Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
152/04-2
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
TRADUÇÃO DE DOCUMENTOS
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
SUB-ROGAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/03/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Sumário: I – As nulidades da sentença devem ser encaradas à semelhança das nulidades insanáveis do petitório (artº 193º C.P.Civ.) – são nulidades de tal forma graves que tornam imprestável, imperceptível a peça a que se reportam.
II – O disposto nos artºs 139º e 140º nº1 C.P.Civ. não impõe a tradução dos documentos em língua estrangeira existentes no processo, se tal tradução for acessível a todos os intervenientes no processo.
III – Para se afirmar um juízo de prova de determinado facto, não é exigível que se afirme a certeza absoluta sobre o mesmo, mas apenas que sobre ele incide um alto grau de probabilidade de ocorrência pretérita, juízo formulado com base em máximas de experiência comum e posto que sejam inexistentes ou irrelevantes as provas divergentes das apresentadas.
IV – Tendo o acidente ocorrido por força da existência de uma vala aberta na via pública, não sinalizada, e ainda que a sinalização das obras fosse, por norma regulamentar, atribuída à Câmara Municipal, pode ser responsabilizada pelos danos ocorridos a veículo automóvel também a pessoa jurídica que procedia a tais obras, através de trabalhadores seus no local, se as circunstâncias demonstram que a normalidade da vida e a diligência do “bom pai de família” (artº 487º nº2 C.Civ.) impunham que as mesmas obras se encontrassem sinalizadas.
V – Nada obsta a que o mesmo sujeito se possa configurar em concreto como sub-rogado e titular de um direito de regresso, apenas se justificando que a sub-rogação tenha por limite o montante do direito de regresso.
Decisão Texto Integral: Acordão no Tribunal da Relação de Guimarães

Os Factos
Recurso de apelação interposto na acção com processo sumário nº.../2002, do 2º Juízo da Comarca de Vila Verde.
Autora – "A".
Réus – "B" e "C".

Pedido
Que os Réus sejam solidariamente condenados a pagar à Autora a quantia de Esc.562.309$00 (€ 2 804,79), acrescida de € 951,54 (juros vencidos à data da propositura da acção), quantia acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação.
Tese da Autora
No dia 13/8/99, cerca das 15,00H., ocorreu um acidente na estrada municipal de ..., concelho de Terras de Bouro, no qual interveio o veículo propriedade de "D", proprietário que possuía seguro na Autora contra os riscos de choque colisão ou capotamento.
Tal veículo caiu numa vala aberta pela 2ªRé, que efectuava no local trabalhos de alargamento da via e reabilitação, todavia sem qualquer sinalização, facto que tornou inevitável o acidente.
O montante dos danos foi suportado pela Autora, por via do citado contrato de seguro.
A responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a realização das ditas obras havia sido transferida para a Ré seguradora.
A Autora encontra-se sub-rogada no montante pago ao respectivo segurado.
Tese da Ré "B"
A co-Ré não efectuou na via pública os trabalhos invocados pela Autora.
A apólice de seguro invocada pela Autora para demandar a Ré titula seguro de Responsabilidade Civil Empresarial, que não confere à 1ª Ré legitimidade para ser demandada pelos factos alegados na P.I., dado tratar-se de um seguro facultativo.
A cobertura do seguro é excluída pelo contrato, no caso de o segurado não sinalizar correctamente as obras.
Aceita a ocorrência e a versão do acidente apresentada pela Autora.


Tese da Ré "C"
Desconhece o pagamento invocado pela Autora ao respectivo segurado.
A culpa na ocorrência do acidente ficou a dever-se em exclusivo à condução do veículo de matrícula francesa, por descontrolo, já que as obras se encontravam devidamente sinalizadas.

Sentença
Na sentença proferida pelo Mmº Juiz “a quo”, com fundamento em não ter a Autora provado ter cumprido a obrigação alegadamente sub-rogada, bem como por não ter demonstrado que tivesse ocorrido transferência do crédito através de declaração expressa (artº 590º nº2 C.Civ.), a acção foi julgada integralmente improcedente e os Réus absolvidos do pedido.

Conclusões do Recurso do Apelante Autor
1 - O presente recurso vem interposto da sentença proferida em .../7/2003, nos autos de acção sumária que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Vª Verde, sob o nº.../2002.
