Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
359/06GVCRM.G1
Relator: ANSELMO LOPES
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
DEPOIMENTO DE TESTEMUNHA
PROVA TESTEMUNHAL
PROIBIÇÃO DE PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – Se uma testemunha conta que o arguido lhe disse que foi participante num furto e até lhe indica, com pormenores significativos (posteriormente confirmados) onde se encontram os objectos furtados, não está a depor indirectamente, mas a relatar factos concretos por si directamente ouvidos e vistos
II – O conhecimento que a testemunha transmite nesse depoimento é aquele que ela própria adquiriu através dos seus próprios sentidos;
III – Ouvir de um arguido que ele praticou um acto criminoso e reproduzir isso em tribunal não é ilegal, cabendo ao tribunal avaliar essa prova como contributo para a procedência ou não da acusação
Decisão Texto Integral: Após conferência, acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

TRIBUNAL RECORRIDO
Tribunal Judicial de Vieira do Minho

ARGUIDOS/RECORRIDOS
José; Tiago; Rui; e Luís

RECORRENTE
O Ministério Público

OBJECTO DO RECURSO
O MºPº acusou os arguidos, imputando:
.- aos arguidos Tiago e José, em co-autoria, cinco crimes de furto qualificado, previsto e punível, pelos art. 203º/1 e 204º/2 /e) do CP;
.- ao arguido Rui, em co-autoria, três crimes de furto qualificado, previsto e punível, pelos art. 203º/1 e 204º/2/e ) do CP;
.- ao arguido Luís, em co-autoria, um crime de furto qualificado, previsto e punível, pelos art. 203º/1 e 204º/2 e) do CP.

No final, veio a ser decidido o seguinte:
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem o Tribunal Colectivo na Comarca de Vieira do Minho em julgar improcedente, por não provada, a acusação e nessa conformidade absolver os arguidos José, Tiago, Rui, Luís, dos crimes pelos quais vinham acusados - furto qualificado p.p. pelo art. 203º e 204º/2 /e ) do CP.

É desta decisão que vem este recurso, no qual a Digna recorrente invoca a errónea interpretação da disposição legal constante no artigo 129.º e erro notório na apreciação da matéria de facto, nos termos dos artigos 127.º e 410.º, n.º 2, alínea c), todos do Código de Processo Penal.

MATÉRIA DE FACTO
- Na noite de 12 para 13 de Novembro de 2006, durante a noite, pessoa ou pessoas, não concretamente identificadas, dirigiram-se à loja de ocupação de tempos livres, sita no Centro de Camionagem, pertencente à Câmara Municipal, com o objectivo de se apropriar de bens e valores que encontrassem no seu interior;
- Partiram o vidro da montra, criando uma abertura para aceder ao interior da loja;
- Do interior da loja retiraram e levaram, fazendo seus:
(…)
- Na mesma noite na residência do Pároco, sita no lugar de Igreja, freguesia de X, Braga pessoa não concretamente identificada partiu a porta da entrada, entrou na residência e retirou, levando consigo os seguintes objectos:
(…).
- O dano na porta ascendeu ao montante de € 50,00;
- Na mesma noite pessoas não concretamente identificadas dirigiram-se à residência do pai de Rosa, sita na freguesia de X e fazendo uso de um formão, partiram uma janela e entraram na habitação, retirando e fazendo seus os seguintes objectos:
(…)
- No dia 15 de Novembro de 2006, cerca das 10.00 horas, pessoa não concretamente identificada dirigiu-se à padaria denominada "Pacal", pertencente a Paulo, sita em Y com o propósito de se apoderar de dinheiro e de quaisquer objectos que se encontrassem no seu interior e que conseguisse transportar consigo;
- Partiu uma janela existente a cerca de dois metros do solo, até à qual escalou, tendo acedido ao interior do referido estabelecimento;
- No interior do estabelecimento, desferiu pontapés numa porta, arrombando-a, acedendo a uma divisão onde se encontravam diversos objectos, que retirou e fez seus e que consistiram em:
(…)
- A recuperação do mini cofre, do computador HP Pavillion e da caixa OPS do computador, bens que se encontravam no estabelecimento de Paulo, ocorreu na sequência de informação fornecida pelo arguido José.
-
- O arguido José insere-se numa família de condição social humilde; o pai do arguido é surdo-mudo e a mãe tem uma deficiência física que a obriga a movimentar-se em cadeira de rodas;
(…)
-
- Factos não provados
- Na noite de 12 para 13 de Novembro de 2006 os arguidos Tiago, José, Rui e Luís em execução de plano previamente gizado por todos fizeram-se transportar no veículo automóvel pertencente ao arguido Rui ao Centro de Camionagem e, uma vez nesse local, enquanto este último ficou a aguardar no interior da viatura, os outros dirigiram-se para a Loja de Ocupação de Tempos livres;
- Os arguidos Tiago, José e Luís fracturaram o vidro da montra criando, deste modo, uma abertura que lhes permitiu aceder ao seu interior de onde retiraram:
(…)
- Na posse desses objectos os arguidos José e Tiago foram ao encontro do arguido Rui que auxiliou à sua colocação no veículo automóvel onde os aguardava e no qual todos abandonaram o local em direcção à cidade de Braga;
- Na mesma noite, já de regresso à Vila de Vieira do Minho e fazendo uso do mesmo automóvel, os arguidos Tiago, José e Rui dirigiram-se à residência do Pároco, a fim de se apoderarem de objectos e dinheiro que encontrassem no seu interior.
- Os arguidos partiram a porta e retiram da residência levando consigo:
(…)
- Os objectos foram levados do local, no veículo automóvel do arguido Rui no qual os arguidos se fizeram transportar até à cidade de Braga.
- Após terem regressado a Vieira do Minho, os arguidos José e Tiago, acompanhados de um outro cuja identidade não se logrou apurar mas que os transportou na sua viatura automóvel, ainda, na noite de 12 para 13 de Novembro de 2006, dirigiram-se à residência pertencente a Sousa, a fim de se apropriarem de objectos e valores que aí encontrassem.
- Para o efeito, de forma não concretamente apurada, arrombaram o portão da garagem tendo daí acedido ao interior da habitação de onde retiraram:
(…)
- Ao actuar da forma descrita causaram um dano na porta da garagem no valor de € 120,00.
- Na mesma noite e na freguesia de Mosteiro os arguidos José e Tiago, acompanhados de pessoa não identificada, partiram uma janela da residência do pai de Rosa, usando um formão que haviam retirado da residência de Sousa e da referida habitação retiraram e fizeram seus: um aparelho de televisão de marca Sanyo, de 82 cm de écran, de cor preta e um leitor de mp3 digital de marca " Denver ";
- O leitor mp3 tinha o valor de € 50,00;
- Os arguidos causaram danos na porta no valor de € 470,00;
- Os objectos retirados destas duas últimas residências foram sendo colocados no veículo automóvel facultado por pessoa não identificada, no qual todos abandonaram o local, novamente em direcção a Braga;
- No dia 15 de Novembro de 2006, cerca das 10.00 horas os arguidos José, Tiago e Rui dirigiram-se e entraram na padaria " Pacal ",;
- No seu interior desferiram pontapés numa porta e da divisão onde entraram retiraram e fizeram seus os seguintes objectos:
(…)
- Estes objectos foram transportados do local no veículo automóvel do arguido Rui;
- Os arguidos José, Tiago, Rui e Luís agiram de forma livre e deliberada, bem sabendo que os objectos de que se apropriavam não lhes pertenciam e que agia contra a vontade do respectivo proprietário, com plena consciência da censurabilidade penal da sua conduta.

