Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1794/03-2
Relator: ROSA TCHING
Descritores: EXPROPRIAÇÃO POR UTILIDADE PÚBLICA
TRIBUNAL COMPETENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA
Sumário: Para preparar e julgar a acção expropriativa, mesmo de valor superior à alçada da Relação, não tendo o recorrente (no requerimento de interposição do recurso) nem o recorrido ( na sua resposta) requerido a intervenção do tribunal colectivo, é competente o tribunal de comarca (de competência genérica ou cível), a que o processo de expropriação foi distribuído.

Para preparar e julgar a acção expropriativa, de valor superior à alçada da Relação, tendo uma das partes (o recorrente ou o recorrido) ou ambas requerido a intervenção do tribunal colectivo, são competentes as Varas (Cíveis ou de Competência Mista).
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães.


O Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação requereu a resolução do conflito negativo de competência criado entre o Ex.mo Juiz do 5º Juízo Cível da Comarca de Guimarães e o Ex. mo Juiz da 1ª Vara de Competência Mista de Guimarães, os quais se atribuem mutuamente a competência, negando a própria, para preparação e julgamento do recurso interposto da decisão arbitral proferida no processo de expropriação em que é expropriante IEP-Instituto das Estradas de Portugal e expropriados António ...e mulher, Maria ..., e Isabel ....

Notificados, os Juízes em conflito para responderem, só o Exmº Juiz do 5º Juízo Cível respondeu, pugnando pela atribuição da competência à 1ª Vara de Competência Mista de Guimarães.

O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, pronunciando-se no sentido da atribuição da competência ao 5º Juízo Cível da Comarca de Guimarães.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Tendo em conta a certidão junta a fls. 20 a 149 dos presentes autos, os factos a considerar para a resolução do presente conflito são os seguintes:

1º- A declaração de utilidade pública da expropriação foi declarada por despacho do Secretário de Estado das Obras Públicas, de 14 de Março de 2002, publicado no DR, II S, n.º 79, de 4 de Abril de 2002.
2º- O processo foi remetido aos Juízos Cíveis da Comarca de Guimarães pela expropriante para que lhe fosse adjudicada a propriedade da parcela expropriada.
3º- Distribuído o processo ao 5º Juízo Cível da Comarca de Guimarães, foi proferido despacho de adjudicação.
4º- O acórdão arbitral fixou o montante da justa indemnização em 167.342,48.
5º- A entidade expropriante recorreu da decisão arbitral, atribuindo a esse recurso o valor de 98.905,34.
6º- No seu requerimento de interposição de recurso, a entidade expropriante não requereu a intervenção do tribunal Colectivo.
7º- Foi proferido despacho a admitir tal recurso.
8º- Notificados, os recorridos/expropriados responderam e, neste seu articulado, também não requereram a intervenção do tribunal colectivo.