2 – Salvo o devido respeito, que é muito, o douto Tribunal errou na apreciação da prova junta aos autos e produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
3 – Os documentos juntos aos autos aquando da elaboração da Petição Inicial atestam a ocorrência de danos materiais, nomeadamente o documento junto sob o nº3 (o relatório de peritagem) e a factura da oficina, junta também a esse articulado sob o nº4, confirmam a ocorrência dos danos, o posterior reboque do veículo para a oficina e a reparação desses mesmos danos.
4 – Ao que acrescem os depoimentos das testemunhas proferidos perante o douto Tribunal “a quo”, pois apesar de, na maioria dos casos de acidente de viação, não existirem testemunhas presenciais (ou, havendo-as, são ocupantes dos veículos, o que significa o mesmo pois, por natureza, são testemunhas parciais), existem contudo testemunhas que tiveram algum contacto, quer com o sinistro, quer com os danos dele decorrentes, sendo como tal o seu testemunho idóneo e igualmente preciso.
5 – Ouvidas as testemunhas ... Rodrigues e ... Chérel, surge assim como provado o reencaminhamento da viatura francesa para a oficina de mecânica da marca Renault, em Braga, tendo neste local sido a mesma reparada a fim de poder circular e retornar a França, local onde reside o seu proprietário, sendo asrespectivas despesas suportadas pela Companhia de Seguros Recorrente, em cumprimento do contrato de seguro celebrado.
6 – Pelo que se impõe decisão contrária à que foi tomada na apreciação da veracidade dos factos contidos na douta sentença e na consideração da demonstração da reparação ou não do veículo e da cobertura pelo contrato de seguro celebrado com a Companhia de Seguros ora Recorrente.
7 – Salvo melhor opinião, erra novamente a mui douta sentença de que aqui se recorre, quanto à aplicação do Direito, ao enquadrar a presente situação de facto na previsão do artº 590º nº2 C.Civ. e não no artº 441º C.Com., artigo específico que regulamenta o contrato de seguro.
8 – O artº 441º, que regulamenta especificamente o Contrato de Seguro, adaptando como tal a figura de transmissão das obrigações da sub-rogação às suas circunstâncias particulares, é, perante o artº 590º, lei especial, sendo o artº 590º lei geral com aplicação às restantes relações contratuais, não regulamentadas por lei especial. De acordo com o critério da especialidade, a lei especial prevalece sobre a lei geral, conforme o artº 7º nº3 C.Civ.
9 – Analisando o artº 441º C.Com., sempre se concluirá que essa sub-rogação opera automaticamente, ou seja, logo que um pagamento indemnizatório seja efectuado pela seguradora, pois “o segurador que pagou fica sub-rogado em todos os direitos do segurado contra o terceiro causador do sinistro...” – cf. artº 441º. Não sendo como tal necessária qualquer declaração expressa de vontade emitida pelo segurado, conforme a douta sentença recorrida quer erradamente fazer crer. Ademais, sempre se dirá que a presente sentença se encontra ferida de nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do artº 668º nº1 al.d) C.P.Civ. Ao analisar a decisão de que se recorre, deparamo-nos com inúmeros factos dados como provados, nos quais podemos vislumbrar os elementos integradores da responsabilidade civil extra-contratual prevista no artº 483º C.Civ., sendo eles o facto, a ilicitude, a culpa, o prejuízo e o nexo de causalidade, aos quais não é atribuído qualquer tratamento jurídico.
10 – Estando nós perante uma causa de pedir complexa, já que é constituída pelo acidente, pelos prejuízos, pela culpa ou risco e pelo contrato de seguro, para o bom julgamento da causa todos esses elementos deverão ser correctamente analisados pelo julgador que aferirá da sua procedência, ou não. Porém, tal não sucedeu na presente sentença.

Os Apelados pugnam pela manutenção do decidido.

Factos Apurados em 1ª Instância
1 – No dia .../8/99, pelas ...H., ocorreu um acidente de viação na estrada municipal de ..., sita no lugar de ..., em Terras de Bouro.
2 – O acidente envolveu o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ....
3 – O veículo era propriedade de "D" e, no momento do acidente, era conduzido por "E".
4 – No momento em que ocorreu o acidente, a 2ª Ré procedia, na estrada em que ocorreu o acidente, a trabalhos relativos à empreitada de “Alargamento e Reabilitação da E.M. ... – ..., com ligação a ...”.
5 – A responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros com a realização de obras de construção civil pela Ré "F" havia sido transferida para a Ré "B", mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº....
6 – No local do acidente, a E.M. de ..., para quem circula no sentido ... – ..., descreve uma curva à esquerda.
7 – No local do acidente, a E.M. de ... é composta por duas hemi-faixas de rodagem, permitindo assim o trânsito de veículos em ambos os sentidos.