MOTIVAÇÃO/CONCLUSÕES
São formuladas as seguintes conclusões:
1. O Tribunal a quo não efectuou uma correcta subsunção do disposto no artigo 129.º do Código de Processo Penal, uma vez que entendeu que a confissão do arguido José, da prática dos factos ocorridos na padaria “Pacal”, no dia 15 de Novembro de 2006, perante a testemunha Paulo Freitas, não pode ser valorada como meio de prova, nos termos do artigo 129.º do Código de Processo Penal e, por esse motivo, não pode ser atendida para a prova dos factos.
2. O artigo 129.º do Código de Processo Penal não é aplicável à situação da referida testemunha que depõe sobre a conversa que manteve com o arguido e sobre o seu conteúdo, pois tal situação não cai no âmbito da norma em causa, uma vez que a testemunha viveu e assistiu a essa realidade, pelo que o seu depoimento é directo e não indirecto, pois que o que o legislador quis afastar com a referida disposição legal foi o depoimento de ouvir dizer a outra pessoa.
3. Assim, o Tribunal a quo deveria ter considerado que o artigo 129.º, n.º 1, do Código de Processo Penal não tem aplicabilidade ao depoimento da testemunha Paulo, que relatou a conversa mantida com o arguido, na qual este lhe confessou que foi o autor do furto ocorrido no seu estabelecimento e lhe indicou o local onde entregou um dos objectos que dali retirou.
4. Ainda que consideremos, de forma circunspecta, que o que interessa saber não é tanto se o arguido efectivamente confessou à testemunha Paulo que praticou os factos relativos ao furto ocorrido na padaria e indicou a casa onde um dos objectos furtados foram deixados, mas antes apurar se efectivamente o arguido praticou tal furto, sendo que relativamente a esta situação poderíamos considerar que existe uma prova indirecta, pois apesar do arguido o ter confessado à testemunha, esta não presenciou tal facto assim relatado, caberia assim, ainda que em hipótese, aplicar o regime previsto no artigo 129.º do Código de Processo Penal
5. Nesse caso, harmonizando as finalidades do direito penal e as garantias constitucionais e processuais do arguido, o tribunal deveria ter interpretado tal dispositivo legal no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas que relatem conversas tidas com o arguido que, podendo depor, voluntariamente se furta à presença em audiência de julgamento (quando regularmente notificado) ou se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, sendo que tal interpretação não atinge de forma intolerável e desproporcionada o direito à defesa e à não incriminação do arguido, o princípio do contraditório e da imediação.
6. No caso concreto, no acórdão recorrido deu-se como provado, relativamente ao factos ocorridos no dia 15 de Novembro de 2006, na padaria “Pacal”, sita Y, que a recuperação do mini cofre, do computador HP Pavillion e da caixa OPS do computador, bens que se encontravam no estabelecimento de Paulo Freitas, ocorreu na sequência de informação fornecida pelo arguido José (9.º parágrafo dos factos provados).
7. Sendo estes os elementos probatórios recolhidos, os quais foram levados aos factos provados, a consequência lógica a retirar e de acordo com as regras da experiência comum é a de que o arguido indicou os locais onde havia deixado tais objectos pois foi ele que os retirou da padaria e mais tarde os deixou nesses local.
8. Efectivamente, nestas circunstâncias é razoável e proporcionado que os depoimentos das testemunhas Paulo e Fernando possam ser valorados como meio de prova, devendo tais depoimentos ser apreciados pelo tribunal com a prudência que a impossibilidade de ouvir o arguido impõe e de acordo com as regras da lógica e da experiência.
9. Ora, o próprio acórdão recorrido considerou dignos de crédito os depoimentos das testemunhas Paulo e Fernando, tanto que deu como provado que a recuperação do mini cofre, do computador HP Pavillion e da caixa OPS do computador, bens que se encontravam no estabelecimento de Paulo Freitas, ocorreu na sequência de informação fornecida pelo arguido José.
10. Assim, a correcta apreciação da matéria de facto, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal impõe a reformulação da matéria de facto provada e não provada, no sentido de considerar provado que “no dia 15 de Novembro de 2008, pelo menos o arguido José dirigiu-se à padaria denominada Pacal, pertencente a Paulo, sita em Y e, após ter fracturado uma janela existente a cerca de 2 metros do solo, por onde se introduziu, acedeu ao interior do referido estabelecimento e daí retirou um computador HP Pavillon, no valor de 1.699,00, um mini cofre de cor azul contendo 34 moedas de 20 cêntimos, 61 moedas de 10 cêntimos, 30 moedas de 5 cêntimos, 28 moedas de 2 cêntimos e 39 moedas de 1 cêntimo e uma caixa OPS do computador”, e que “o arguido José agiu de modo livre e deliberado, bem sabendo que o objecto de que se apropriou não lhe pertencia e que agia contra a vontade do seu dono, com plena consciência da censurabilidade da sua conduta”.
11. E, consequentemente, decidir pela condenação do arguido José pela prática de um crime de furto qualificado pelo qual vinha acusado, numa pena de 10 meses de prisão, atendendo a que nenhumas circunstâncias agravantes ou atenuantes se julgaram verificadas e ao facto de o arguido não ter antecedentes criminais por crimes de igual natureza, suspensa pelo período de um ano, sujeito a regime de prova, nos termos do artigo 53.º, n.º 3, do Código Penal, considerando ainda a idade do arguido José (nascido a 09/10/1988), o qual deverá beneficiar da atenuação especial concedida pelo regime especial para jovens.

Pede que seja julgado procedente o presente recurso, revogando-se o acórdão recorrido, substituindo-o por outro que condene o arguido José, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203.º, n.º 1, e 204.º, n.º 2, al. e), do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão, suspensa pelo período de um ano, sujeito a regime de prova, nos termos do artigo 53.º, n.º 3, do Código Penal.

RESPOSTA
O arguido José respondeu, fazendo-o nos seguintes termos:
I
O M.P. elabora uma tese doutrinária sobre uma interpretação que deveria ser dada ao artº 129º do CPP, e expressa a ideia de certa corrente que afirma que há excesso de garantias do arguido em detrimento do ofendido.
Face à prova produzida em audiência de julgamento, o tribunal só poderia dar como provados os factos que considerou provados e como não provados aqueles que considerou como tal.
Em face desta factualidade, a decisão do tribunal só poderia ser a da absolvição dos arguidos, nomeadamente do arguido José.
A tese do M.P., relativamente à interpretação a dar ao artº 129º do CPP, não encontra apoio doutrinal ou jurisprudencial, nem a decisão que requer é sustentada por qualquer argumento jurídico.
O art. 129º do CPP não faz distinção entre «...ouvir dizer a pessoas determinadas...» e «ouvir dizer ao arguido ».
O M.P. não pode querer que o que está expresso no corpo do art. 129º do CPP contenha “ implicitamente” uma diferenciação consoante se trate de arguido ou de outra pessoa qualquer.
O sentido deste artigo é unívoco. Por isso, aquele que interpreta a lei tem que obedecer ao pensamento legislativo claramente definido, tal como fez o tribunal “a quo”.
Face à letra do referido artigo, sustentar a tese do M.P., seria ir para além do texto legal, o que constituiria clara violação do princípio da legalidade.
Se o tribunal “a quo” valorasse o depoimento da testemunha Paulo, partindo para uma perigosíssima presunção, aí sim, estaria a violar claramente o art. 129º do CPP.
Aliás, não tem cabimento a tese do M.P. quando afirma que o depoimento indirecto não é absolutamente proibido, desde que as pessoas referenciadas nesse testemunho sejam chamadas a depor.
Ora, se o arguido fosse chamado a depor e dissesse ao tribunal que confessara à testemunha que tinha sido ele o autor do crime, o tribunal não estaria agora a valorar o depoimento da testemunha, por inútil, mas sim a ter em consideração a confissão do arguido.
Além disso, não cabe ao tribunal fazer a prova da acusação, mas sim apreciar a prova produzida em audiência de julgamento.
E sendo somente na audiência de julgamento que se exige dos respectivos meios força probatória, não poderá proceder a pretensão do M.P. na medida em que assenta numa força meramente indiciária.
A tese do M.P. poderia levar à anulação de toda a defesa e ao desmantelamento dos princípios da imediação, do contraditório e da estrutura acusatória do processo: imagine-se que uma testemunha, em sede de audiência de julgamento, mentindo, diz que o arguido lhe confessou ser o autor do crime, e que o tribunal, com base nesse depoimento, condena o arguido.
Para onde caminharia o Estado de Direito? Para onde caminharia a Justiça?
Esta é a posição daqueles que afirmam que o nosso sistema penal tem excesso de garantias para o arguido.
II
Também não tem razão o M.P. quando entende que há erro notório na apreciação da prova feita pelo tribunal.
Uma coisa é o arguido José ter informado (se é que informou) sobre o local onde se encontrariam coisas furtadas no estabelecimento de Paulo Freitas, outra é saber se foi este arguido quem furtou tais coisas.
O M.P. tira a seguinte ilação: se o arguido indicou onde se encontravam as coisas furtadas, e a testemunha Paulo Freitas disse que ele lhe confessou ter sido o autor do furto, a”conclusão lógica” é que ele cometeu o crime, devendo ser condenado.
Aqui não há lógica – a acusação ou prova ou não prova a autoria do crime.
Mas o M.P. deveria ser mais rigoroso : é que a testemunha João, que tinha em sua posse as coisas furtadas, para além de referir que não conhecia o arguido José, referiu também que foi o arguido Rui, conhecido por “C”, que lhe entregou e vendeu os objectos.
Para se poder dar como provados os factos relativos à responsabilidade penal do arguido José, seria necessário que o M.P. desenvolvesse a prova suficiente para que o tribunal pudesse, com segurança, dar os respectivos factos por assentes, sem a subsistência de quaisquer dúvidas relevantes, o que não conseguiu fazer.
Por isso, o tribunal fez uma sábia apreciação da prova produzida, e não arbitrária como pretende o M.P., em obediência ao princípio processual “In Dubio Pro Reo”.
A tese do M.P. aqui expressa parece reivindicar uma alteração legislativa que permita condenar arguidos com base em provas que não foram produzidas em sede de audiência de julgamento, segundo os princípios da imediação e do contraditório, mas sim em meras presunções e conclusões lógicas. Só que acima desse desejo estão princípios consagrados na Constituição da República Portuguesa.
Concluindo:
1 - O tribunal não violou o art. 129º do CPP, mas tão só aplicou a lei ao caso concreto.
2 – O tribunal apreciou correctamente a prova produzida em audiência de julgamento, não violando os arts. 127º e 410º, nº 2 al. c) do CPP.

