Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
14/08-2
Relator: MARIA LUÍSA RAMOS
Descritores: ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/14/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA IMPROCEDENTE
Sumário: I. Por efeito de decisão penal absolutória, transitada em julgado, e que absolveu o Réu, e ora apelado, considerando que o mesmo não havia praticado os factos que lhe foram imputados, estabeleceu-se a favor do Réu uma presunção legal nos termos do decidido.
Tal presunção legal prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil, determinando a inversão do ónus da prova nos termos do n.º1 do art.º 344º do Código Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

P... Redon e M... Ribeiro, Autoras nos presentes autos de acção declarativa, com processo ordinário, nº 7737/05.6TBBRG (4), em que é Réu, F... Ribeiro, vieram interpor recurso de apelação da sentença proferida nos autos, que julgou improcedente a acção.
O recurso foi recebido como recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Nos autos, por requerimento de fls.132, o Réu interpôs recurso do despacho saneador proferido e que julgou improcedente a excepção de caso julgado por este deduzida na contestação, tendo tal recurso de agravo vindo a ser admitido, por despacho judicial de fls.132, na espécie indicada - agravo – e com subida diferida e efeito meramente devolutivo, e, foram, atempadamente, apresentadas as respectivas alegações.
Compulsados os autos verifica-se, porém, que nas contra - alegações que apresentou, relativas à apelação, o apelado não deu cumprimento ao n.º1 do art.º 748º do Código de Processo Civil , não declarando se mantém interesse no agravo retido nos termos do art.º 735º, do citado diploma legal.
Não obstante, e atento o disposto no art.º 710º-n.º 1 do Código de Processo Civil, uma vez que a sentença recorrida que julgou improcedente a acção e absolveu o Réu do pedido irá ser confirmada, mostra-se prejudicado o conhecimento do recurso de agravo interposto.
Nestes termos, não se ordenará a notificação do agravante para os fins do n.º 2 do art.º 748º, nem se conhecerá do recurso de agravo em referência nos termos do art.º 710º - nº 1, todos do Código de Processo Civil .

Nas alegações do recurso de Apelação que apresentaram, as apelantes formulam as seguintes conclusões:


1• O R. havia sido absolvido em processo penal com base no princípio "in dubio pro reo";

2• A causa de pedir, no processo civil conexo era, assim, a prática de actos pretensamente constitutivos de responsabilidade civil extracontratual penal;

3• Na presente acção, a causa de pedir é de natureza contratual ­contrato de mandato;

4• O recorrido não cumpriu a obrigação de entregar às recorrentes, como herdeiras, a quantia por aquele levantada após a morte de titular de certificado de aforro, como ex-titular de cláusula de movimentação desse certificado de aforro;

5. Levantamento este efectuado depois de conhecer a morte do seu titular;

6• Para sua defesa, no processo penal em causa e na presente acção cível, o recorrido invocou a existência de um mútuo alegadamente feito a favor do Pai das AA., ora recorrentes, em 1988;


7• Mútuo este no montante de 5.000 contos;

8• E, como tal, nos termos do art.º 11430 do Código Civil então vigente, sujeito a escritura pública;

9• Documento, portanto, "ad probationem", nos termos do art.º» 2200 do C. Civil;

10• No caso, não foi exibido, sequer, mero documento particular, que o referisse;

11• Na fundamentação da matéria de facto no processo penal, considerou-se como "persistindo dúvida razoável sobre a versão trazida pelo arguido a julgamento";

12• E, com base nessa "dúvida razoável", se absolveu o então aí arguido e ora recorrido;

13• Não, consequentemente, “... com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados" .

14• Aliás, na acção penal, provaram-se os factos que lhe eram imputados:
Que levantou e fez seu o capital do certificado de aforro de que era titular o Pai das AA.;
Que o movimentou depois de conhecer a morte do seu titular;

15• O art.º 674°-B do C.P.C., deve ser interpretado atentos os seus próprios termos, como aplicável, apenas, nos casos em que decisão penal transitada em julgamento, "julga absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados".

16• O recorrido, no processo crime, não fez essa prova;

17• Apenas logrou pôr em dúvida se o titular do certificado de aforro lhe devia, ou não, 2.500 contos, de um invocado mútuo inicial de 5.000 contos, aliás, nulo, por falta de forma! - repita-se;

18• Tese esta que carreou para o processo penal e foi decisiva para a sua absolvição, com assento no princípio "in dubio pro reo".

