Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
876/06-2
Relator: PEREIRA DA ROCHA
Descritores: CONTRATO
DESPORTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - A matéria de facto comprovada por acordo das partes sobre a outorga entre elas do contrato junto com a petição inicial e nela dado por reproduzido, é suficiente para o tribunal conhecer e decidir a sua incompetência, em razão da matéria, para a acção, por, para a qualificação jurídica do contrato, o tribunal gozar de plena autonomia relativamente às razões das partes e à qualificação jurídica por elas feita, não se justificando, pois, o prosseguimento da acção para apuramento, em julgamento, da matéria de facto alegada pelas partes em justificação da qualificação jurídica do contrato por elas feita como de prestação de serviços e de trabalho desportivo.
II - O litigado contrato configura um contrato de trabalho, na modalidade de contrato de trabalho desportivo previsto e regulado pela Lei n.º 28/98 de 26/06, por o Réu se haver obrigado para com o Autor a exercer, em determinadas épocas desportivas, o seu mister de atleta sénior de andebol, por conta, sob a autoridade e a direcção do Autor, mediante uma retribuição global a pagar em fracções mensais.
III - A Vara de Competência Mista da Comarca de Braga é incompetente, em razão da matéria, para conhecer do litígio sobre este contrato de trabalho desportivo, por tal competência pertencer ao Tribunal de Trabalho da mesma Comarca.
Decisão Texto Integral: 5
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.
I – Relatório
Nestes autos de recurso de agravo, é recorrente A... e é recorrido Álvaro R...
Vem interposto do despacho proferido, em 30/01/2006, pela Vara de Competência Mista do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no processo declarativo sob a forma ordinária n.º 7720/05.1TBBRG instaurado pelo Recorrente contra o Recorrido, que decidiu julgar procedente a excepção da incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria e, em consequência, absolveu o Réu da instância e condenou o Autor nas custas.
O recurso foi admitido como agravo, com subida imediata, nos próprios autos, e com efeito suspensivo.
O Recorrente extraiu das suas alegações as seguintes conclusões:
1. A matéria alegada pelas partes e relativa à qualificação do contrato sub judice como prestação de serviços/trabalho é contraditória, pelo que deve prevalecer a posição, versão apresentada pela A.
2. Existem factos alegados pela A. na P.I. - arts 2° a 4° e 8° a 12° -, que constituem fortes indícios de estarmos perante um contrato de prestação de serviços, e que sempre deveriam ser objecto de prova de forma a que se possa concluir com segurança quanto à natureza do contrato celebrado entre as partes.
3. A A. configura na P.I. o contrato celebrado como sendo de prestação de serviços, não alegando em ponto algum a subordinação jurídica indispensável à caracterização como contrato de trabalho: isto é o R. estar sujeito às ordens, direcção e fiscalização da A.
4. Com a sentença proferida resultaram violadas as seguintes normas: arts. 220°, 221 °, 242°, n° 1, 243°, n.ºs 1 e 2, 394°, todos do Código Civil.
5. Termos em que deve ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos para apuramento da matéria controvertida.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Por despacho de 19/04/2006, foi sustentada e mantida a decisão recorrida.
Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir.
São as conclusões das alegações do recorrente que fixam e delimitam o objecto do recurso e, por conseguinte, as questões a decidir, sem prejuízo da ampliação pelo recorrido do âmbito do recurso nos termos do art.º 684.º-A do CPC e do conhecimento de questões oficiosas(cfr. art.º 684.º, n.º 3, e 690.º e 660.º, n.º 2, este por remissão do art.º 713.º, n.º 2, do CPC), desde que as questões suscitadas pelo recorrente ou pelo recorrido se situem no âmbito das questões apreciadas pela decisão recorrida ou de que a mesma devesse conhecer por referência ao pedido das partes.
Na verdade os recursos destinam-se à reapreciação das decisões recorridas, no quadro fáctico-jurídico vigente à data em que foram proferidas, tendo em vista a correcção de invocados erros de procedimento ou de julgamento por elas cometidas, pelo que, no recurso, não podem ser suscitadas, nem decididas, novas ou diversas questões das conhecidas pela decisão recorrida ou de que ela devesse conhecer, salvo quanto a matérias de conhecimento oficioso a todo o tempo (cfr. art.ºs 660.º, n.ºs 1 e 2, 668.º, n.º 1, d), 2.ª parte, 676.º, n.º 1, 684.º, n.ºs 1 a 4, 684.º-A, n.ºs 1 a 3, 690.º, n.º 1, 713.º, n.º 2, 715.º, n.ºs 1 e 2, 716.º, n.º 1, 749.º, 752.º, n.º 3, e 753.º, n.º 1, do CPC).