PARECER
Nesta instância, o Ilustre Procurador Geral-Adjunto emitiu a seguinte opinião:
(…)
b)
Os arguidos foram absolvidos da autoria de crimes de furto qualificado p. e p. pelo art. 204, nº. 1, al. e) do CPenal.
Divergindo desta decisão, como decorre das conclusões apresentadas, foca o Ministério Público uma única questão e que se reconduz à verificação dum erro de julgamento. Ou seja, o MºPº entende que a matéria de facto foi erradamente julgada por uma singularidade: não valoração de um meio de prova, por retirada de valia probatória a concretos depoimentos por o julgador ter entendido que tais depoimentos constituíam “prova indirecta”, eram prova de outiva, conforme previsão do art. 129 do CPPenal.
Pugna pela condenação do arguido José, a ele limitando o objecto do recurso.
(…)
d)
Quanto ao mérito do recurso e manifestando a nossa opinião, seja-nos permitido acompanhar o teor esclarecido, exaustivo e aperfeiçoado da motivação oferecida pelo MºPº no recurso em causa.
Seria estultícia estar a repetir o que já nela foi ponderado e dito.
Cremos, contudo, que não se poderá proceder ao imediato julgamento do arguido, como pretende o MºPº na 1ª instância, em sede de recurso.
Estando em causa uma não valoração de prova, está-se diante dum caso de insuficiência da matéria de facto para a decisão na previsão do art. 410, nº2, al. a) do CPPenal.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 03-07-2002, Proc. n.º 1748/02 - 3.ª Secção, relator Conselheiro Armando Leandro:
“O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, é o que ocorre quando a matéria de facto provada é insuficiente para a decisão de direito, porque o Tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar relativamente a factos relevantes para a decisão da causa, alegados pela acusação ou pela defesa, ou que resultaram da audiência ou nela deviam ter sido apurados por força da referida relevância para a decisão”.

Ou, como se deixou sintetizado no acórdão do STJ de 02-05-2002, Proc. n.º 1219/02 - 5.ª Secção, relator Conselheiro Simas Santos:
“I – (…) II - Verifica-se a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410.º, n.º 1, al. a), do CP) quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida ou quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante (os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência), de tal forma que a matéria de facto provada não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação”.

Ou seja, e tomando o caso sub judice, o tribunal podendo e devendo valorar um meio de prova, não o fez e, desse jeito, não pode aplicar o melhor direito aos factos.
No sentido por nós pugnado, mutatis mutandis, veja-se o acórdão da Relação do Porto, de 24/09/2008, proc. 0843468, sendo relator o Desembargador António Gama, que trata com grande esmero a temática que constitui o cerne deste recurso. Diz-se em tal aresto:
“E não se fez prova da verificação do crime, segundo consta da motivação, porque «as testemunhas inquiridas, muito embora tenham deposto de forma isenta objectiva e credível, sobre os factos, sobre a autoria do furto, apenas contaram o que ouviram dizer ao arguido, que várias horas depois do furto, ostentava os óculos subtraídos, tendo-os entregue. Ora, sendo certo que o tribunal não pode valorar os referidos depoimentos quanto ao que ouviram ao arguido, já que este não foi ouvido em julgamento, a mera detenção pelo arguido de um dos objectos furtados, no dia seguinte aos factos é insuficiente para concluir em sede de sentença que o arguido praticou os factos por que vem acusado, atenta a multiplicidade de circunstâncias que podem ter determinado aquela detenção».

Será correcto o entendimento vertido na motivação recorrida?

O artigo 128º, nº 1, do Código de Processo Penal, dispõe que "a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto de prova". E, no artigo 129º, nº 1, do mesmo Código, acrescenta-se: "Se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas".

A questão a decidir prende-se com saber se os ditos depoimentos constituem, ou não, depoimento indirecto ou de ouvir dizer.

Podem resultar equívocos de uma abordagem literal do vertido nos referidos preceitos legais. A melhor interpretação da formulação legal conduz a que só se considere depoimento indirecto, v.g. se a pessoa que faz o relato, não assistiu ou presenciou a ocorrência. Assim se entre A e B se desenvolve uma conversa, a que C pessoalmente assiste, mas na qual não intervém, apesar de o seu depoimento «resultar do que ouviu dizer a pessoas determinadas» temos como indiscutível que não estamos perante depoimento indirecto, ele esteve presente, viveu a realidade, ouviu as conversas de A e B. De outro modo chegávamos ao absurdo de não haver «depoimentos directos puros», só o que o depoente disse era depoimento directo, já o que ouviu, mesmo em resposta à sua conversa, porque «ouviu dizer a pessoa determinada» seria depoimento indirecto. Não pode ser. O critério operativo da distinção entre depoimento directo e indirecto é o da vivência da realidade que se relata: se o depoente viveu e assistiu a essa realidade o seu depoimento é directo, se não, é indirecto.
O que o legislador quis afastar foi o «depoimento em segunda mão»: o C vem a tribunal dizer que o A lhe disse que o B fez ou aconteceu. São estes, mas não apenas estes, os depoimentos indirectos que o legislador quis vetar como meio de prova, salvo se chamar o «intermediário» a depor. Assim se estiver em causa saber se o arguido fez, ou não, a predita declaração, se teve ou não a conversa com as testemunhas, não é caso de depoimento indirecto.
Acontece que não é essa realidade da vida que nos interessa no caso dos autos; o que nos interessa é o apuramento do facto a provar relevante, constante da acusação, a ocorrência, ou não do furto. Do que se trata, não é provar se o arguido fez, ou não aquela declaração confessória - caso em que, como vimos, quanto à declaração em si, não haveria depoimento indirecto, pois foi directamente ouvida pelas testemunhas - mas antes apurar a verdade dos factos constantes da acusação e que segundo as testemunhas o arguido confessou. A prova dos factos constituintes do furto, realizada apenas pelas declarações das testemunhas que ouviram a sua confissão, e apenas com base nela, é indiscutivelmente face ao nosso actual regime normativo uma prova indirecta, uma «prova em segunda mão».

