Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
202/10.1TBPTB-E.G1
Relator: MOISÉS SILVA
Descritores: INVENTÁRIO
RELAÇÃO DE BENS
RECLAMAÇÃO
FACTO NOVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/11/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: O interessado que reclamar contra a relação de bens apresentada em processo de inventário deve indicar logo a prova. Todavia, se surgirem factos novos de que o reclamante só tomou conhecimento após aquela reclamação, pode, em relação a estes, indicar e produzir nova prova para exercer o contraditório e garantir o princípio da verdade histórica (também chamada material).
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I - RELATÓRIO

Apelante: Teresa … (requerente).
Apelados: Alfredo … (cabeça de casal).

Tribunal Judicial de Ponte da Barca

1. Em 29.04.2013, foi proferido o despacho judicial seguinte: requerimento que antecede: as testemunhas a inquirir para efeitos da decisão a proferir quanto à reclamação apresentada são as que foram oportunamente indicadas aquando da apresentação da reclamação e não quaisquer outras indicadas em rol adicional.
Na verdade, dispõe o n.° 1 do art.º 1348.° do Código de Processo Civil que “apresentada a relação de bens, são os interessados notificados de que podem reclamar contra ela, no prazo de 10 dias, acusando a falta de bens que devem ser relacionados, requerendo a exclusão de bens indevidamente relacionados, por não fazerem parte do acervo a dividir, ou arguindo qualquer inexatidão na descrição dos bens, que releve para a partilha”.
E, nos termos do preceituado no art. 1334.° do mesmo Código de Processo Civil, é aplicável à tramitação dos incidentes do processo de inventário, não especialmente regulados na lei, o disposto nos artigos 302.° a 304.° do mesmo diploma legal.
A tramitação dos incidentes é, por natureza, simplificada, devendo, nos termos dos normativos preditos, toda a prova ser junta com os articulados.
Aliás, neste exato sentido, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra datado de 25.05.2004, disponível em www.dgsi.pt em que se afirmou: não assiste ao reclamante (de bens) o direito de resposta (por via de requerimento) à resposta apresentada pelo c.c. à reclamação feita por aquele contra a relação de bens pelo último apresentada, devendo o reclamante indicar ou oferecer, com a sua reclamação, os meios de prova que entenda serem necessários para fazer valer a sua pretensão, sob pena de preclusão desse direito.
No caso em apreço, o requerimento de prova testemunhal apresentado em momento ulterior pela interessada Teresa não foi, conforme se aventa do predito, contemporâneo da reclamação. Em face do exposto, não poderá o mesmo ser considerado pelo Tribunal, pois que ficou precludido tal direito.
Em face do exposto e não obstante os motivos invocados, sendo certo que o Tribunal já procedeu ao início da produção de prova testemunhal há mais de um ano - a saber, em 07.03.2012, conforme se retira do teor de fis. 272 - e que a natureza do presente incidente se pretendeu simplificada, indefere-se, expressamente, o requerido adicionamento ao rol inicial de testemunhas apresentadas pela interessada reclamante.
Devem ser notificadas para comparecer em juízo as testemunhas inicialmente arroladas aquando da reclamação apresentada pela interessada Teresa.