8 – No local do acidente, a estrada tem uma faixa de rodagem com a largura de cerca de 5,20m, tendo assim cada hemi-faixa de rodagem uma largura de cerca de 2,60m.
9 – No local do embate existia uma retroescavadora, em local que não foi concretamente apurado, próximo da vala que estava a ser aberta pela Ré "C".
10 – O veículo francês circulava no sentido ... – ....
11 – Na hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito do veículo francês encontrava-se aberta uma vala destinada à colocação de condutas.
12 – A obra estava sinalizada no princípio e no fim, um troço que abrangia cerca de 15kms. Não existia sinalização no local em que estava a ser aberta a vala.
13 – A existência de uma vala aberta no lado direito da faixa de rodagem, considerando o sentido de trânsito do veículo francês, não tinha igualmente qualquer espécie de sinalização.
14 – Ao passar pela E.M., na zona em que decorriam as obras promovidas pela 2ª Ré, o veículo francês caiu na vala.
15 – A queda do veículo francês na vala provocou elevados danos ao nível da dianteira direita, rodado, suspensão e amortecedor.
16 – Do embate resultaram graves danos na dianteira do veículo francês, todos eles constantes do relatório de peritagem que se junta como doc. nº3.
17 – À data do acidente, o proprietário do veículo francês havia celebrado com a Autora um contrato de seguro, cobrindo entre outros os danos que pudessem sobrevir ao referido veículo em consequência dos riscos de choque, colisão ou capotamento, titulado pela apólice nº....
18 – O veículo QZ era conduzido por "E", esposa do dono do veículo, que, nesse momento, também circulava no mesmo.
19 – Era o "D" o titular do contrato de seguro que tinha por objecto o veículo QZ.
20 – O tempo estava bom.
21 – Pelo menos dois veículos que precederam o QZ conseguiram evitar essa vala.
22 – A Ré "C" havia efectuado uma pequena vala que atravessava a estrada de um berma até à outra.
23 – O QZ circulava nas circunstâncias acima apuradas.
24 – O acidente ocorreu numa curva à esquerda, à qual se seguia uma curva à direita, atento o sentido de marcha do QZ.
27 – Encontra-se estipulado no artº 5º das condições particulares da apólice nº... a exclusão da cobertura no caso de o segurado não sinalizar devidamente as suas obras, de acordo com o estabelecido pelo D.-L. nº33/88 de 12/9, entretanto substituído pelo Dec. Regulamentar nº22-A/98 de 1 de Outubro.

Fundamentos
As questões levantadas pelo recurso podem resumidamente ser elencadas pela seguinte forma, seguindo, para o efeito, o resumo da própria Recorrente:
- Nos termos do disposto nos artºs 668º nº1 al.b), 716º nº1 e 721º nº2 C.P.Civ., a sentença recorrida é nula, por não se pronunciar sobre a atribuição da responsabilidade civil pela produção do sinistro?
- A decisão sobre a matéria de facto, nos termos do artº 712º nº1 al.a) C.P.Civ. e face aos elementos probatórios constantes dos autos, erra na apreciação da prova, designadamente quanto às respostas dadas à matéria dos artºs 22º e 24º da Petição?
- A decisão sobre o aspecto jurídico da causa não deveria ter ignorado a existência do artº441º C.Com., bem como os contornos da figura da sub-rogação no âmbito do Direito dos Seguros?
Apreciemo-las de seguida.
I
Na exegese do disposto no artº 668º nº1 al.b) C.P.Civ., de há muito se vem entendendo que apenas a ausência de qualquer fundamentação é susceptível de conduzir à nulidade da decisão.
A fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso (por todos, Teixeira de Sousa, Estudos, pg.222).
As nulidades da sentença devem ser encaradas à semelhança das nulidades insanáveis do petitório (artº 193º C.P.Civ.) – são nulidades de tal forma graves que tornam imprestável, imperceptível a peça a que se reportam.
No caso dos autos, o Mmº Juiz “a quo” explicou detalhadamente as razões pelas quais absolveu do pedido as Rés: a não prova dos fundamentos da sub-rogação invocada pela Autora, quer por via da não prova do cumprimento da obrigação invocadamente sub-rogada, quer por via de inexistência de declaração expressa do sub-rogante (artº 590º nº2 C.Civ.); aliás, esclareceu, dispensou-se de apreciar os fundamentos da responsabilidade civil, por tal se tornar despiciendo, face à citada não prova da sub-rogação.