19• Princípio este espúrio no domínio civilístico substantivo e adjectivo;

20• A decisão em crise extravasa, assim, os próprios termos e a "ratio legis" do art.º 674°-B, do C.P.C.

21• Fazendo com que o princípio "in dubio pro reo", fosse decisivo, também, em processo em que se pede indemnização cível de base contratual, em processo civil.

22• O art.º 674°-B do C.P.C. visa, apenas, inverter o ónus da prova impondo-o às AA. quando se prova, concretamente, em processo crime, que o arguido não praticou determinados factos.

23• Essa a sua ratio legis: Evitar que o Tribunal não se contradiga, sem uma razão muito substancial, assente em prova cabal;

24• E não é esse o caso!


25• A douta decisão em causa violou, assim, o disposto no art.º 674°-B do C.P.C. na sua letra no seu espírito e o art.º 1143° do C. Civil.

Termos em que deverá ser revogada a douta decisão em causa e o recorrido condenado a pagar às recorrentes a quantia por estas peticionada.

Foram proferidas contra – alegações.

O recurso veio a ser admitido neste tribunal da Relação na espécie e com os efeitos e regime de subida fixados no despacho de admissão do recurso na 1ª instância.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Delimitação do objecto do recurso: Questões a decidir.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, tal como decorre das disposições legais dos artº 684º-nº3 e 690º-nº1 e 2 do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras “( artº 660º-nº2 do CPC).

E, de entre estas questões, excepto no tocante aquelas que o tribunal conhece ex officio, o tribunal de 2ª instância apenas poderá tomar conhecimento das questões já trazidas aos autos pelas partes, nos termos dos artº 664º e 264º do CPC, não podendo a parte nas alegações de recurso e respectivas conclusões vir suscitar e requerer a apreciação de questões ou excepções novas.

Atentas as conclusões da apelação deduzidas, e supra descritas, é a seguinte a questão a apreciar:
- Eficácia da decisão penal absolutória- art.º 674º-B do CPC ; inversão do ónus da prova e prevalência de presunção sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.


Fundamentação.

I) OS FACTOS ( factos declarados provados na sentença recorrida ).

1.As Autoras são filhas e as únicas e universais herdeiras de J... Ribeiro, natural da freguesia de S... (S. Lourenço), concelho de Guimarães.
2.Este faleceu em Paris, onde residia habitualmente, no dia 15 de Março de 2001, pelas 12:15 horas locais, na sequência de acidente de viação.
3.À data da morte, o pai das AA possuía, em Portugal, uma aplicação financeira, vulgarmente conhecida por Certificado de Aforro.
4.O pai das AA havia procedido a tal aplicação financeira, em 07.09.1992, tendo-lhe sido, então, atribuída a qualidade de aforrista nº 19199120, pela emissão do Certificado de Aforro nº 03500021, correspondente a 6.000 unidades, então no montante global de 3.000 contos e, à data da sua morte, ficando o Certificado de Aforro com o valor total, após a capitalização desses juros, de 5.484.960$00.
5.O R. havia sido indicado, desde o início, pelo depositante, pai das AA, como "movimentador" da respectiva conta aforro nº 19199120.
6.No dia 15.03.2001, pelas 14,41 horas, o R. procedeu ao levantamento do referido certificado de aforro no dito montante de Esc: 5.484.960$00.
7.Fez tal levantamento sem conhecimento, autorização ou consentimento das AA.
8.Recusa-se a entregar tal montante às AA.
9.O teor do acórdão, já transitado, que faz fls. 35 a 35 a 43 dos autos, no qual se considerou como:
Factos provados
1º- O arguido F... Ribeiro, no decurso do ano de 1988 emprestou ao seu irmão J... Ribeiro a quantia de cinco milhões de escudos, a fim de que este pudesse pagar as tornas devidas à sua ex-esposa na sequência de partilha subsequente ao divórcio de ambos;
2º- Ainda no ano de 1988 o J... Ferreira devolveu ao arguido F... Ribeiro a quantia de 2.500.000$00;
3º- Em 7/09/1992, J... Ribeiro, emigrante em França, e com residência em Portugal no lugar da Bela V..., S. Lourenço de S..., Guimarães, fez uma aplicação aforrista com o nº 019199120-CA/E 175556, junto do Instituto de Gestão do Crédito Público, no valor de 3.000.000$00 e cujo valor ascendia, em 15 de Março de 2001, a 5.484.960$00 (cerca de 27.358,87 €);
4º- Nesse mesmo acto de constituição do depósito aforrista, foi indicado como beneficiário da cláusula de movimentação da citada conta o arguido F... Ribeiro, irmão do titular;
5º- O J... Ribeiro procedeu como referido nos anteriores números 3º e 4º como forma de devolver ao arguido F... Ribeiro a quantia de 2.500.000$00 que ainda lhe devia, sendo que a restante quantia (500.000$00) se destinava a compensá-lo pelos juros;
6º- O J... Ribeiro entregou ao arguido F... Ribeiro os documentos relativos à aplicação financeira referida, dizendo-lhe que tal aplicação ficaria para si, arguido, como forma de lhe pagar a parte da quantia emprestada e ainda não devolvida, e sendo o excesso (os 500.000$00) para o compensar dos juros;
7º- Em 15 de Março de 2001, pelas 12.15 h (11.15 h de Portugal), faleceu em Paris, França, o aforrista J... Ribeiro, deixando como seus universais herdeiros as filhas – P... Redon e T... Ribeiro;
8º- Por volta das 12.55 h (11.55 h de Portugal), proveniente de França do nº 33146223167 e destinado ao nº 253686739 (nº do telefone pertencente ao arguido), foi feita uma chamada telefónica a comunicar a morte do Joaquim Ribeiro ao seu irmão, o aqui arguido F... Ribeiro;
9º- Depois de conhecer a morte de seu irmão, o arguido F... Ferreira dirigiu-se à Estação dos Correios da Avenida da Liberdade, nesta cidade de Braga, onde por volta das 14.41 h (de Portugal), levantou a totalidade do título aforrista;

