de o fazer, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto, independente da sua vontade, e que um cuidado e diligências normais não fariam prever.
Porém, a Reforma de 1995 contrapôs a essa quase responsabilidade pelo risco uma definição conceptual de justo impedimento muito mais flexível, em termos de permitir à jurisprudência a elaboração, densificação e concretização centradas essencialmente na ideia de culpa, que se afastou da excessiva rigidificação que muitas decisões, proferidas com base na definição constante da lei em vigor, inquestionavelmente revelam (cfr. Relatório); assim, perscutar-se-á o justo impedimento, desde que se esteja perante a normal imprevisibilidade do evento, por outro lado estranho à vontade da parte (não se pode venire contra factum proprium) e, finalmente, que determine a impossibilidade da prática do acto no prazo legal pela parte ou mandatário (deve verificar-se entre o evento imprevisível e a impossibilidade da prática tempestiva do acto uma relação de causa e efeito).
Assim, nem pode falar-se de justo impedimento quando, apesar de um acontecimento, normalmente imprevisível, o acto deva ser praticado pela parte ou pelo mandatário usando a diligência normal.
Na verdade, o justo impedimento constitui uma derrogação da regra da extinção do direito pelo decurso de um prazo peremptório (cfr. art. 145º-nº 3 CPC). Serve de válvula de escape ao sistema decorrente da extinção do direito de praticar o acto na sequência do decurso do prazo peremptório (cfr. A. Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, págs. 76- 77).
O novo conceito de justo impedimento faz apelo, em derradeira análise, ao meio termo de que falava Vaz Serra (RLJ/109°-267): deve exigir-se às partes que procedam com a diligência normal, mas já não é de lhes exigir que entrem em linha de conta com factos e circunstâncias excepcionais.
Segundo J. Lebre de Freitas (CPC Anot., 1º/257), a nova redacção introduzida no n.º 1 do art.º 146.º visou a “flexibilização de modo a permitir abarcar situações em que a omissão ou o retardamento da parte se haja devido a motivos justificados ou desculpáveis que não envolvam culpa ou negligência séria”; daí que, “à sua luz, basta para que estejamos perante o justo impedimento, que o facto obstacularizador da prática do acto não seja imputável à parte ou ao mandatário, por ter tido culpa na sua produção. Tal não obsta à possibilidade de a parte ou o mandatário ter tifo participação na ocorrência, desde que, nos termos gerais, tal não envolva um juízo de censurabilidade”. “Passa assim o núcleo do conceito de justo impedimento da normal imprevisibilidade do acontecimento para a sua não imputabilidade à parte ou ao mandatário… cabendo à parte que não praticou o acto alegar e provar a sua falta de culpa”.”Deixou, portanto a lei de fazer qualquer exigência a respeito da normal imprevisibilidade do evento, estranho à vontade da parte, para se centrar apenas na não imputabilidade à parte nem aos seus representantes ou mandatários pela ocorrência do obstáculo que impediu a prática do acto”.
Ainda sobre o novo conceito de justo impedimento, escreveu-se no STJ, de 2002.07.17: ”É certo que actualmente, à luz do art. 146º-n°1 do CPC (…) que releva decisivamente para a sua verificação, mais do que a ocorrência de um evento totalmente imprevisível ou em absoluto impeditivo, é que o evento que impediu a prática atempada do acto não seja imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, ou seja, que inexista culpa do sujeito requerente do acto, ou de seu representante ou mandatário, culpa essa a valorar “em consonância com o critério geral estabelecido no n° 2 do art. 487.° do CC, e sem prejuízo do especial dever de diligencia e organização que recai sobre os profissionais do foro no acompanhamento das causas”.
De tudo isto se conclui que um evento previsível pode agora excluir a imputabilidade do atraso ou da omissão; e que a parte interessada não pode beneficiar da excepcionalidade do conceito de justo impedimento quando tenha havido da sua parte negligência, culpa ou imprevidência. Na verdade, se o evento era susceptível de previsão e ela se não acautelou contra a possibilidade da sua verificação, sucumbirá na pretensão; acresce caber-lhe alegar e provar a sua falta de culpa, isto é, a ocorrência de caso fortuito ou de força maior impeditivo (cfr. art. 146º-nº 2 e 799º-nº1 CC). Decisivo para a verificação do justo impedimento é a inexistência de culpa da parte, seu representante ou mandatário no excedimento ou ultrapassagem do prazo peremptório, sem prejuízo do especial dever de diligência e de organização que recai sobre os profissionais do foro no acompanhamento das suas causas (cfr. Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 125)

b)
Reanalisemos o caso dos autos.
Na petição apresentada, por via electrónica, aos 2006.10.09, a Agravada, em I/I, invocou ter requerido na Segurança Social apoio judiciário na modalidadae de dispensa total do pagamento de taxa de justiça e demais preparos, como teria aduzido no doc. nº 7.
Aos 2007.05.30, respondendo ao ordenado aos 2007.03.12, a SS veio informar que fora indeferido, por despacho de 2006.12.19, o pedido feito por aquela.
Notificada para se pronunciar sobre tal questão, a Recorrida, aos 2007.06.20, a propósito da comprovação do pagamento da taxa de justiça inicial, aduziu haver-lhe sido transmitida, na pessoa do administrador da Massa Insolvente, a decisão da SS, em Dezembro de 2006: uma no sentido do deferimento, outra no do indeferimento -reportando-se, claramente, aos dois documentos que juntou de fls. 27 a 31 – bem ao contrário, ambos no unívoco sentido do indeferimento, com data de 2006.12.21, sem que haja qualquer pretensa rectificação, pois que o texto é absolutamente igual; e acrescentou que o Sr. Administrador de Insolvência julgou tratar-se de uma notificação repetida, suposta causa do lapso de que se limitou a requerer lhe seja relevada a falta cometida, omitindo a indicação de outra prova.
A decisão de fls. 32, julgando verificada a situação de justo impedimento, admitiu como tempestiva a junção da taxa de justiça, por considerar a normal diligência de qualquer mandatário, parecendo que o ocorrido se revela perfeitamente compreensível, não sendo censurável a actuação do mandatário.
Porém, acontece que, por um lado, só com excessiva complacência pode haver-se por propriamente deduzida a verificação do justo impedimento, tão deficiente é concretização da pretensão, relativamente aos pressupostos acima enunciados; por outro, o “lapso” foi sempre corporizado e assumido pelo Administrador da Massa Insolvente, que não reportado a actuação do mandatário; finalmente, perante a inequívoca redacção dos ditos documentos, nunca se poderia falar de existência de indícios propiciadores da verificação de equívoco atendível, por excluidor de violação do dever de diligência mínima - em face de razoável leitura, até porque estão datados do mesmo dia (21 de Dezembro de 2006 – ou seja, quase seis meses antes da prática do acto: pagamento da taxa de justiça) – e, pois, de culpa do dito Administrador, sequer (cfr. fls. 21).
Pelo contrário, perante as provas proporcionadas, ao julgador então só restava haver por improcedente o pedido – sendo certo que incumbia à Agravada a prova dessa matéria - cumprindo-se o demais preceituado no art. 690º-B) CPC.

IV –

DECISÃO

É por isso que se julga:

1. atendido o recurso e

2. revogada a decisão sub judicio.


Custas pela sucumbente.


Guimarães, 2008.02.21