2. Inconformada, veio a requerente interpor recurso de apelação deste despacho e termina a motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem:
A. Ao ter indeferido o aditamento ao rol impetrado pela reclamante, o Tribunal a quo violou artigos 264.º n.º 1, 265.º-A e 519.º do Código de Processo Civil e o artigo 344.º n.º 1 do Código Civil, aplicável ex vi do artigo 516.º do mesmo Código;
8. A reclamante e aqui recorrente não tinha forma de saber, aquando da reclamação à relação de bens, que existia uma conta bancária onde eram depositados os proveitos da venda de ações, pois o cabeça-de-casal não a relacionou;
C. Só depois de encetadas as diligência probatórias entretanto requeridas é que se logrou apurar a existência da predita conta, e de que dela são co-titulares o cabeça-de-casal e outras três pessoas;
D. A presunção de contitularidade em partes iguais da dinheiro depositado, embora se não encontre genericamente afirmada na lei para os casos de depósitos bancários com pluralidade de titulares, aparece expressamente consagrada no n.º 2 do artigo 861.º-A do Código de Processo Civil, sendo que tal presunção é também determinada pelo artigo 516.º do Código Civil;
E. Sendo uma presunção em que, in casu, dela beneficiam o cabeça-de-casal e demais co-titulares da predita conta, cabe o ónus da prova à recorrente para ilidi-la, por força do disposto no artigo 344.º n.º 1, do Código Civil;
F. A recorrente pretende provar que o dinheiro depositado na conta cuja existência foi denunciada pelo interveniente BES após as diligências empreendidas na sequência da reclamação à relação de bens, não pertence, em partes iguais, ao cabeça-de-casal e demais titulares da conta, mas tão só ao património comum do ex-casal ainda não dissolvido;
G. A recorrente pretende demonstrar que era só o cabeça-de-casal quem geria a conta e quem procedia às diligências de aquisição e venda de ações;
H. A recorrente pretende demonstrar que os demais co-titulares da conta descoberta nada têm a ver com ela, porquanto tais não têm qualquer direito sobre os dinheiros/proveitos nela depositados, sendo meros figurantes que, em conluio com o cabeça-de-casal, propositadamente assinaram as fichas de inscrição bancária da conta com o fito exclusivo de nela figurarem como presuntos co-titulares, para assim se acionar a presunção de compropriedade, rectius, contitularidade do direito de crédito sobre os dinheiros aí depositados;
I. A demonstração do vertido supra em F, G, e H, em sede de inquirição de testemunhas no incidente de reclamação aqui em causa, só é possível se for admitido o aditamento ao rol requerido pela aqui recorrente, assim se ouvindo os demais titulares da conta, a fim de se esmiuçar qual a verdadeira relação destes com o cabeça-de-casal no âmbito da conta sub judice, no intuito de verificar se existem indícios de conluio a partir dos quais possa transparecer que, na realidade, são meros co-titulares sem direito algum sobre as ações relativas à conta e sobre o capital nela depositado.
Cumprindo-se o disposto no artigo 691.º-B do CPC, a recorrente indica, para devida instrução do presente recurso, as seguintes peças processuais:
1. Relação de bens apresentada pelo cabeça-de-casal;
2. Reclamação à relação de bens de 11/03/2011 (referência citius 133282);
3. Ata de audiência da inquirição da testemunha José …, de 27/03/2012 (referência citius 581223);
4. Ofício SES de fls. 286 a 288 (referência citius 157247)
5. Requerimento da reclamante/recorrente de 07/05/2012 (referência citius 158301);
6. Despacho de 21/05/2012 (referência citius 602893);
7. Requerimento da reclamante/recorrente de 02/01/2013 (referência citius 173188);
8. Despacho de 08/01/2013 (referência citius 689442);
9, Requerimento da reclamante/recorrente de 21/03/2013 (referência citius 180127);
10. Requerimento da reclamante/recorrente de 23/11/2012 (referência citius 170502);
11. Despacho de 06/05/2011 (referência citius 502480),
Termos em que, compulsado o teor das peças processuais acimas referidas, bem como o teor das motivações e conclusões do presente recurso, se requer a V.ªs Ex.ªs, Venerandos Juízes Desembargadores deste Tribunal da Relação de Guimarães, a substituição do despacho ora posto em crise — despacho de 06/05/2011, com a referência citius 502480, pelo qual se indeferiu o aditamento ao rol — por outro que admitia as testemunhas co-titulares da conta bancária supra aludida, assim se logrando a justa e completa composição do litígio, de modo a atender a legítima pretensão da recorrente (fim de transcrição).

3. O cabeça de casal veio responder e pugnou pela manutenção do despacho recorrido.

4. Colhidos os vistos, em conferência, cumpre decidir.

5. Objeto do recurso
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das alegações formuladas (artigos 660.º n.º 2, 664.º e 684.º n.ºs 2, 3 e 4 do CPC), sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso.
A questão a decidir, decorrente das conclusões da apelante, consiste em apurar se deve ser admitido o aditamento de testemunhas ao rol inicialmente apresentado aquando da reclamação da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal.

II - FUNDAMENTAÇÃO

Além do que decorre das alegações e do despacho recorrido, resulta dos autos a seguinte matéria de facto com interesse para a boa decisão do recurso e que as partes não colocam em causa:
1 – A requerente/apelante veio reclamar contra a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal e, além do mais que não está em causa neste recurso, pede que o cabeça de casal relacione os valores de dinheiro em falta, pois constata que existe omissão no relacionamento de bens do casal.
2 – Indicou 2 testemunhas e protestou indicar outras duas no prazo de 10 dias, em virtude de desconhecer ainda o seu nome e residência.
3 – Requer, a final, ao tribunal que oficie à Segurança Social para comunicar aos autos se o requerido recebe reforma, seu montante, em que instituição bancária é depositada, no sentido de apurar se existem outras quantias depositadas na conta que possa existir, cifras essas que pertencem ao casal, e que tenham sido depositadas em data anterior à instauração da ação de divórcio – 09.06.2010.
4 – Na sequência do depoimento da testemunha José …, indicada inicialmente pela requerente, esta sugeriu e o tribunal concordou em ordenar a notificação do BES para informar quais as contas bancárias detidas pelo cabeça de casal e quem são os contitulares dessas contas e se já existiam no período compreendido entre 2007 e 2008, após o cabeça de casal ter oposto a esta diligência.
5 – O BES veio informar que o cabeça de casal era o 1.º titular de duas contas naquela instituição e que havia mais titulares das ditas contas, que indicou a fls. 30 a 32.
6 – Notificada, a requerente sugeriu ao tribunal que fossem notificados os contitulares para esclarecerem as quantias que cada um detinha nas ditas contas, como consta a fls. 34 e 35, o que foi deferido por despacho de fls. 36, ordenando-se, além do mais, que o BES informasse o valor exato do ativo à data de 09.06.2010, face a novo requerimento da apelante.
7 – A fls. 42 e 43, a apelante veio adicionar três testemunhas ao rol inicial, em virtude de só agora ter tido conhecimento da conta co-titulada existente no BES e que pretende com elas produzir prova no sentido de apurar a quem pertencem os montantes da referida conta e em que medida.