Não se vislumbra qualquer nulidade na decisão, que explicou detalhadamente todos os seus fundamentos de facto e de direito, sendo coerente com tais fundamentos.
Pode discordar-se dos ditos fundamentos, é certo, mas tal é matéria atinente ao mérito da decisão e do presente recurso.
Improcede a alegação do recurso, neste ponto.
II
No que concerne as respostas à matéria de facto proferidas em 1ª instância, a Autora insurge-se contra as respostas aos artºs 22º e 24º da P.I., por entender que quer os documentos juntos aos autos com a P.I., quer os depoimentos das testemunhas ... Rodrigues e ... Chérel proporcionariam resposta “provado” aos ditos artigos, ao contrário da resposta proferida, “não provado”.
Ora, desde logo se conclua com meridiana clareza que razão assiste à Recorrente.
No artº 22º da P.I. alegou-se: “O veículo francês foi efectivamente reparado, tendo o valor de todos os danos ascendido à quantia de Esc.562.309$00”.
Esta matéria foi corroborada pela prova produzida no processo. Assim:
- as testemunhas ... Silva e ... Andrade (trabalhadores da obra da 2ª Ré) confirmaram que o veículo ficou imobilizado, após ter caído na vala aberta e, prosseguindo a marcha, por força da respectiva velocidade, veio a imobilizar-se à frente, não se encontrando em condições de prosseguir a respectiva marcha;
- a testemunha ... Rodrigues, que seguia no veículo conduzido por ... Jacob, declarou que o carro ficou imobilizado (tinha a parte da frente partida, não andava), tendo sido chamado um reboque da cidade de Braga, que transportou o veículo, mais tarde, para esta cidade, para as oficinas da Renault;
- a testemunha ... Jacob declarou igualmente que o veículo ficou danificado “por baixo”, explicando que “partiu um semi-eixo”, não podendo prosseguir a marcha;
- finalmente a testemunha ... Chérel, que possui uma empresa independente de peritagens, declarou que um seu funcionário, o sr. ... Campos, peritou o veículo na cidade de Braga; ele próprio testemunha confirmou o estado em que o veículo se encontrava, bem como a perícia realizada, embora o haja feito com base em fotografias do veículo; embora com o auxílio de documentos que consultou (foi ouvido por tele-conferência), a testemunha confirmou o teor da perícia junta como documento nº3 com a Petição Inicial; inquirido sobre a razão pela qual a factura proveniente da oficina Renault em Braga , junta como documento nº4, com a P.I., apresentava um valor superior ao da perícia, bem como a aplicação de mais material na viatura sinistrada, a testemunha declarou ser normal tal discrepância, pois que a necessidade de aplicação de determinadas peças apenas se poderá avaliar mais concretamente quando efectuada a reparação (a perícia constitui uma estimativa de custos);
- em matéria de prova documental, salienta-se a referida factura da oficina Renault de Braga (doc. nº4), documento esse que não foi objecto da mais pequena impugnação positiva pela prova produzida ao longo de todo o processo (limitando-se as partes à impugnação genérica do respectivo conteúdo, por desconhecimento, nos articulados);
- salienta-se ainda o documento de fls. 33, no qual o proprietário do veículo começa por declarar ter recebido da Autora a soma de FF 18 398,19, representando a indemnização devida pelo sinistro de .../8/99.
Este acervo de provas, não contraditado por outras provas positivas, é francamente suficiente para que se possa responder “provado” à matéria do artº 22º.
Salienta-se que o disposto nos artºs139º e 140º nº1 C.P.Civ. (“nos actos judiciais usar-se-à a língua portuguesa”; “quando se ofereçam documentos escritos em língua estrangeira que careçam de tradução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento de alguma das partes, ordena que o apresentante a junte”) não impõe a tradução dos documentos em língua estrangeira existentes no processo, se tal tradução for acessível a todos os intervenientes no processo (Lopes do Rego, Comentários ao Código, artº140º); de facto, a norma aplica-se aos “actos” – os documentos valem pela respectiva genuinidade, ou seja, pela respectiva apresentação em língua estrangeira, se for o caso, e se alguma das partes omite a tradução de um documento de fácil acessibilidade e inteligibilidade pelos termos usados, bem como de reduzida extensão, pode o juiz simplesmente dispensar a tradução.