Pelo exposto a questão a decidir consiste em saber se a 1.ª Instância deveria ter prosseguido com o processo para apuramento da matéria de facto controvertida sobre a qualificação do contrato como de prestação de serviços ou como de contrato de trabalho desportivo, por a matéria alegada pelas partes sobre tal questão ser contraditória e por a Autora, ora Recorrente, na petição inicial, o haver configurado como de prestação de serviços e por em ponto algum dela haver alegado factos relativos à sujeição do Réu a ordens, direcção e fiscalização suas, elementos estes caracterizadores da subordinação jurídica própria do contrato de trabalho.
II - Apreciando
Com a petição inicial foi junto um exemplar do litigado contrato subscrito pelo Autor e pelo Réu em 31/05/1999, que o Autor deu por integralmente reproduzido no art.º 1.º da petição inicial, assim alegando, na petição inicial, a totalidade do seu teor.
E, com fundamento no incumprimento deste contrato por parte do Réu e na cláusula penal nele prevista para tal caso, o Autor pediu a condenação do Réu a pagar-lhe € 83.947,68.
O Réu contestou e reconveio, pedindo a sua absolvição do pedido por prescrição do crédito da Autora e, em alternativa, a improcedência da acção e a condenação do Autor a reconhecer que o litigado contrato entre eles celebrado é um contrato de trabalho desportivo e a pagar-lhe € 23.643,00, a título de créditos salariais vencidos e não pagos e de rescisão contratual por parte do Réu por falta tempestiva do pagamento de salários, com o acréscimo de juros desde a citação até integral pagamento.
O despacho recorrido, considerando que o pressuposto processual da incompetência do tribunal em razão da matéria se afere pelos elementos da relação material controvertida configurada pelo autor na petição inicial, qualificou o litigado contrato como de trabalho, servindo-se, para o efeito, do seu texto escrito junto pelo Autor e concluindo pela competência, em razão da matéria, do Tribunal do Trabalho de Braga para conhecer da acção e da reconvenção, com a consequente declaração da incompetência material da Vara de Competência Mista da Comarca de Braga.
Defende o Recorrente que o processo deveria ter prosseguido para apuramento da matéria de facto controvertida pelas partes sobre a qualificação jurídica do contrato em litígio.
Não lhe assiste razão.
Na verdade, as partes estavam de acordo em terem outorgado o contrato junto pelo Autor com a petição inicial, divergindo apenas quanto à qualificação jurídica dele, qualificação jurídica esta não dependente de prova a produzir e para a qual o tribunal goza de plena autonomia relativamente à qualificação jurídica dada pelas partes (cfr. art.º 664.º do CPC).