Mas dos artºs 128º, 129º e 130º do Código de Processo Penal resulta que, embora o testemunho directo seja a regra, o depoimento indirecto não é, em absoluto, proibido. Não existe, de facto, entre nós, uma proibição absoluta do testemunho de ouvir dizer (hearsay evidence rule). O princípio hearsay is no evidence (ouvir dizer não constitui prova) sofre, assim, limitações. E, com isso, o processo penal continua a assegurar todas as garantias de defesa. Continua a ser a due process of law[1]. A disciplina contida no referido artigo 129º, nº 1 não viola o princípio da estrutura acusatória do processo, nem o da imediação, nem a regra do contraditório se o tribunal ao mesmo tempo que admite o testemunho de ouvir dizer, impõe que as pessoas referenciadas nesse depoimento sejam, elas próprias, chamadas a depor. Garantida a imediação e possibilita a cross-examination, fica plenamente garantido o contraditório, o que é garantia de melhor apreciação da prova.
Só é admissível que as pessoas referidas não sejam chamadas a depor, se a sua inquirição não for possível, "por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas". Nessa hipótese, tornando-se impossível interrogar as pessoas que as testemunhas de outiva indicaram como fonte, tem de se considerar razoável e proporcionada a limitação introduzida à proibição do depoimento indirecto.
Esta impossibilidade, constituindo uma limitação do contraditório, aumenta a possibilidade de manipulação da prova esperando-se do tribunal um especial cuidado na apreciação da prova, que decorre segundo as regras da experiência e o princípio da livre convicção, artigo 127º do Código de Processo Penal.
No caso não foi possível ouvir a pessoa «fonte» do depoimento porque a mesma não estava presente, apesar de convocada. Acresce que essa pessoa, não é uma pessoa qualquer, é o sujeito processual o arguido e não se mostra comprovado que existiu impossibilidade absoluta de o ouvir.
Perante a ausência do arguido o Ex.mo juiz limitou-se a afastar a relevância dos depoimentos indirectos, proferindo absolvição. Com este procedimento não pode ser «acusado» de não defender os direitos de defesa do arguido. Bem pelo contrário. Acontece que no processo penal se prosseguem outras finalidades, sendo que a primeira delas foi literalmente postergada.
Vejamos:
Como ensina Figueiredo Dias [2], as finalidades primárias a cuja realização o processo penal se dirige são as seguintes:
a) A realização da Justiça e a descoberta da verdade material [3].
b) A protecção dos direitos fundamentais das pessoas [4].
c) O restabelecimento da paz jurídica e a reafirmação da validade da norma violada [5].
O critério de valor adequado à interpretação teleológica das singulares normas e à solução dos concretos problemas jurídico-processuais, o que, se não serve para dar ao juiz a solução que lhe falte para um certo problema concreto, ajuda ao esclarecimento dos pressupostos últimos, na base dos quais hão-de ser encontrados os critérios fundamentais de solução dos problemas concretos, é fornecido pela concordância prática: Como as precedentes finalidades são potencialmente conflituantes há que tentar a sua harmonização: de cada finalidade há-de salvar-se, em cada situação, o máximo conteúdo possível, optimizando-se os ganhos e minimizando-se as perdas axiológicas. Porém quando estiver em causa a garantia da dignidade da pessoa - em regra do arguido mas também de outra pessoa - nenhuma transacção é possível, havendo que dar prevalência à finalidade do processo penal que dê total cumprimento àquela garantia constitucional[6]. Que no caso não está em causa a garantia da dignidade da pessoa humano di-lo expressamente Figueiredo Dias[7], que admite a limitação de interesses individuais do arguido em função dos interesses conflituantes[8]. Os interesses que, no caso, temos que contrabalançar aos do arguido são os interesses da sociedade na realização da Justiça, na descoberta da verdade material, o restabelecimento da paz jurídica e a reafirmação da validade da norma violada. Ora não foi isso que fez o Ex.mo juiz. Quando se lhe exigia um adequado «equilíbrio» e «balanceamento» dos diversos interesses em presença, optou unilateral e exclusivamente pelo direito de defesa esquecendo que o valor primeiro do processo penal é a realização da Justiça e a descoberta da verdade material. Desenvencilhou-se mal o Ex.mo juiz na tarefa do balanceamento das finalidades em tensão. É patente um desequilíbrio no sentido da protecção do arguido, em detrimento da realização da justiça que é também um valor constitucional.
Perante a ausência do arguido, impedimento que não era absoluto, impunha-se-lhe que oficiosamente, art.º 340º do Código de Processo Penal, diligenciasse pela sua presença, para o confrontar com os depoimentos das testemunhas. Tendo o julgamento começado sem a presença do arguido, se no seu desenrolar se concluir que a sua presença é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade, o juiz que a ele preside tem o dever de providenciar pela sua presença, marcando se necessário data para tal, art.º 333º do Código de Processo Penal.
Claro que apesar de o juiz providenciar pela presença do arguido o mesmo pode furtar-se a essa presença, caso em que estaremos perante uma total impossibilidade. Não nos parece curial - passe a tautologia - forçar o exercício pela força de um «direito» que o arguido não quer esclarecidamente exercer!
Também é indiscutível que o arguido, caso se logre a sua comparência, mantém intocado o seu direito ao silêncio, art.º 343º n.º1 do Código de Processo Penal. Agora o que não pode o arguido pretender é que o exercício desse direito ao silêncio inviabilize o depoimento de ouvir dizer. O balanceamento dos concretos interesses do caso já foi feito pelo legislador resultando que se aceita o depoimento indirecto desde que se verifique o condicionalismo previsto no art.º 129º do Código de Processo Penal.
Sendo esse o quadro em que se verifique a impossibilidade de ouvir a pessoa indicada como fonte pelas testemunhas de acusação, que, de resto, podem ser contraditadas pelo arguido, através do seu mandatário, é razoável e proporcionado que esses depoimentos possam ser valorados como meios de prova, sendo estes depoimentos apreciados pelo tribunal com a prudência que a «impossibilidade» de ouvir a fonte impõe e de acordo com as regras da lógica e da experiência. Desde logo, porque não há diferença substancial entre a situação do arguido que não pode ser encontrado e a daquele que, chamado à audiência, invoca o seu direito ao silêncio para não depor.
Esta é a solução a que se chega após um prudente balanceamento dos interesses conflituantes que se prosseguem no processo penal. Operando a concordância prática dos interesses em jogo conclui-se que o artigo 129º, nº 1 do Código de Processo Penal, (conjugado com o artigo 128º, nº 1), interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um arguido que, podendo depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido nem o contraditório.” (sublinhados nossos).

Assim, concluindo, o recurso merecerá provimento, com a ressalva apontada – reenvio processual.

PODERES DE COGNIÇÃO
O objecto do recurso é demarcado pelas conclusões da motivação – artº 412º do C.P.Penal, sem prejuízo do conhecimento oficioso nos termos do artº 410º, nº 2 do mesmo Código, do qual serão as citações sem referência expressa.


QUESTÕES A DECIDIR
As questão a decidir são as que emergem das conclusões acima sumariadas, mais precisamente as de se saber se os depoimentos invocados para a absolvição são directos ou indirectos e se, a proceder esta questão do recurso, o processo deve ser reenviado ou se apenas deve ser suprido, pelo mesmo Tribunal, o vício salientado pelo Ilustre P.G.A.

FUNDAMENTAÇÃO
Vejamos, antes de mais, sublinhando agora, como é que o Tribunal fundamentou a absolvição.
Diz assim:
a) Factos provados
Do depoimento das testemunhas Nuno, José, Rosa, Paulo ofendidos ou responsáveis pelo espaço onde ocorreram os factos resulta, em relação a cada um dos diferentes eventos, que foram subtraídos os objectos e ainda, a forma, como se introduziram nas habitações ou nos estabelecimentos, respectivos, porque quando se dirigiram para os respectivos locais, verificaram os danos causados e constataram a falta dos objectos.
O depoimento das referidas testemunhas mostrou-se ainda relevante para apurar o valor dos objectos.
O auto de busca junto a fls. 72 e 73, juntamente com o depoimento das testemunhas soldados da GNR, que participaram na operação de busca que se realizou em Braga e ainda, o depoimento das testemunhas Nuno, José, Rosa, Paulo mostraram-se relevantes para apurar a natureza dos objectos apreendidos e recuperados.
(…)