Por outro lado, se é certo que a 2ªRé veio, no respectivo articulado, impugnar o documento, requerendo a respectiva tradução, não é menos certo que o Tribunal “a quo” nada disse no processo acerca do requerido, invocando apenas a necessidade de tradução no momento de responder à matéria de facto; nesse sentido, nunca se encontrou a apresentante do documento, a Autora / Recorrente obrigada à tradução do dito documento e, tratando-se de uma nulidade secundária, incumbia à interessada na respectiva sanação ter suscitado o vício – artºs 201º nº1, 203º nº1 e 205º nº1 C.P.Civ.
No que concerne o artº 24º da P.I. alegou-se: “Ao abrigo do contrato de seguro referido no artº anterior desta P.I., a A. suportou o preço da reparação, pagando-o ao proprietário do veículo francês”. Respondeu-se a tal matéria: “não provado”.
Sobre esta matéria a única prova positiva produzida no processo foi o teor do documento junto como doc. nº6, com a P.I.
O referido documento, assinado pelo proprietário do veículo "D", contém uma declaração deste no sentido de ter recebido da Autora a quantia de FF 18 398,19, declarando a Autora sub-rogada, até ao referido montante, no direitos que ao referido proprietário do veículo assistissem contra o ou os responsáveis pelo acidente.
Ignorando-se o exacto câmbio da moeda francesa, relativamente ao da moeda portuguesa, no momento do pagamento da factura da empresa ...auto, é seguro que o valor citado em moeda francesa é sensivelmente, em análise perfunctória, o respectivo equivalente em escudos (Esc. 562.309$00).
Conjugando tal análise com o facto de tal documento - declaração do proprietário do veículo não ter sido objecto de qualquer impugnação positiva pelas partes contra quem foi apresentado, designadamente através do depoimento das testemunhas apresentadas pela própria Autora, é o mesmo suficiente, por acordo com um alto grau de probabilidade, para que possa ser respondido “provado” à citada matéria de facto, ao contrário do que foi respondido em 1ª instância.
A convicção ora formada, corresponde, ao igual da convicção formada em 1ª instância, a uma livre, embora motivada, apreciação da prova – artº 655º nº1 C.P.Civ. – fundada em máximas da experiência comum (da cultura do homem médio numa determinada situação espaço - temporal), que estabelecem inferências vinculativas dos factos “x” (as provas, os factos conhecidos) para os factos “y” (os factos ignorados, a provar).
Corresponde, por outro lado, a um critério unívoco de inferência presuntiva (não se registaram provas divergentes das apresentadas, apenas se poderia questionar se as provas apresentadas seriam duvidosas, vagas ou contraditórias).
Segundo M. Taruffo, La Prueba de Los Hechos, Madrid, 2002, pg. 294, “a eleição da melhor alternativa para a decisão não é completamente predeterminada nem inteiramente livre, não é cálculo, nem arbítrio; pode ser, em alternativa, razoável se a valoração tem em conta a análise das situações probatórias e a forma como nestas se configura a relação inferencial entre elementos de prova e hipóteses sobre o facto, bem como a análise sobre se eleição final se realiza sobre parâmetros que partem daquela relação”.
Esta instância, tendo procedido à análise de todos os elementos de prova produzidos, designadamente os elementos testemunhais e documentais apresentados, altera as respostas aos artºs 22º e 24º da P.I., que considera “provados”.
III
É o seguinte o elenco dos factos provados relevantes para a decisão de direito:
1 – No dia .../8/99, pelas ...H., ocorreu um acidente de viação na estrada municipal de ..., sita no lugar de ..., em Terras de Bouro.
2 – O acidente envolveu o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ...QZ....
3 – O veículo era propriedade de "D" e, no momento do acidente, era conduzido por "E".
4 – No momento em que ocorreu o acidente, a 2ª Ré procedia, na estrada em que ocorreu o acidente, a trabalhos relativos à empreitada de “Alargamento e Reabilitação da E.M. ... – ..., com ligação a ...”.
5 – A responsabilidade civil pelos danos causados a terceiros com a realização de obras de construção civil pela Ré "F" havia sido transferida para a Ré "B", mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº....
6 – No local do acidente, a E.M. de ..., para quem circula no sentido ... – ..., descreve uma curva à esquerda.
7 – No local do acidente, a E.M. de ... é composta por duas hemi-faixas de rodagem, permitindo assim o trânsito de veículos em ambos os sentidos.
8 – No local do acidente, a estrada tem uma faixa de rodagem com a largura de cerca de 5,20m, tendo assim cada hemi-faixa de rodagem uma largura de cerca de 2,60m.
9 – No local do embate existia uma retroescavadora, em local que não foi concretamente apurado, próximo da vala que estava a ser aberta pela Ré "C".