Nos termos do art. 61º,n.º2 da Constituição da República Portuguesa “ a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização”.
Consagra, assim, este preceito legal o princípio geral, segundo o qual a expropriação por utilidade pública implica sempre o pagamento de “justa indemnização” ou de “indemnização adequada”.
E foi precisamente a necessidade de estabelecer os pressupostos da declaração de utilidade pública e de fazer respeitar todos os princípios que acompanham o processo de expropriação que levou o legislador a adoptar um esquema de definição do objecto do processo e de intervenção das partes e do tribunal arbitral totalmente diferente da normal tramitação dos processos judiciais.
Estamos, pois, no âmbito de um processo especial, cuja tramitação e requisitos formais foram autonomizados do Código de Processo Civil e integrados num diploma avulso (Código das Expropriações).
E a este respeito, importa, desde logo, referir que ao caso dos presentes autos é aplicável o actual Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18/9, por ser o regime em vigor à data da declaração de utilidade pública Neste sentido, vide, entre muitos outros, Acórdão da Relação de Évora, de 12-5-94, in CJ, ano 1994, tomo III, pág. 269; Acórdãos da Relação de Lisboa, de 10-3-94, in CJ, ano 1994, tomo II, pág. 83 e de 24-3-94, in, CJ, ano 1994, tomo II, pág. 98. .
Assim, traçando a estrutura do processo de expropriação, diremos que este compreende duas fases: uma administrativa – que visa o acordo das partes quanto ao montante da indemnização ou a fixação da indemnização por arbitragem – e outra judicial, que tem como objectivo final a fixação, com observância do contraditório, da justa indemnização.
Esta Segunda fase inicia-se, de harmonia com o disposto no art. 58º do C. E., com o requerimento de interposição do recurso da decisão arbitral e abrange a resposta, produção de prova, avaliação, alegações escritas e sentença.
Naquela primeira fase administrativa, e por força do estabelecido no artigo 51º do C.E., só é permitida a intervenção do tribunal de comarca da situação do bem expropriado ou da sua maior extensão – tribunal de competência genérica (arts. 62º e 77º, n.º1, al. a) da Lei n.° 3/99, de 13/1- LOFTJ) ou tribunal cível, onde exista (arts. 96º, n.º1, al. c) e 99ºda LOFTJ).
E a este tribunal apenas compete adjudicar à entidade expropriante a propriedade e posse da parcela expropriada (n.º5 do citado art. 51º), decidir reclamações sobre irregularidades (art. 54º do C.E.) ou decidir o incidente de expropriação total (art. 55º do C. E.) Excepcionalmente, pode verificar-se a intervenção do tribunal de comarca: nos casos referidos no art. 42º, n.º2, sendo-lhe atribuídas as funções que cabem à entidade expropriante; por via incidental e para efeitos de avocação do processo de expropriação, nos termos do art. 51º, n.ºs 2 e 3; para efeitos de nomeação de curador provisório, de harmonia com o disposto no art. 41º e, ainda excepcionalmente e no âmbito de um processo autónomo em relação ao de expropriação, para efeitos de partilha em caso de desacordo relativamente à distribuição da indemnização pelos diversos interessados concorrentes, nos termos do art. 37º, n.º4. .
Mas, quer porque nos termos do disposto no art. 37º, n.º3 do C. E. cabe sempre recurso da decisão arbitral para o tribunal do lugar da situação dos bens ou da sua maior extensão, quer porque os arts. 58º e 60ºdo mesmo diploma legal permitem, respectivamente, ao recorrente e ao recorrido requererem a intervenção do tribunal colectivo, importa definir a competência do tribunal de comarca (de competência genérica ou competência cível) e das Varas (Cíveis ou de Competência Mista) para a tramitação da fase jurisdicional do processo de expropriação, ou seja, da acção expropriativa propriamente dita.
Que é ao juiz do tribunal de comarca (de competência genérica ou cível), onde o processo se encontra pendente, que cabe decidir sobre a admissibilidade do recurso, parece não haver qualquer tipo de dúvida, posto que isso decorre directamente do estabelecido nos artigos 51º, 52º e 58º e 59º.
Na verdade, o problema só se coloca quanto à posterior tramitação do recurso já admitido, incluindo a sua apreciação e decisão.
Para a resolução desta questão e uma vez que no caso em análise existem na circunscrição judicial onde o conflito foi suscitado, varas de competência mista e tribunais cíveis (cfr arts. 48º, al. a) e 56º, n.º1. als. g) e h) do DL n.º 286-A/99, de 31/5 - Reg. da LOFTJ), impõe-se analisar os normativos respeitantes á competência de cada um destes tribunais.

Sobre a competência das Varas, estipula o art. 97º da LOFTJ que:
“1 – Compete às varas cíveis:
a) A preparação e julgamento das acções declarativas cíveis de valor superior à alçada do tribunal da Relação em que a lei preveja a intervenção do tribunal colectivo;
(...)”;

Estabelece o artigo 99° da LOFTJ que " Compete aos juízos cíveis preparar e julgar os processos de natureza cível que não sejam de competência das varas cíveis e dos juízos de pequena instância cível."