Factos não provados

- que foi durante o ano de 1999 que o J... Ribeiro fez a aplicação financeira referida nos factos provados;
- que o arguido sabia que o seu irmão era o verdadeiro titular do certificado de aforro;
- que o arguido sabia que com o óbito daquele, ficaria sem efeito a cláusula de movimentação de que era beneficiário;
- que o arguido tenha conscientemente omitido facto de que tinha perfeito conhecimento e que sabia que o impedia de movimentar tal título;
- que depois de garantida pelo arguido F... Ribeiro a posse dos almejados mais de cinco milhões e quatrocentos mil de escudos no dia 15 de Março de 2001, este jamais deu conhecimento às herdeiras do destino que lhes deu, apropriando-se de tal quantia que gastou em proveito próprio;
- que o arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei;
- que o arguido actuou com o propósito concretizado de, através da conduta e estratagema intelectualmente pensado, criar na instituição de crédito a convicção e confiança suficientes que a levassem a abrir mão das quantias monetárias documentadas nos autos, em prejuízo pessoal dos herdeiros do titular do certificado de aforro, obtendo desta forma um enriquecimento ilegítimo do seu património em valor igual ao prejuízo daqueles.

O DIREITO APLICÁVEL

As Autoras, e ora apelantes, intentaram a presente acção com processo ordinário contra o Réu, alegando, em síntese, que o seu pai, do qual são as únicas e universais herdeiras, à data da sua morte (15.03.2001), possuía um certificado de aforro, do qual era dono, no valor de 5.484.960$00, tendo autorizado a sua movimentação ao R. e que este o levantou indevidamente, após o seu decesso.
Mais alegaram que nunca o dito certificado de aforro foi constituído e nele autorizada a movimentação pelo Réu como forma de o falecido restituir a este, seu irmão, parte de um empréstimo de 5.000.000$00, que o Réu lhe teria entregue para pagar as tornas devidas ao seu ex-cônjuge, na sequência de partilha após o divórcio; que jamais se verificou tal empréstimo sequer.

E, concluem, pedindo, seja o Réu condenado a pagar-lhes a quantia de €44.032,56, os juros de mora vencidos e vincendos e ainda uma sanção pecuniária compulsória, a partir do trânsito em julgado da condenação.

Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o Réu do pedido.

Inconformadas, vieram as Autoras interpor recurso de apelação da sentença proferida e que assim julgou improcedente a acção, nos termos e pelas razões expostas nas alegações de recurso acima expostas.