10 – O veículo francês circulava no sentido ... – ....
11 – Na hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito do veículo francês encontrava-se aberta uma vala destinada à colocação de condutas.
12 – A obra estava sinalizada no princípio e no fim, um troço que abrangia cerca de 15kms. Não existia sinalização no local em que estava a ser aberta a vala.
13 – A existência de uma vala aberta no lado direito da faixa de rodagem, considerando o sentido de trânsito do veículo francês, não tinha igualmente qualquer espécie de sinalização.
14 – Ao passar pela E.M., na zona em que decorriam as obras promovidas pela 2ª Ré, o veículo francês caiu na vala.
15 – A queda do veículo francês na vala provocou elevados danos ao nível da dianteira direita, rodado, suspensão e amortecedor.
16 – Do embate resultaram graves danos na dianteira do veículo francês, todos eles constantes do relatório de peritagem que se junta como doc. nº3.
17 – À data do acidente, o proprietário do veículo francês havia celebrado com a Autora um contrato de seguro, cobrindo entre outros os danos que pudessem sobrevir ao referido veículo em consequência dos riscos de choque, colisão ou capotamento, titulado pela apólice nº....
18 – O veículo QZ era conduzido por "E", esposa do dono do veículo, que, nesse momento, também circulava no mesmo.
19 – Era o "D" o titular do contrato de seguro que tinha por objecto o veículo QZ.
20 – O tempo estava bom.
21 – Pelo menos dois veículos que precederam o QZ conseguiram evitar essa vala.
22 – A Ré "C" havia efectuado uma pequena vala que atravessava a estrada de um berma até à outra.
23 – O QZ circulava nas circunstâncias acima apuradas.
24 – O acidente ocorreu numa curva à esquerda, à qual se seguia uma curva à direita, atento o sentido de marcha do ...QZ...
27 – Encontra-se estipulado no artº 5º das condições particulares da apólice nº... a exclusão da cobertura no caso de o segurado não sinalizar devidamente as suas obras, de acordo com o estabelecido pelo Dec. Regulamentar nº33/88 de 12/9, entretanto substituído pelo Dec. Regulamentar nº22-A/98 de 1 de Outubro.
28 – O veículo francês foi efectivamente reparado, tendo o valor de todos os danos ascendido à quantia de Esc.562.309$00.
29 - Ao abrigo do contrato de seguro referido em 17, a A. suportou o preço da reparação, pagando-o ao proprietário do veículo francês.
IV
À luz dos factos elencados, o resultado danoso para o património de "D", proprietário do veículo de matrícula francesa, poderá ser considerado uma violação ilícita do direito de outrem ou a violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios, na formulação do artº 483º nº1 C.Civ.?
Consideraremos que, na hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito do veículo francês se encontrava aberta uma vala destinada à colocação de condutas; que a obra estava sinalizada no princípio e no fim, um troço que abrangia cerca de 15kms, mas não existia sinalização no local em que estava a ser aberta a vala; que a existência de uma vala aberta no lado direito da faixa de rodagem, considerando o sentido de trânsito do veículo francês, não tinha igualmente qualquer espécie de sinalização, que, finalmente, ao passar pela E.M., na zona em que decorriam as obras promovidas pela 2ª Ré, o veículo francês caiu na citada vala.
Em matéria de causalidade, desde logo e em tese geral, subscrevemos integralmente a formulação de Meneses Cordeiro, Obrigações, II-339, quando entende que, se a causalidade é integrada num comportamento humano e, nesse sentido, é sujeita a um juízo de licitude, a “fórmula vazia” da adequação tem que ser preenchida por uma valoração, uma valoração que incide sobre o comportamento humano (e é negativa, se se seguir à letra o preceito legal do artº 563º C.Civ.): “a adequação não pode, a não ser para efeitos de discussão e esclarecimento analíticos, ser cindida do comportamento, tal como o não pode a culpa”.
Em termos práticos, aquele Autor divisa na caracterização, seja da causalidade, seja da culpa, uma complexidade singular, antecedida de uma valoração, na qual entram já conceitos ancorados na ordem jurídica; a caracterização dessas duas componentes do acto ilícito é assim aproximada, à semelhança do conceito de “faute”, na qual se fundamenta a responsabilidade na ordem jurídica francesa.
Ora, do acervo factual que se deve levar em consideração, resulta que as obras, consistentes na abertura de uma vala dentro da hemifaixa de rodagem destinada ao trânsito dos veículos que seguiam no sentido de marcha do acidentado, não se encontravam sinalizadas, que não fosse através da sinalização mais genérica para um troço de 15 kms de via. Por outro lado, a vala encontrava-se aberta numa curva à esquerda, à qual se seguia uma curva à direita, atento o sentido de marcha do ...QZ...