E dispõe ainda o art. 106º, al. b) da LOFTJ que “Compete ao tribunal colectivo julgar as questões de facto nas acções de valor superior à alçada dos tribunais da Relação e nos incidentes e execuções que sigam os termos do processo de declaração e excedam a referida alçada (...)”.

Da análise destes artigos torna-se claro que a competência dos juízos cíveis, em relação à competência das Varas, tem carácter residual. A eles compete preparar e julgar os processos de natureza cível que não sejam da competência das Varas.
E tem, ainda, uma abrangência muito mais lata, abarcando não só acções declarativas cíveis mas também outros processos de natureza cível.
Assim, a questão que se coloca e que importa decidir é a de saber se, relativamente ao processo de expropriação, o legislador quis fazer depender a competência das Varas para apreciação do recurso da decisão arbitral da simples previsibilidade da intervenção do tribunal colectiva aferida pelo valor superior à alçada da Relação Que, segundo o disposto no art. 24, n.º1 da Lei n.º 3/99, de 13/1 é de 14.963,94 ( correspondente a Esc: 3.000.000$00)., nos termos do disposto no citado art. 97º, n.º1, al. a).
Julgamos que a resposta a dar a esta questão não pode deixar de ser negativa.
Isto porque a tal se opõe, desde logo, a natureza especial do processo de expropriação, o qual não cabe, por isso, no âmbito das acções declarativas de processo comum ordinário, antes se incluindo no conceito mais lato de processo de natureza cível.
Já o dissemos que a fase judicial do processo de expropriação inicia-se com o requerimento de interposição de recurso da decisão arbitral.
E ainda que tal requerimento desempenhe função de algum modo similar com a petição inicial de qualquer processo, pois que, ambos introduzem a causa em juízo, a tanto se limita o paralelismo, não podendo sequer afirmar-se, com rigor, que estamos perante articulados da mesma natureza.
Aliás, o aludido requerimento é apenas e fundamentalmente um meio de oposição à decisão arbitral- cfr. art. 58º do C.E.
E é precisamente da dissemelhança entre a acção declarativa ordinária e a acção expropriativa, mesmo de valor superior à alçada da Relação, que resulta, desde logo, afastada a aplicação, à última destas acções, da norma contida naquele art. 97º, n.º1 al. a) da LOFTJ.
Torna-se, deste modo, insustentável o entendimento de que, interposto recurso da decisão arbitral num processo de expropriação de valor superior á alçada da Relação, o processo passa a dever seguir os seus termos pelas Varas, atenta a simples previsão da susceptibilidade de ser requerida a intervenção do tribunal colectivo.
E se é verdade que, tratando-se de um processo especial, a acção expropriativa é regulada sucessivamente pelas suas próprias normas, pelas disposições gerais e comuns e pelas regras do processo ordinário, conforme o dispõe o art. 463º, n.º1 do C. P. Civil, também não é menos verdade que a aplicação das normas do Código de Processo Civil, só tem lugar no caso de existirem lacunas na lei expropriativa.
Todavia, julgamos não ser este o caso.
É que, quanto à possibilidade de intervenção do tribunal colectivo no julgamento da matéria de facto, o dito Código das Expropriações contém norma específica e excepcional E que, por isso, segundo o disposto no art. 7º, n.º3 do C. Civil, afasta as regras gerais reguladoras de idêntica matéria., estabelecendo no seu art. 58º que “ No requerimento da interposição do recurso da decisão arbitral, o recorrente deve expor as razões da discordância, oferecer todos os documentos, requerer as demais provas, incluindo a prova testemunhal, requerer intervenção do tribunal colectivo, designar o seu perito e dar cumprimento ao disposto no artigo 577º do Código de Processo Civil”.

