Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
939/04-1
Relator: TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: INVENTÁRIO
INADMISSIBILIDADE
TRANSACÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/16/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I- Num inventário facultativo em que a única verba a partilhar foi licitada por um interessado por um determinado valor, e em que, com trânsito em julgado, foi decidido que essa licitação não podia ser anulada por erro vício na vontade desse interessado, tornou-se indisponível, mesmo para a totalidade dos interessados, a situação jurídica em causa, não podendo trazer aos autos para homologação, transacção em que alterem o decidido na conferência de interessados.
II- Decorre, aliás, do art 300º/1 do CPC na redacção da Reforma de 1995, não fazer sentido que um inventário, mesmo facultativo, possa terminar por transacção, já que a transacção extra-judicial relativa à partilha, só pode alcançar-se, via do disposto no art 1250º do CC, por escritura pública.
III- Ora, se os interessados alcançam acordo para formalizarem a partilha deste modo extra-judicial, já não necessitam do inventário, que se extinguirá por inutilidade superveniente.
IV- O caso julgado relativamente à decidida não anulação da licitação, impede que se designe data para nova conferência de interessados para nela fazer valer a actual e unânime vontade dos interessados.
V- O erro em que incorreu o licitante, porque não houve, então, vontade unânime dos interessados em reconhece-lo, tratou-se de um erro pessoal e não objectivo e material, e, por isso, sempre se mostraria insusceptível de justificar a emenda da partilha.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I - Nestes autos de inventário facultativo instaurado por requerimento de "A", por óbito de "B" e "C", não tendo sido possível na conferência de interessados proceder-se à partilha por acordo, foram feitas licitações relativamente à verba única em causa nos autos, a qual foi licitada pelo interessado "D", por 300.000,00 E.
Dada a forma à partilha e elaborado mapa informativo, veio aquele requerer que a verba em causa lhe fosse adjudicada pelo valor de 110.000 E, ou, se marcasse data para novas licitações, pois que, não estando ainda familiarizado com os “euros”, não tinha ponderado o valor que oferecera pela verba, acrescendo que estava convencido que os demais interessados, à excepção do "A", comparticipariam no negócio do prédio, o que não veio a suceder, sendo que não tem agora possibilidade de pagar as tornas aos demais interessados.

Para decisão do incidente a que este requerimento veio dar lugar, foi marcada nova conferência de interessados, na qual estes suspenderam por acordo a instância, com vista à concretização de um acordo.
Porém, porque o mesmo não veio entretanto a ser alcançado, a Exma Juíza “a quo” acabou por decidir o incidente no sentido de se manter inalterada a conferência de interessados realizada, ordenando a notificação do licitante para proceder ao pagamento das tornas nos termos do art 1378º/1 do CPC.

Foi neste contexto que o interessado "D" veio requerer a homologação da transacção (acordo de partilha), conforme documento que juntou a fls. 281, subscrito por todos os interessados.

Tal requerimento foi indeferido, por se ter entendido que decorre do disposto no art. 1353º CPC que apenas em sede de conferência de interessados podem estes deliberar sobre a composição de quinhões e adjudicação das verbas, o que constitui formalidade essencial do processo de inventário, mostrando-se a vontade das partes irrelevante no sentido de afastar tal formalidade. Acentua-se nesse despacho que a Reforma do Código de Processo Civil, não veio dispensar a conferência de interessados existindo acordo destes, apenas se tendo limitado a permitir que o processo terminasse em sede de conferência de interessados, com dispensa do mapa de partilha – art. 1353º/6 CPC. Assim, entendendo que qualquer alteração do resultado da conferência, está subordinada à mesma forma do acto original, ou seja, a conferência de interessados, por ser esse o meio próprio para os interessados, no âmbito do processo de inventário, deliberarem sobre a adjudicação e composição de quinhões, não homologou a referida transacção.