Tanto basta para que se possa concluir, em função da normalidade da vida, que a empresa Ré que levava a cabo as obras na via (os respectivos representantes) se comportaram por forma culposa, isto é, não revelaram a diligência que um bom pai de família revelaria no caso (artº 487º nº2 C.Civ.), diligência que teria imposto que as obras estivessem sinalizadas junto ao local da abertura da vala, e que tal comportamento se revelou a causa adequada do acidente; quando não bastasse a pré-sinalização ou sinalização estática vertical temporária, deveria a referida empresa ter providenciado pela presença de trabalhadores seus que, através de sinalização manual de carácter temporário, ou outra, alertassem para a existência de uma vala dentro da faixa de rodagem da estrada naquele concreto local, advertindo os condutores para procederem a uma condução ainda mais defensiva e cuidadosa.
A responsabilização da Ré é efectuada por via do disposto no artº500º nº1 C.Civ.

Ao tempo dos factos, vigorava o disposto no D.Reg. nº33/88 de 12 de Setembro.
Nos termos do artº1º do diploma, as obras e obstáculos ocasionais na via pública devem ser delimitados por sinalização temporária, tendo em vista prevenir os utentes do perigo que representam, nos termos definidos no Regulamento de Sinalização Temporária de Obras e Obstáculos na Via Pública, anexo diploma e que dele faz parte integrante”; por sua vez, nos termos do artº 2º nº1, a sinalização de carácter temporário compete à Junta Autónoma de Estradas e às câmaras municipais, conforme os casos, nos termos definidos para a sinalização de carácter permanente.
Ora, o que se verifica da análise do contrato de empreitada de obras públicas relativo à obra de “Alargamento e Reabilitação da EM ... – ...”, junta com a P.I., é que não se previu no teor do contratado que a implementação da sinalização da obra ficasse a cargo do adjudicatário (a 2ª Ré).
Terá a citada omissão algum relevo no caso concreto?
A resposta é seguramente negativa.
A normalidade da vida impõe-se aqui à violação em concreto de qualquer norma jurídica ou contratual, por forma a que se responsabilize a 2ª Ré, sendo certo que, à face dos supra citados normativos em vigor, quiçá também a Câmara Municipal que adjudicou a obra pudesse ter sido demandada em responsabilidade pela Autora.
Por outro lado, não deixa de se lembrar o conteúdo do disposto no artº4º nº1 D.Reg. nº33/88: “aqueles que, por acção ou omissão, derem causa a qualquer obstáculo localizado na via pública têm de o sinalizar por forma bem visível e a uma distância que permita evitar qualquer acidente, sem prejuízo da colocação do sinal de pré-sinalização de perigo sempre que o uso do mesmo seja obrigatório, nos termos do disposto no Decreto-Lei n.° 45 299, de 9 de Outubro de 1963”.
A norma, ainda que no caso concreto se afigure supletiva, relativamente à obrigação principal da entidade pública prevista no citado artº2º nº1, não deixaria de obrigar a 2ª Ré, não sendo lícito a esta Ré proceder a obras na via pública sem providenciar pela sinalização das mesmas obras.
Por último, há ainda que salientar que a 1ªRé não pode ser responsabilizada pela satisfação de qualquer indemnização à Autora.
Com efeito, o contrato de seguro que convencionou, na qualidade de seguradora, com a 2ª Ré estabelecia (condições particulares): “as garantias só funcionarão desde que o segurado sinalize devidamente as suas obras”.
O contrato de seguro que a Autora invocou, ligando a 1ª Ré seguradora à 2ªRé, não cobre, desta forma, a concreta ocorrência dos autos.
V
A totalidade dos prejuízos sofridos pelo proprietário do veículo de matrícula francesa ascende ao quantitativo de Esc. 562.309$00 (€ 2 804,79), quantia que vencerá juros de mora, à taxa legal, desde a citação (artº 805º nº3 C.Civ.), nada se tendo demonstrado em sede de interpelação prévia das Rés (cf. resposta negativa ao artº 26º da P.I.).
Vem igualmente questionada a legitimidade substantiva da Autora para peticionar das Rés o valor da indemnização, posto que não é lesada.