E da leitura conjugada deste mesmo artigo com o disposto no citado art. 106º, al. b) da LOFTJ, bem como da circunstância de na circunscrição judicial onde o conflito foi suscitado só as Varas poderem funcionar como tribunal colectivo, resulta, a nosso ver, claro que a competência das Varas para preparar e julgar o processo de expropriação depende da verificação de dois requisitos cumulativos:
1º- que o valor da causa seja superior ao valor da alçada da Relação;
2º- que a intervenção do tribunal colectivo tenha sido efectivamente requerida, no requerimento de interposição do recurso ou na resposta Neste mesmo sentido, vide Acórdão do STJ, de 25 de Setembro de 2003, proferido no processo de Agravo n.º 1856- 7ª Secção. .

Todas as considerações acabadas de tecer quanto ao carácter excepcional da norma contida no citado art. 58º, mantêm-se válidas e justificam, de igual modo, o afastamento da aplicação à acção expropriativa, de valor superior à alçada da Relação, da regra geral constante no art. 646º, n.º1 do C. P. Civil, na redacção dada pelo DL n.º 183/2000, de 10/1, segundo o qual , no âmbito do processo comum ordinário, só é admitida a intervenção do tribunal colectivo quando requerida por ambas as partes.
Assim, na acção expropriativa, de valor superior à alçada da Relação, para que haja lugar à intervenção do tribunal colectivo, basta que uma das partes (o recorrente, nos termos do citado art. 58,º ou o recorrido, nos termos do disposto no art. 60º, n.º 2 do C. E. ) a requeira E, para além das apontadas dissemelhanças, muitas outras existem, nomeadamente:
- ao requerimento de recurso e respectiva resposta, seguem-se imediatamente as diligências instutórias- crf art. 61º, n.º1 do C. E.- , não havendo, por isso, lugar à audiência preliminar nem à prolação de despacho saneador e à selecção da matéria de facto estabelecidas nos arts. 508º-A, 510º e 511º, todos do C. P. Civil; .
- a discussão e julgamento da causa circunscreve-se à inspecção judicial e à inquirição das testemunhas arroladas- cfr. art. 61º, n.ºs 1º, 5º e 7º do C. E;
- sendo requerida a intervenção do tribunal colectivo, a mesma só tem lugar na fase de discussão e julgamento, circunscrevendo-se, também, à inspecção judicial e á inquirição de testemunhas, tal como resulta das disposições conjugadas dos citados arts. 58º e 61º;
- o recurso da decisão arbitral, também, não comunga da mesma natureza dos recursos ordinários em processo civil. Assim, enquanto aquele se destina a uma apreciação global da questão da indemnização devida ao expropriado, seguindo-lhe, tal como já se deixou dito, uma fase instrutória e de discussão, os recursos ordinários são simples recursos de revisão, nos quais só excepcionalmente é admissível a apreciação de questões novas e a produção de prova está limitada a certos documentos.
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Resta, pois, extrair de tudo o que se deixou dito, os seguintes corrolários:

1º- Para preparar e julgar a acção expropriativa, mesmo de valor superior à alçada da Relação, não tendo o recorrente (no requerimento de interposição do recurso) nem o recorrido ( na sua resposta) requerido a intervenção do tribunal colectivo, é competente o tribunal de comarca (de competência genérica ou cível), a que o processo de expropriação foi distribuído.

2º- Para preparar e julgar a acção expropriativa, de valor superior à alçada da Relação, tendo uma das partes (o recorrente ou o recorrido) ou ambas requerido a intervenção do tribunal colectivo, são competentes as Varas (Cíveis ou de Competência Mista).

Serve tudo isto para concluir que, no caso dos autos, não tendo sido requerida a intervenção do tribunal colectivo por nenhuma das partes, a competência para preparar e julgar o recurso interposto da decisão arbitral compete ao 5º juízo cível a que foi adequadamente distribuído o processo de expropriação e onde este deve continuar até final.

Pelo exposto, decide-se declarar competente para os ulteriores termos desta acção o 5º Juízo Cível da Comarca de Guimarães.

Sem custas