-
b) Factos não provados
Inexistência de prova sobre tal matéria, pois as testemunhas inquiridas não revelaram saber quem praticou os factos, pois não presenciaram os factos, nem viram os arguidos no local.
Cumpre referir a respeito dos factos ocorrido na residência de Guilherme de Sousa Meneses, que nenhuma testemunha revelou ter conhecimento dos factos descritos, nomeadamente do tipo de objectos subtraídos, danos na habitação ou valor dos objectos. Por esse motivo julgaram-se integralmente, não provados, os factos da acusação.
Parte dos objectos, pertencentes ao pai de Rosa, Nuno e José foram recuperados, por efeito da busca promovida pelas autoridades policiais, sendo certo que os objectos não foram apreendidos em poder dos arguidos.
A este respeito cumpre ainda referir que a testemunha João, apenas referiu que o arguido Rui, conhecido pela alcunha de “C “ entregou e vendeu-lhe os objectos. Contudo, só por si, tais circunstâncias mostram-se insuficientes para imputar ao arguido a autoria dos factos descritos na acusação.
A respeito dos factos que ocorreram em 15 de Novembro de 2006 cumpre referir que nenhuma das testemunhas revelou ter conhecimento da participação dos arguidos Tiago e Rui, na prática dos factos. É certo que resulta do depoimento da testemunha João que foi o arguido Rui que lhe entregou o computador, propriedade de Paulo. Não resulta dos restantes elementos de prova como o referido computador chegou à posse do arguido Rui.
Neste contexto e perante a inexistência de outros elementos de prova, em obediência ao princípio "in dubio pro reo", julgaram-se, não provados, os factos que ocorreram em 15 de Novembro de 2006, supra enunciados e imputados aos arguidos Tiago e Rui.
Quanto aos factos que ocorreram em 15 de Novembro de 2006 e imputados ao arguido José é de referir que a testemunha Paulo tomou conhecimento do local onde se encontrava o computador, por informação prestada directamente pelo arguido José, que perante a testemunha confessou que entrou no estabelecimento de padaria e apropriou-se do computador. O arguido indicou á testemunha o endereço da casa, para onde foi transportado o computador, a qual situava-se em Braga e correspondia à casa de morada da testemunha João.
A mesma testemunha referiu que com a ajuda de um bombeiro, de seu nome Artur, encontrou-se em dia de Feira, no Largo da Feira, com a testemunha Fernando, que residia em Braga, para que esta diligenciasse junto da morada indicada pelo arguido, pela restituição do computador. O interesse da testemunha em reaver o computador estava relacionado com o facto do computador conter elementos da contabilidade e da gestão do estabelecimento comercial, sendo que a perda de tais elementos constituía um dano relevante para a testemunha.
Resulta do depoimento da testemunha Fernando Monteiro que deslocou-se à morada indicada pelo ofendido, a qual corresponde ao endereço da testemunha João e aí devolveram-lhe o computador, que por sua vez, o entregou ao ofendido Paulo.
A testemunha João confirmou a entrega do computador à testemunha Fernando. A testemunha afirmou desconhecer o arguido José e referiu que o computador foi por si adquirido ao “C“, alcunha pela qual é conhecido o arguido Rui.
Contudo, a confissão do arguido, perante a testemunha não pode ser valorizada como meio de prova, nos termos do art. 129º do CPP e por esse motivo, não se pode atender para prova dos factos imputados ao arguido José.
Com efeito, o regime do depoimento indirecto, previsto no art. 129º do CCP, define a forma e modo como o mesmo pode servir de meio de prova. Constitui uma norma excepcional.
No entender de Paulo Pinto de Albuquerque “só vale como prova quando a “inquirição” de testemunhas não for possível por força das referidas circunstâncias previstas na lei. Portanto, não vale como prova o depoimento indirecto de uma testemunha sobre o que ouviu dizer ao arguido, ao assistente ou ás partes civis, porque as “pessoas“ a que a ressalva do nº1 do art. 129 se refere são apenas as testemunhas. E, sendo o art. 129º uma norma excepcional, ela não pode, em prejuízo do princípio constitucional da imediação, ser aplicada analogicamente ao depoimento de uma testemunha sobre o que ouviu dizer ao arguido, ao assistente e ás partes civis...“ (Comentário do Código de Processo Penal, pag. 345 ).
O mesmo autor refere, ainda, que: “Ás limitações do regime do depoimento indirecto decorrentes do princípio constitucional da imediação acrescem, no caso de depoimento de ouvir dizer a arguido, as limitações decorrentes do direito constitucional do arguido ao silêncio, consagrado entre as garantias de defesa do art. 32º/1 da CRP. “ (ob. cit. , pag. 345 ).
Da análise do douto Ac. do Trib Constitucional 449/99 que se pronunciou sobre esta matéria, extraia o mesmo autor as seguintes conclusões: “ Elas (as testemunhas) só podem depor sobre aquilo que ouviram dizer ao arguido durante a prática dos factos criminosos a que assistiram (neles se incluindo os actos preparatórios e de execução até à consumação do crime), mas elas não podem depor sobre conversas tidas com o arguido depois da prática dos factos criminosos. Por exemplo, as testemunhas não podem depor sobre uma confissão dos factos que ouviram ao arguido depois da ocorrência do crime. Este seria um verdadeiro depoimento indirecto cuja valoração pelo tribunal no processo penal violaria frontalmente o direito ao silêncio do arguido.
Portanto, não viola a CRP o depoimento da testemunha sobre o que ouviu dizer ao arguido durante a prática dos factos criminosos a que ela assistiu, mas é inconstitucional o art. 129º/1 do CPP, por violação do art. 32º/1 da CRP, se interpretado no sentido de permitir o depoimento indirecto da testemunha sobre o que ouviu dizer ao arguido depois da ocorrência do crime, quer ele tenha estado presente no julgamento e tenha feito uso do direito ao silêncio, quer ele não tenha estado presente no julgamento.” ( ob. ci., pg. 346 ).
Acresce referir que o arguido para além do direito ao silêncio, tem ainda o direito à não incriminação e valoração do depoimento indirecto nestas circunstâncias constitui uma verdadeira ofensa a tal direito.
Em sentido diferente pronunciou-se sobre esta matéria Carlos Adérito Teixeira “Revista do CEJ “ 1º semestre de 2005, numero 2, pag. 169.
Ponderando o exposto e considerando o depoimento da testemunha Paulo Freitas verifica-se que estamos perante uma situação de depoimento indirecto, na medida em que a testemunha toma conhecimento dos factos, após a ocorrência, através do arguido, o que não pode valer como meio de prova.
Com validade, porque resulta do conhecimento directo da testemunha Paulo, apenas pode ser considerado relevante o facto do arguido indicar o local onde se encontrava o computador, que foi subtraído do estabelecimento, já que resulta dos depoimento das testemunhas que o computador efectivamente encontrava-se em Braga, na casa de morada da testemunha João.
Contudo, a prova deste facto, sem mais elementos de prova, não permite habilitar o tribunal a concluir que foi o arguido que se apropriou do computador, no estabelecimento pertencente a Paulo e o transportou para Braga, pelo que mais uma vez em obediência ao princípio “in dúbio pro reo“ julgaram-se não provados os factos imputados ao arguido.
*
Lembre-se agora que, como se vê dos autos, ao douto acórdão recorrido foi levado um não menos douto Voto de Vencido, do seguinte teor, ao qual se acrescentam os pertinentes sublinhados:

Com todo o respeito, que é muito e bem devido, pelo sentido que fez vencimento, entendo que a acusação pública deveria ser julgada parcialmente procedente, por provada apenas em parte, e consequentemente, deveria o arguido José ter sido condenado pela prática de um crime de furto qualificado, pº e pº pelos artigos 203º e 204º, nº 2, al. e), do Código Penal, pelas razões que sucintamente passamos a expor.
Concede-se que a questão da minha discordância com o sentido que fez vencimento não é pacífica, sendo, inclusivamente, diversas as soluções que vão sendo encontradas pela jurisprudência para a questão que nos ocupa.
Com efeito, decidiu-se não valorar o depoimento da testemunha (ofendido) Paulo, na parte em que o mesmo, de modo sereno, convincente e por isso merecedor do nosso crédito, após se ter apercebido que havia sido alvo de um furto, procurou descobrir os autores dos mesmos, tendo-lhe então sido referido pelo próprio arguido José que ele, na companhia de outros que não identificou, foram os autores do furto ao seu estabelecimento comercial, tendo-lhe, ademais, o mesmo referido que o computador subtraído poderia ser encontrado numa casa ocupada por indivíduos de etnia cigana, sita no Bairro da Enguardas, na cidade de Braga.
A posição que fez vencimento entendeu que tal depoimento não poderia ser valorado, na medida em que constituía um testemunho de outiva e, por conseguinte, a sua possibilidade de valoração estava vedada, por aplicação do disposto no artigo 129º, nº 1, do CPP.
Pois bem.
Reiterando-se, de novo, o devido respeito pela posição que fez vencimento, tenho fundadas reservas quanto à pertinência e propriedade com que tal preceito foi mobilizado para a resolução da questão.
Na verdade, sendo a prova testemunhal, consabidamente, um meio de prova falível, tal preceito pretende apenas, e só, que o Tribunal não funde a sua convicção em depoimentos testemunhas que, não tendo conhecimento directo dos factos, apenas se apresentam a reproduzir o que ouviram outrem dizer, razão pela qual impõe a lei que se chame a “testemunha-fonte” para que, a partir da sua boca, se ouça o que a mesma tem a dizer sobre os factos.
Tal estímulo é duplamente recompensador: se por um lado, passa a ser livremente apreciável o que a testemunha disse com razão de ciência indirecta, por outro pode (e deve) valorar-se o contributo que venha a ser prestado pela “testemunha-fonte”.
Contudo, como dito, cremos que este preceito não pode ser aplicado para efeitos de chancelar como não apreciável o depoimento de uma testemunha acerca do que ouviu dizer ao próprio arguido, posto que, como refere Carlos Adérito Teixeira (Revista do CEJ, 1º semestre 2005, nº 2) “sendo o arguido a pessoa-fonte, a sua intervenção não reúne condições para responder aos escopos subjacentes à norma em apreço: o arguido pode, em diversos casos, ser julgado na ausência, mesmo que esteja presente ou compareça, não tem o dever de prestar declarações; mesmo que preste, não tem o dever de falar verdade nem consequências para a falsidade de declarações”.
É este, igualmente, o sentido do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19 de Setembro de 2009, (relatado pela Sr.ª Desembargadora Olga Maurício, processo nº 0844418), quando refere que “o depoimento indirecto só vale relativamente ao que se ouviu dizer a outra potencial testemunha e nunca quanto a declarações de um arguido.
Daí que, acompanhando a posição daquele autor, entendo que em matéria do testemunho de ouvir-dizer ao arguido, regerá o disposto nos art.ºs 125.º e 127.º do CPP, porque, em boa verdade, o depoimento da testemunha que relata o que lhe foi transmitido pelo arguido não profere um depoimento indirecto, mas sim aquilo que, em momento posterior aos factos, ouviu directamente da sua boca e de viva voz.
Afigura-se-me, pois, que tal depoimento constitui meio de prova legalmente admissível, susceptível de ser livremente valorado pelo Tribunal, nos termos do artº 127º CPP (cfr. acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 30 de Novembro de 2005 e 09 de Julho de 2008, ambos relatados pelo Sr. Desembargador Jorge Dias, processos nºs 601/07.6GBCNT.C1 e 2847/05).
Por outro lado, e mesmo precavendo a possibilidade da questão em apreço receber tratamento nos quadros do disposto no artigo 129º, nº 1, do CPP, sempre se concluir que, como refere o acórdão do Tribunal Constitucional nº 440/99 de 8-7, “o artigo 129, n° 1 (conjugado com o artigo 128, n° 1) do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas, que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido”, sendo igualmente certo que não jogará aqui um papel relevante a circunstância de o arguido ter sido julgado na ausência, pois como igualmente se refere naquele neste aresto “não há diferença substancial entre a situação do arguido que não pode ser encontrado e a daquele que, chamado à audiência, invoca o seu direito ao silêncio para não depor”.
É que, se bem vemos as coisas, o arguido em questão prestou TIR e acha-se devidamente notificado para comparecer em julgamento, pelo que se não quer envolver-se nas questões que a si dizem respeito, é porque não o deseja fazer.
Destarte, entendo que aquele contributo probatório, não sendo proibido, poderia ser livremente valorado no confronto com as demais provas, norteando-se, para o efeito, o Tribunal pelo princípio da livre apreciação da prova (cfr. artº 127º do Código de Processo Penal), julgando-se os factos segundo a consciência que formou, convicção essa que é formada não em obediência a regras preestabelecidas, a quadros, critérios ou ditames impostos por lei, mas sim através da influência que as provas produzidas exerceram no espírito do julgador, após as ter apreciado e avaliado segundo critérios de valoração racional e lógica, segundo a sua experiência, sendo que, neste particular aspecto, não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção directa que a imediação e a oralidade conferem ao julgador.
Admite-se que apenas aquele elemento, seria demasiado ténue para estabelecer a autoria dos factos.
Todavia, aquele contributo probatório encontrou arrimo noutros elementos de prova.
De facto, resultou, também, do depoimento da testemunha Fernando (igualmente de etnia cigana) que, na sequência da informação recolhida pelo ofendido Paulo, o mesmo decidiu auxiliar o ofendido e deslocou-se ao Bairro da Enguardas, em Braga, onde entabulou conversa com os indivíduos referidos pelo arguido José como aqueles a quem os objectos tinham sido entregues (no caso a testemunha João) e, efectivamente, o computador em questão aí se encontrava, altura em que foi devolvido ao seu legítimo dono.
Ora, o acerto e o modo como estes elementos probatórios se cruzam e corroboram, salvo melhor opinião, permitiram extrair, por via de presunção natural (que, consabidamente, não é vedada em direito penal), a conclusão de que foi o arguido, a par de outros não identificados, o autor do furto em questão.
Aliás, mesmo a doutrina que vem citada na posição que fez vencimento (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal), excepciona a possibilidade de valoração “do depoimento da testemunha sobre factos praticados posteriormente à comissão do crime, como por exemplo a entrega pelo arguido de bens furtados ao seu proprietário (pág. 346), havendo que reconhecer que a situação dos autos não se distancia substancialmente do exemplo citado pelo autor.
Nesta medida, julgaria como provado que: “No dia 15 de Novembro de 2008, pelo menos o arguido José dirigiu-se à padaria denominada Pacal, pertencente a Paulo, sita em Vieira do Minho e, após ter fracturado uma janela existente a cerca de 2 metros do solo, por onde se introduziu, acedeu ao interior do referido estabelecimento e daí retirou um computador HP Pavillon, no valor de 1.699,00€”.
Já quanto ao elemento subjectivo, apenas cumpre citar as palavras de Malatesta, quando refere que “o homem, ser racional, não obra sem dirigir as suas acções a um fim. Ora quando um meio só corresponde a um dado fim criminoso, o agente não pode tê-lo empregado senão para alcançar aquele fim.” [A Lógica das provas em matéria Criminal, p. 172 ss; (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Fevereiro de 2993, in BMJ nº 324, pág. 620].
Daí que, igualmente, julgaria como provado que “O arguido agiu de modo livre deliberado, bem sabendo que objecto de que se apropriou não lhe pertencia e que agia contra a vontade do seu dono, com plena consciência da censurabilidade da sua conduta”.
Subsumindo tais factos ao direito, e não se vislumbrando eximentes ou causas de desculpação a considerar, entendo que o arguido José deveria ter sido condenado pela prática de um crime de furto qualificado (pº e pº pelos artigos 203º e 204º, nº 2, al. e), do Código Penal), em pena não inferior a 10 meses de prisão, suspensa por idêntico período, sujeita a regime de prova, conforme impõe o artigo 53º, nº 3, do CP.
***
Como se vê, a douta motivação do recurso, o douto Voto de Vencido e o sapiente Parecer do Ilustre P.G.A. já dizem praticamente tudo sobre o tema em análise no caso concreto, evidenciando a confusão em que laborou a decisão recorrida: quando alguém relata factos que directamente viu ou ouviu sobre a ocorrência e autoria de um crime, está, nos termos do artº 128º, nº 1, a prestar depoimento directo, válido e legal, a ser sujeito às regras da livre apreciação prescritas no artº 127º.
Sigamos o caminho mais fácil para explicar esta última asserção:
Nos termos do artº 262º, nº 1 - Finalidade e âmbito do inquérito -, o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
Conduzindo à acusação e, desta, ao julgamento, neste serão produzidas todas as provas (cf. artºs 340º, nº 1) que contribuam para a descoberta da verdade material e que não sejam excluídas, por violarem determinados valores ou direitos.
Assim, sobre o objecto da prova, prescreve o artº 124º, nº 1, que:
Constituem objecto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime
E o artº 125.º, sobre a legalidade da prova, diz que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, estabelecendo o artº 126º, nº 1, os métodos proibidos de prova, dizendo que são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.