Nesse aspecto, a legitimidade da Autora decorre desde logo do disposto no artº 441º C.Com., norma que deverá ser interpretada no sentido de conceder ao sub-rogado que paga a indemnização o direito de accionar quaisquer responsáveis para com o segurado, ainda que simples responsáveis civis (cf. S.T.J.15/5/01 Col.II/82 e Ac.R.C. 5/6/01 Col.III/16).
O artº 441º cit. reza que “o segurador que pagou a deterioração ou a perda dos objectos segurados fica sub-rogado em todos os direitos do segurado contra terceiro causador do sinistro, respondendo o segurado por todo o acto que possa prejudicar esses direitos”.
Na exegese do normativo, escreveu Vaz Serra (Revista Decana, 94º/277 e 227, cit. in Ac.R.C. 5/6/01 supra): “O artº 441º C.Com. estabelece um direito de regresso do segurador contra o terceiro causador do acidente, sendo portanto primária a obrigação do terceiro responsável e subsidiária ou de garantia a do segurador, do que resulta que, se o terceiro indemnizar o lesado, exonera-se o segurador, ao passo que, se for o segurador quem indemniza, não se exonera o terceiro”.
“O segurador, ao fazer o seguro, pretende obrigar-se a suportar o encargo definitivo do prejuízo do segurado, apenas e na medida em que este não tenha direito de indemnização contra terceiro causador do dano, o que consegue atribuindo-se-lhe o direito de sub-rogação”.
Apesar de o preceito se limitar, nos seus termos literais, ao seguro de coisas, “é susceptível de interpretação extensiva, abrangendo os seguros de responsabilidade que à época da redacção do Código Comercial eram de diminuta relevância” (Moitinho de Almeida, O Contrato de Seguro, pgs.220 e 221).
Todavia, no caso que nos ocupa, não existe tanto um direito de regresso, na definição supra de Vaz Serra, uma obrigação subjectivamente complexa pela qual o devedor consegue, a posteriori, a repartição pelos implicados da prestação que a todos incumbe (cf. Meneses Cordeiro, Direito das Obrigações, II/§242), mas uma verdadeira sub-rogação pelo credor, nos termos do artº589º C.Civ. e em face do documento junto com a P.I., a fls.33 (aceitação de indemnização e sub-rogação nos direitos do credor).
Observe-se, a propósito, que nada obsta a que o mesmo sujeito se possa configurar em concreto como sub-rogado e titular de um direito de regresso, apenas se justificando que a sub-rogação tenha por limite o montante do direito de regresso.

A fundamentação poderá resumir-se por esta forma:
I – As nulidades da sentença devem ser encaradas à semelhança das nulidades insanáveis do petitório (artº 193º C.P.Civ.) – são nulidades de tal forma graves que tornam imprestável, imperceptível a peça a que se reportam.
II – O disposto nos artºs 139º e 140º nº1 C.P.Civ. não impõe a tradução dos documentos em língua estrangeira existentes no processo, se tal tradução for acessível a todos os intervenientes no processo.
III – Para se afirmar um juízo de prova de determinado facto, não é exigível que se afirme a certeza absoluta sobre o mesmo, mas apenas que sobre ele incide um alto grau de probabilidade de ocorrência pretérita, juízo formulado com base em máximas de experiência comum e posto que sejam inexistentes ou irrelevantes as provas divergentes das apresentadas.
IV – Tendo o acidente ocorrido por força da existência de uma vala aberta na via pública, não sinalizada, e ainda que a sinalização das obras fosse, por norma regulamentar, atribuída à Câmara Municipal, pode ser responsabilizada pelos danos ocorridos a veículo automóvel também a pessoa jurídica que procedia a tais obras, através de trabalhadores seus no local, se as circunstâncias demonstram que a normalidade da vida e a diligência do “bom pai de família” (artº 487º nº2 C.Civ.) impunham que as mesmas obras se encontrassem sinalizadas.
V – Nada obsta a que o mesmo sujeito se possa configurar em concreto como sub-rogado e titular de um direito de regresso, apenas se justificando que a sub-rogação tenha por limite o montante do direito de regresso.

Com os poderes que lhe são conferidos pelo disposto no artº 202º nº1 da Constituição da República Portuguesa, decide-se neste Tribunal da Relação:
Julgar parcialmente procedente, por provado, o recurso interposto pela Autora, em consequência condenar a Ré "C", a pagar à Autora a quantia total de Esc.562.309$00 (€ 2 804,79), quantia acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação.
Custas, em ambas as instâncias, por Autora e Ré "C", na proporção em que decaem.


Guimarães, 3/3/04
Vieira e Cunha
António Gonçalves
Narciso Machado