Alegam as recorrentes não ser aplicável no caso em apreço a presunção e inversão do ónus da prova decorrente do art.º 647º-B do Código de Processo Civil, nem sendo este preceito aplicável por, por um lado, o Réu haver sido absolvido em processo penal com base no princípio "in dubio pro reo", e, por para sua defesa no processo penal em causa e na presente acção cível o Réu haver invocado a existência de um mútuo alegadamente feito a favor do Pai das AA., ora recorrentes, em 1988, mútuo este no montante de 5.000 contos, e, como tal, nos termos do art.º 11430 do Código Civil então vigente, sujeito a escritura pública e que não provou existir.

Considera-se serem totalmente improcedentes os fundamentos da apelação.

Desde logo, contrariamente ao que alegam as recorrentes, de acordo com teor da art.º 9º dos factos dados como provados, claramente decorre da leitura do indicado artigo da matéria de facto provada e dos factos aí enunciados dados como “provados” e “não provados” na acção de processo crime em que foi Réu o ora apelado, e em referência nos autos, que o recorrido não foi absolvido em processo penal com base no princípio "in dubio pro reo".

E, relativamente à prova do aludido contrato de mútuo cumpre apenas salientar que os factos a apreciar no presente recurso serão tão só os factos enunciados na sentença recorrida e que se encontram definitivamente fixados, não tendo sido impugnada a matéria de facto nos termos do art.º 712º do Código de Processo Civil pelas recorrentes, nada havendo a apreciar ou a decidir no tocante a tal questão, a qual não se inclui no objecto do presente recurso.

Não se verificam, assim, ocorrer os alegados fundamentos de apelação.

Não obstante, e relativamente à justeza da sentença proferida e à aplicabilidade no caso em apreço dos efeitos da decisão penal absolutória nos termos do art.º 674º-B do Código de Processo Civil, com a consequente inversão do ónus da prova e prevalência da presunção estabelecida no n.º2 do citado preceito legal sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil, há que atender ao teor de tal artigo, o qual dispõe:
“ 1. A decisão penal, transitada em julgado, que haja absolvido o arguido com fundamento em não ter praticado os factos que lhe eram imputados, constitui, em quaisquer acções de natureza civil, simples presunção legal da inexistência desses factos, ilidível mediante prova em contrário.
2. A presunção referida no número anterior prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.”

Considerou o Mº Juiz “ a quo” na sentença recorrida, como fundamento da decisão de improcedência da acção, que “ por força da presunção legal que emana da decisão penal absolutória, cabia às Autoras provar que inexistiu o aludido empréstimo e inerente entrega do certificado de aforro em causa ao Réu para restituir parte daquele, presumida que estava a pertença legítima pelo Réu e o não levantamento indevido – art.º 344º do C.Civil.”

Cremos que bem.
Com efeito, atentos os factos provados e o disposto no art.º 674º-B do Código de Processo Civil, conclui-se que por efeito da sentença penal absolutória em causa, transitada em julgado, e que absolveu o Réu e ora apelado considerando que o mesmo não havia praticado os factos que lhe foram imputados e legitimando a posse por parte deste do certificado de aforro referido nos autos e o levantamento e a apropriação dos respectivos montantes, se estabeleceu uma presunção legal, a favor do Réu e ora recorrido, nos termos do decidido.

Tal presunção legal é ilidível mediante prova em contrário ( art.º 674º-B- n.º1 do Código de Processo Civil ).

E, por força do disposto no n.º 2, do citado preceito legal, prevalece sobre quaisquer presunções de culpa estabelecidas na lei civil.

Face ao exposto, e como se decidiu em 1ª instância, ocorreu inversão do ónus da prova, nos termos do n.º 1 do art.º 344º do Código Civil, incumbindo à Autoras o ónus de provar a ilegitimidade da conduta do Réu.

Dos factos provados não resulta provada a ilegitimidade da conduta do Réu, não tendo sido afastada a presunção em sentido contrário de que o mesmo beneficia por lei.

Nos termos do art.º 342º e sgs do C.Civil e demais preceitos aplicáveis, não tendo as Autoras cumprido o ónus da prova que lhes incumbia, prevalece a presunção estabelecida a favor do recorrido.

Assim, bem decidiu o tribunal de 1ª instância ao absolver o Réu do pedido.


DECISÃO
Face a todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar totalmente improcedente a Apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas pelas recorrentes ( art.º 446º do Código de Processo Civil ).

Guimarães, 14 de Fevereiro de 2008