Quanto aos meios de prova, e sobre a prova testemunhal, nos seu objecto e nos seus limites, prescreve o artº 128.º, nº 1, que a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova, isto é, que, sem serem ilegalmente percebidos, contribuam para a determinação da demonstração da existência do crime e de quem foi o seu agente (ou agentes).
E, uma vez que para essa contribuição pode ser útil, até imprescindível (tudo depende, depois, da livre apreciação), mas porque, então, há que reforçar as garantias de autenticidade, a lei admite, nos termos do artº 129º, que o Tribunal se socorra de depoimentos daquilo que não se percepcionou directamente, mas, sim, que se ouviu dizer a determinadas pessoas, estabelecendo-se que, nesse caso, o juiz pode chamar estas a depor e, se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas.
Nada mais simples! E o artº 129º nem é para aqui chamado.

Se uma testemunha conta que o arguido lhe disse que foi participante num furto e até lhe indica, com pormenores muito significativos (posteriormente confirmados, realce-se), onde se encontram os objectos furtados, não está, quanto a essa conversa, a depor indirectamente, mas a relatar factos concretos por si directamente ouvidos e vistos e que, aliás, têm relevo decisivo para a descoberta da verdade material, cabendo ao Tribunal que os ouve analisá-los e trabalhá-los no seu livre critério, para, a seguir, conjugando-os com outros, fazer a subsunção ao direito quanto aos factos para os quais o depoimento dessa conversa, esse sim, é prova indirecta.
O conhecimento que a testemunha transmite naquele depoimento é aquele que ela própria adquiriu através dos seus próprios sentidos e, visto que ouvir de um arguido que ele praticou um facto criminoso e reproduzir isso em Tribunal não é ilegal, cabe ao Tribunal analisar e avaliar essa prova como contributo para a procedência ou não da acusação - Não é só assim quanto aos depoimentos de testemunhas comuns, mas também no que toca aos depoimentos dos agentes policiais.
Sobre a matéria das chamadas conversas “informais”, atente-se nos seguintes arestos:

ACSTJ 30.09.1998, Processo n.º 366/98 - 3.ª Secção - Relator: Cons. Martins Ramos:
II - Nada impede que os agentes da PJ possam ser ouvidos como testemunhas sobre factos de que tomaram conhecimento directo mercê de outras diligências de investigação que não as proibidas pelo art.º 356, n.º 7, do CPP.

ACSTJ 13.05.1999, Proc. n.º 201/99 - 3.ª Secção - Relator: Cons. Hugo Lopes:
I - Os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre os factos de que tenham conhecimento directo por meio diverso das declarações ou depoimentos reduzidos a auto, designadamente sobre o relato de conversas informais que tenham tido com o arguido.

ACSTJ 17-11-2004, Proc. n.º 225/04 - 3.ª Secção – Relator: Consº Soreto de Barros:
I - Se as testemunhas se limitaram a depor sobre uma situação de facto que, directa e pessoalmente constataram - ou de reproduzir "conversas informais" ou declarações que devessem ser levadas a auto, mas, antes, de relatar um comportamento do arguido - que percepcionaram durante uma diligência de reconstituição, não merece censura a valoração desses depoimentos.

Ac. S.T.J., de 20-04-06 – dgsi.pt – 06P363 – Consº Rodrigues da Costa:
23 - A lei só exclui o testemunho das entidades policiais que verse o conteúdo de declarações por elas tomadas, sendo completamente descabido que as referidas entidades não pudessem depor sobre todos aqueles factos em relação aos quais o seu posicionamento não foi outro senão o de observadoras ou de intervenientes e observadoras, que, por terem neles participado, tiveram desses factos um conhecimento privilegiado.

A linha jurisprudencial acima citada é a única que está em conformidade com as prescrições legais e com a realidade a que estas se aplicam, sob pena de obstaculização ou paralisação total da investigação policial e de condenações em casos de prova meramente indiciária, sendo absolutamente desnecessário reforçar esta afirmação com situações quotidianas.
Os agentes dos OPC não terão outra alternativa, na grande maioria dos casos que investigam, senão aproveitarem todas as informações tendentes à descoberta da existência de um crime e de quem são os seus agentes.
Aliás, isso mesmo é sua obrigação expressa, conforme resulta, essencialmente, do artº 55º, nº 2, que estabelece o seguinte:
Compete em especial aos órgãos de polícia criminal, mesmo por iniciativa própria, colher notícia dos crimes e impedir quanto possível as suas consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo os actos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova.
E atente-se também nos seguintes preceitos:
Artigo 249.º
Providências cautelares quanto aos meios de prova
1 - Compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.
2 - Compete-lhes, nomeadamente, nos termos do número anterior:
(…)
3 - Mesmo após a intervenção da autoridade judiciária, cabe aos órgãos de polícia criminal assegurar novos meios de prova de que tiverem conhecimento, sem prejuízo de deverem dar deles notícia imediata àquela autoridade.

Artigo 250.º
8 - Os órgãos de polícia criminal podem pedir ao suspeito, bem como a quaisquer pessoas susceptíveis de fornecerem informações úteis, e deles receber, sem prejuízo, quanto ao suspeito, do disposto no artigo 59.º, informações relativas a um crime e, nomeadamente, à descoberta e à conservação de meios de prova que poderiam perder-se antes da intervenção da autoridade judiciária.

Artigo 253.º
1 - Os órgãos de polícia criminal que procederem a diligências referidas nos artigos anteriores elaboram um relatório onde mencionam, de forma resumida, as investigações levadas a cabo, os resultados das mesmas, a descrição dos factos apurados e as provas recolhidas.
2 - O relatório é remetido ao Ministério Público ou ao juiz de instrução, conforme os casos.

Quer dizer, os OPC não podem desprezar toda e qualquer informação que reputem como útil para a descoberta do crime e dos seus agentes, sempre respeitando os limites dos direitos das pessoas, em especial os dos suspeitos.
Por seu lado, os Tribunais, respeitadas apenas as excepções das provas proibidas, devem tomar em atenção todas as provas que lhe chegarem, por qualquer via.
A grande maioria dos crimes - homicídios, violações, abusos sexuais, furtos, falsificações, contrafacções, violações ambientais, etc. - são praticados sem a presença de testemunhas, pelo que, a seguirem-se certos entendimentos, quase todos ficavam sem punição!
.
A testemunha não conta, de uma posição exterior aos factos que relata, que determinada pessoa lhe disse que o arguido reivindicou ter sido participante no furto e que indicou, até, os bens furtados e o seu destino: não, a testemunha foi o interlocutor imediato do confitente e, na posse das informações ouvidas do alegado autor, …lá foi recuperar parte dos seus bens!!!

Questão diferente - e tudo indica que foi a partir dela que nasceu a confusão da decisão recorrida - é a da prova dos factos imputados ser (também) alcançada através de prova indirecta. Sobre os momentos concretos, temporais e circunstanciais do furto, isto é, da apropriação dos bens pelos arguidos, entenda-se!
Para além da prova directa do facto, a apreciação dos Tribunais pode assentar em prova indirecta ou indiciária, a qual se faz valer através de presunções - Nos termos do artº 349º do Código Civil, presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido..
Por indícios, devem entender-se todas as circunstâncias conhecidas e provadas, a partir das quais, mediante raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão sobre um outro facto: a indução parte do particular e chega ao geral.
Quando, em determinadas circunstâncias, não se alcança prova directa sobre alguns factos, têm eles necessariamente de ser retirados ou ilididos dos factos objectivos e dados como provados, vistos à luz da normalidade das coisas, e assim se atingindo a verosimilhança ou verdade daqueles.
A falta de prova directa da autoria de um furto - que é sempre cometido às ocultas -, não impede um juízo de afirmação, desde que demonstrável, através (além do mais) de indícios, dentre os quais sobreleva a apreensão dos bens furtados por indicação directa do próprio arguido.
É claro que, no que toca ao momento da subtracção, o que se passa no caso presente é que apenas há provas indirectas: as testemunhas não viram o arguido (e os outros) a apropriar-se dos bens, mas souberam dele (e nisso foram isentos e credíveis) que os bens foram furtados trocados por droga em certa casa e com certa pessoa, alcançando-se, por via disso, a sua recuperação, o que tudo obriga o Tribunal a juntar os dados de facto e concluir se foi ou não o arguido o autor (ou co-autor) do furto.
Aqui, no caso concreto, há prova directa da existência de um certo edifício onde labora uma padaria; da existência de um computador, de uma caixa UPS - Acrónimo de Uninterruptible Power Supply, que é uma unidade de alimentação eléctrica sem interrupções., de um cofre azul, etc., etc.; da subtracção desses bens; do contacto que o ofendido, auxiliado por outrem, fez junto de um terceiro sobre a possível autoria da subtracção; da conversa havida com o arguido; da reivindicação deste, de viva voz, perante três pessoas, de que foi um dos subtractores; da ida a Braga, à casa indicada como local de receptação dos bens; da recuperação destes…
Enfim, só falta rematar, com apelo às regras da experiência comum e com juízos indutivos, quem foi o ladrão! Ou seja, para além das provas directas, é necessário agora, que se usem as provas indirectas ou indiciárias: os preceitos acima citados cobrem a legalidade dessas provas.
É só esse trabalho que o Tribunal tem que fazer. Como dizia Enriço Ferri, Discursos de Acusação, a rainha das provas é a lógica humana.