Segundo as cláusulas de tal contrato, outorgado em 31/05/1999, o Réu, como atleta sénior de andebol, obrigou-se a prestar os seus serviços ao Autor, participando nos jogos treinos, estágios e outras sessões preparatórias ou instrumentais das competições oficiais ou particulares, com a maior aplicação e diligência, e bem assim, de acordo com as regras da modalidade e segundo instruções do Autor, a preservar as condições físicas que lhe permitissem participar na competição desportiva objecto do contrato, bem como a submeter-se aos exames e tratamentos clínicos necessários à prática desportiva e conformar-se, no exercício dessa actividade, com as regras próprias da disciplina e da ética desportivas, bem como do regulamento interno do clube o qual declara conhecer e, sem reservas, aceitar, a utilizar exclusivamente, em competições e treinos, os equipamentos que lhe fossem distribuídos pelo Autor, qualquer que fosse a marca comercial ou outra neles aposta com fins publicitários, durante as épocas desportivas de 1999/2000, com início em 01.08.1999 e termo em 30.06.2000, de 2000/2001, com início em 01.08.2000 e termo em 30.06.2001, de 2001/2002, com início em 01.08.2001 e termo em 30.06.2002, de 2002/2003, com início em 01.08.2002 e termo em 30.06.2003, de 2003/2004, com início em 01.08.2003 e termo em 30.06.2004, e, no caso de alteração das épocas normais de competições nacionais ou internacionais em que o Autor participasse, os períodos de prestação de serviços do Réu sofreriam, em conformidade, as respectivas e necessárias alterações, e, como contrapartida pela prestação de serviços, o Réu receberia a quantia global de cinco milhões seiscentos e dez mil escudos a qual incluía todos os créditos salariais, subsídios, compensações e quaisquer outros direitos devidos por lei e por este contrato, a pagar em fracções, sendo onze fracções mensais iguais e sucessivas de 60 000$00 durante a época desportiva de 1999/2000, com início em Agosto de 1999 e final em Junho de 2000, a pagar no final do mês correspondente, onze fracções mensais iguais e sucessivas de 80 000$00, durante a época desportiva de 2000/2001, com início em Agosto de 2000 e final em Junho de 2001, a pagar no final do mês correspondente, onze fracções mensais iguais e sucessivas de 100 000$00, durante a época desportiva de 2001/2002, com início em Agosto de 2001 e final em Junho de 2001, a pagar no final do mês correspondente, onze fracções mensais iguais e sucessivas de 120 000$00, durante a época desportiva de 2002/2003, com início em Agosto de 2002 e final em Junho de 2002, a pagar no final do mês correspondente, onze fracções mensais iguais e sucessivas de 150 000$00, durante a época desportiva de 2003/2004, com início em Agosto de 2003 e final em Junho de 2004, a pagar no final do mês correspondente, e se algum dos contraentes incumprisse o contrato, obrigava-se a indemnizar o outro na quantia equivalente ao triplo do valor global deste contrato, quantitativo este que traduzia o manifesto interesse na participação e escrupuloso cumprimento contratual e acordaram em fixar como competente para qualquer litígio emergente deste contrato o foro da comarca de Braga, com expressa renúncia de qualquer outro e a produção dos seus efeitos a partir de 31/05/1999.
Assim, e em síntese, por força destas cláusulas convencionais, o Réu obrigou-se a exercer a sua actividade de atleta sénior de andebol por conta do Autor, intervindo nos jogos, nos treinos, nos estágios e noutras sessões preparatórias ou instrumentais das competições nacionais e internacionais oficiais ou particulares em que o Autor participasse, nas épocas de 1999/2000 a 2003/2004, com sujeição às regras da disciplina e da ética desportivas próprias da modalidade de andebol e ainda do regulamento interno do Autor e segundo instruções deste, mediante uma retribuição global, a pagar em fracções mensais.
Nos termos do art.º 2.º, alínea a), da Lei n.º 28/98 de 26/06, alterada, em parte, pela Lei n.º 114/99 de 3/8, constitui contrato de trabalho desportivo aquele pelo qual o praticante desportivo se obriga, mediante retribuição, a prestar actividade desportiva a uma pessoa singular ou colectiva que promova ou participe em actividades desportivas, sob a autoridade e a direcção desta, regendo-se este contrato pelo estatuído na mencionada Lei e, por força do disposto no seu art.º 3.º, subsidiariamente, pelas regras aplicáveis ao contrato de trabalho.
Por sua vez, o art.º 1154.º do Código Civil define o contrato de prestação de serviço como aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.
Ora o Réu não se obrigou para como o Autor a prestar-lhe um determinado resultado ou produto do seu mister de atleta sénior de andebol, sem subordinação a instruções e a disciplina do Autor, antes se obrigou para com ele a exercer aquele mister, sob a autoridade e a direcção do Autor, pelo que o litigado contrato configura um contrato de trabalho, na modalidade de contrato de trabalho desportivo previsto e regulado pela Lei n.º 28/98 de 26/06, daí que, por força do disposto nas alíneas b) e p) do art.º 85.º da LOTJ, aprovada pela Lei n.º 3/99 de 13/01, sejam os tribunais de trabalho os competentes, em razão da matéria, para conhecer da acção e da reconvenção.
Improcede, pois, o agravo, com a consequente manutenção do despacho recorrido.
III – Decisão
Termos em que se decide negar provimento ao agravo e manter o despacho recorrido.
Custas pelo Recorrente.
Guimarães, 19/10/2006.
Pereira da Rocha
Teresa Albuquerque
António Ribeiro.
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