APRECIAÇÃO

O apenso organizado para a subida deste recurso tem em vista resolver uma questão em processo de inventário, mais concretamente, apurar se a reclamação contra a relação de bens apresentada tem que indicar logo a prova ou se na hipótese de haver factos conhecidos supervenientemente pela reclamante, esta pode ainda indicar prova sobre os mesmos.
Prescreve o art.º 1348.º do CPC que a reclamação contra a relação de bens destina-se a que os interessados possam acusar a falta de bens que devam ser relacionados, requerer a exclusão dos indevidamente relacionados, ou arguir qualquer inexatidão (n.º 1).
As reclamações contra a relação de bens podem ainda ser apresentadas posteriormente, mas o reclamante será condenado em multa, exceto se provar que a não pôde oferecer no momento próprio, por facto que não lhe é imputável (n.º 6).
As provas são indicadas com os requerimentos e resposta; efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas oficiosamente pelo juiz, é a questão decidida, sem prejuízo do disposto no art.º 1335.º (art.º 1 344.º n.º 2, aplicável ex vi do art.º 1349.º n.º 3 do CPC).
No caso dos autos, a apelante reclamou contra a relação de bens e indicou testemunhas. Na sequência do depoimento de uma dessas testemunhas, apercebeu-se que o cabeça de casal teria outras contas e solicitou que o tribunal efetuasse deligências nesse sentido para clarificar essa situação.
Resulta das diligências efetuadas pelo tribunal que o cabeça de casal tem uma conta no BES em que é o 1.º titular, a par de outros, que não relacionou.
Para verificar qual o montante que pertence a cada titular dessa conta, a reclamante aditou três testemunhas. O tribunal recorrido indeferiu, com o fundamento de que estava precludido o direito de apresentar provas novas, que não tivessem sido indicadas com o requerimento inicial em que reclamou contra a relação de bens.
Salvo o devido respeito, entendemos que a apelante pode apresentar novas testemunhas ou indicar as já anteriormente oferecidas para provar o que pertence a cada titular da conta descoberta após a reclamação contra a relação de bens. Trata-se de um facto novo, que veio ao conhecimento da apelante só depois de ter apresentado a reclamação contra a relação de bens, na sequência de diligências sugeridas por ela e efetuadas pelo tribunal.
O despacho recorrido não pode vedar à reclamante o direito ao exercício efetivo do contraditório, consubstanciado no direito de indicar e produzir prova sobre os factos de que teve conhecimento só depois de apresentar a reclamação contra a relação de bens, nos termos que já referimos, para apurar qual a parte do dinheiro ou outros valores pertencente a cada titular da conta.
Só assim se concretiza o princípio do contraditório (art.º 3.º do CPC) e se cumpre o espírito do art.º 265.º n.º 3 do mesmo diploma legal.
A manter-se a decisão recorrida, facilmente constataríamos que as diligências efetuadas pelo tribunal para averiguar se o cabeça de casal tinha outra conta, não indicada na relação de bens que apresentou, com vários titulares, não teria efeito prático no processo de inventário, pois deixaria em aberto a questão de saber qual é a medida do direito que cada um dos co-titulares tem sobre a conta em causa.
Nesta conformidade, julga-se procedente a apelação, revoga-se o despacho recorrido e ordena-se que os autos de inventário prossigam os seus termos normais com a inquirição das testemunhas aditadas pela apelante.

Sumário: O interessado que reclamar contra a relação de bens apresentada em processo de inventário deve indicar logo a prova. Todavia, se surgirem factos novos de que o reclamante só tomou conhecimento após aquela reclamação, pode, em relação a estes, indicar e produzir nova prova para exercer o contraditório e garantir o princípio da verdade histórica (também chamada material).

III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção cível em julgar procedente a apelação, revogar a decisão recorrida e ordenar que os autos de inventário prossigam a sua tramitação normal com a inquirição das testemunhas aditadas pela apelante.
Custas pelo recorrido, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Notifique.
(Acórdão elaborado e integralmente revisto pelo relator).

Guimarães, 11 de Julho de 2013.
Moisés Silva (Relator)
Manuel Bargado
Helena Melo