Por tudo isto, já se alcança a bondade da tese do Ilustre Procurador Geral-Adjunto, ou seja, a de que se verifica o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, vício esse que deve agora ser corrigido pelo mesmo Tribunal, que vai partir da legalidade das provas em conformidade com os fundamentos deste acórdão, e ao que se seguirá a fixação consequente da matéria de facto e bem assim a sua fundamentação, tudo como determina o artº 374º, nº 2.
Por outras palavras, o Tribunal recorrido como que ainda não terminou o julgamento, indo prossegui-lo em obediência à decisão deste Tribunal de recurso e a final se verá se os sujeitos processuais se conformam ou não com a nova decisão. Aqui, neste momento processual apenas cabe definir a validade de determinadas provas; ao Tribunal recorrido cabe agora analisá-las e decidir como melhor entender.
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Deixa-se aqui mais uma nota, que se nos afigura vir a ter alguma utilidade.
Trata-se do entendimento que temos (obviamente não vinculativo) sobre os efeitos que a nova decisão pode ter quanto aos demais factos conhecidos em julgamento, quer quanto ao arguido recorrido, quer quanto aos arguidos não recorridos.
Abrangendo o julgamento quatro ocorrências, o recurso, relembre-se, apenas foi interposto sobre os factos relativos ao furto na Pacal em 15-11-06 e, deste, restrito à reclamada autoria do arguido José.
O artº 402º, nº 3, diz que o recurso interposto apenas contra um dos arguidos, em casos de comparticipação, não prejudica os restantes.
E o artº 403º, nº 3, estabelece que a limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida.
A ordenação sistemática destes preceitos faz, quanto a nós, com que o do artº 403º seja condicionado pelo do artº 402º, ou seja, delimitado o âmbito do recurso - a um só dos arguidos -, só dentro desse âmbito é que se repercute o que se vier a decidir, pois só no objecto do recurso é que se repercutem as consequências legalmente impostas. O preceito fala expressamente em toda a decisão recorrida e não toda a decisão proferida.
Assim, em princípio, os factos a conhecer na nova decisão serão apenas aqueles com os quais o Ministério Público não se conformou.

ACÓRDÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida e, declarando-se a legalidade das provas em conformidade com os fundamentos deste acórdão, deve o Tribunal recorrido, nos termos do artº 374º, nº 2, fixar a consequente matéria de facto e a sua fundamentação, proferindo, pois, nova decisão subordinada à orientação interpretativa acima exposta.
Sem custas.

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1 - Não é só assim quanto aos depoimentos de testemunhas comuns, mas também no que toca aos depoimentos dos agentes policiais.
Sobre a matéria das chamadas conversas “informais”, atente-se nos seguintes arestos:
ACSTJ 30.09.1998, Processo n.º 366/98 - 3.ª Secção - Relator: Cons. Martins Ramos:
II - Nada impede que os agentes da PJ possam ser ouvidos como testemunhas sobre factos de que tomaram conhecimento directo mercê de outras diligências de investigação que não as proibidas pelo art.º 356, n.º 7, do CPP.

ACSTJ 13.05.1999, Proc. n.º 201/99 - 3.ª Secção - Relator: Cons. Hugo Lopes:
I - Os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre os factos de que tenham conhecimento directo por meio diverso das declarações ou depoimentos reduzidos a auto, designadamente sobre o relato de conversas informais que tenham tido com o arguido.

ACSTJ 17-11-2004, Proc. n.º 225/04 - 3.ª Secção – Relator: Consº Soreto de Barros:
I - Se as testemunhas se limitaram a depor sobre uma situação de facto que, directa e pessoalmente constataram - ou de reproduzir "conversas informais" ou declarações que devessem ser levadas a auto, mas, antes, de relatar um comportamento do arguido - que percepcionaram durante uma diligência de reconstituição, não merece censura a valoração desses depoimentos.

Ac. S.T.J., de 20-04-06 – dgsi.pt – 06P363 – Consº Rodrigues da Costa:
23 - A lei só exclui o testemunho das entidades policiais que verse o conteúdo de declarações por elas tomadas, sendo completamente descabido que as referidas entidades não pudessem depor sobre todos aqueles factos em relação aos quais o seu posicionamento não foi outro senão o de observadoras ou de intervenientes e observadoras, que, por terem neles participado, tiveram desses factos um conhecimento privilegiado.

A linha jurisprudencial acima citada é a única que está em conformidade com as prescrições legais e com a realidade a que estas se aplicam, sob pena de obstaculização ou paralisação total da investigação policial e de condenações em casos de prova meramente indiciária, sendo absolutamente desnecessário reforçar esta afirmação com situações quotidianas.
Os agentes dos OPC não terão outra alternativa, na grande maioria dos casos que investigam, senão aproveitarem todas as informações tendentes à descoberta da existência de um crime e de quem são os seus agentes.
Aliás, isso mesmo é sua obrigação expressa, conforme resulta, essencialmente, do artº 55º, nº 2, que estabelece o seguinte:
Compete em especial aos órgãos de polícia criminal, mesmo por iniciativa própria, colher notícia dos crimes e impedir quanto possível as suas consequências, descobrir os seus agentes e levar a cabo os actos necessários e urgentes destinados a assegurar os meios de prova.
E atente-se também nos seguintes preceitos:

Artigo 249.º
Providências cautelares quanto aos meios de prova
1 - Compete aos órgãos de polícia criminal, mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária competente para procederem a investigações, praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.
2 - Compete-lhes, nomeadamente, nos termos do número anterior:
(…)
3 - Mesmo após a intervenção da autoridade judiciária, cabe aos órgãos de polícia criminal assegurar novos meios de prova de que tiverem conhecimento, sem prejuízo de deverem dar deles notícia imediata àquela autoridade.

Artigo 250.º
8 - Os órgãos de polícia criminal podem pedir ao suspeito, bem como a quaisquer pessoas susceptíveis de fornecerem informações úteis, e deles receber, sem prejuízo, quanto ao suspeito, do disposto no artigo 59.º, informações relativas a um crime e, nomeadamente, à descoberta e à conservação de meios de prova que poderiam perder-se antes da intervenção da autoridade judiciária.

Artigo 253.º
1 - Os órgãos de polícia criminal que procederem a diligências referidas nos artigos anteriores elaboram um relatório onde mencionam, de forma resumida, as investigações levadas a cabo, os resultados das mesmas, a descrição dos factos apurados e as provas recolhidas.
2 - O relatório é remetido ao Ministério Público ou ao juiz de instrução, conforme os casos.

Quer dizer, os OPC não podem desprezar toda e qualquer informação que reputem como útil para a descoberta do crime e dos seus agentes, sempre respeitando os limites dos direitos das pessoas, em especial os dos suspeitos.
Por seu lado, os Tribunais, respeitadas apenas as excepções das provas proibidas, devem tomar em atenção todas as provas que lhe chegarem, por qualquer via.
A grande maioria dos crimes - homicídios, violações, abusos sexuais, furtos, falsificações, contrafacções, violações ambientais, etc. - são praticados sem a presença de testemunhas, pelo que, a seguirem-se certos entendimentos, quase todos ficavam sem punição!

2 - Nos termos do artº 349º do Código Civil, presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
3 - Acrónimo de Uninterruptible Power Supply, que é uma unidade de alimentação eléctrica sem interrupções.