II - Todos os interessados recorreram do despacho em causa, tendo terminado as alegações com as seguintes conclusões:
1ª- A transacção celebrada nos autos – não versando, nem subjectiva, nem objectivamente, sobre direito considerado indisponível – está totalmente conforme à lei substantiva e adjectiva.
2ª - O disposto no artº 293º/ 2, do Cód. Proc. Civil autoriza-a; e o artº 1353º não a proíbe.
3ª - Aliás, os requerentes do inventário poderiam, de idêntico modo, desistir do pedido, que não é o mesmo que renunciar ao direito de partilhar, este sim, indisponível.
4ª - Entendendo-se, porém, que não é legal a homologação da transacção, tem de se entender também, face ao requerimento do cabeça-de-casal, de fls..., e aos termos da transacção, que os interessados, todos, reconhecem que o "D" não quis adquirir o prédio relacionado pelo valor de 300.000 €, se enganou, baralhando euros com escudos, e errou. Isto por um lado, já que, por outro lado, o que todos os interessados querem é que o relacionado prédio seja adjudicado ao "A", pelo valor de 109.736,00 €, e não ao "D" por 300.000 €. De resto, a maior parte dos interessados já recebeu daquele a respectiva torna de 9.976,00 €.
5ª - Por isso, e se não for legal a prolação de sentença homologatória da transacção, há fundamento, atento o vertido nos autos, para anular a licitação e o deliberado na conferência de interessados e designar data para nova conferência de interessados.
6ª - O despacho recorrido violou as normas do artº 293º, 2, do Cód. Proc. Civil e 1248º do Cód. Civil.

A Exma Juíza sustentou o agravo.

Os autos, atenta a subida deferida do agravo, prosseguiram com a elaboração do mapa de partilha, sobre o qual não incidiram reclamações, tendo sido homologada por sentença a partilha e sendo adjudicados aos interessados os quinhões consoante deliberado na conferência de interessados.

Todos os interessados vieram manifestar o seu interesse na subida do agravo

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III - Ter-se-á presente o circunstancialismo atrás relatado e ainda o facto do acordo de partilha cuja homologação está em causa, realizado em documento particular, modificar o acordado na conferência de interessados, pois que, o imóvel a partilhar, segundo ele, seria adjudicado ao interessado "A" pelo valor de 109.736,00 E, declarando os interessados terem já recebido as tornas a que tinham direito, à excepção dos interessados Joaquim F... e mulher que se obrigaram a dá-las aos demais co-herdeiros no seu domicílio e no prazo de 8 dias a contar do trânsito da sentença homologatória do acordo de partilha em causa .


IV - Está em causa no agravo saber se um inventário, após a realização da conferência de interessados na qual houve licitações, pode findar por transacção, em que aqueles acordem em termos diferentes dos que resultam daquela conferência, relativamente à adjudicação de verbas e à composição de quinhões.

Como é sabido a transacção constitui uma causa genérica de extinção da instância, consoante resulta da al d) do art 287º do CPC, ainda que, para tanto, tenha que sobre ela incidir uma sentença homologatória nos termos do art 300º/3 do CPC.
E consiste num contrato pelo qual as partes (previnem) ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões – art 1248º/1 do CC- pelo que, com ela, conseguem as mesmas subtrair ao tribunal o poder de decidir a causa nos termos em que o imporia a aplicação do direito objectivo aos factos nela em causa.
Mas, para assim ser, é necessário que a mesma não comporte (ou importe) a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis, pois se o fizer não será válida (art 299º/1),não podendo nessa medida ser homologada (art 300º/3)
Pressupõe-se assim, a prévia determinação da indisponibilidade objectiva relativamente a situações jurídico privadas, determinação que cabe às normas de direito substantivo, concluindo-se, em função delas, que há situações jurídicas objectivamente indisponíveis em absoluto, e aquelas que o são, apenas relativamente.

Sabe-se também que a conferência de interessados, como se lê na RLJ 80º- 402 “é uma espécie de audiência preparatória de conciliação, destinada a coordenar, e não a sobrepor vontades”avultando nela o lado de jurisdição voluntária do processo de inventário, sendo a acção do juiz coordenadora e disciplinadora, e basicamente de respeito pelas deliberações dos interessados tomadas por maioria ou unanimidade, que assumem a qualidade de verdadeiras decisões que aquele tem de acatar e cuja validade só pode ser impugnada por certos meios e em determinados casos. ( Lopes Cardoso “Partilhas Judiciais, II p. 90)
A importância do decidido na conferência de interessados aumenta quando nela houve lugar a licitações, já que quem as faz não pode em princípio retratar-se indo o bem licitado preencher obrigatoriamente o quinhão do licitante - art 1374º a) CPC.
É evidente que a licitação é susceptível de anulação, nos mesmos casos em que a lei possibilita a anulação da venda judicial (Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, II p.298) e também na existência de vício substancial na declaração de vontade de quem licitou.
Foi alegadamente o que sucedeu com a vontade do interessado "D" quando licitou o imóvel por 60.000 E, estando em erro quanto à representação do valor real desses 60.000 E.
Nos autos, porém, tentada que foi essa anulação, não logrou aquele interessado a mesma, por nenhuma prova ter feito dos pressupostos em que a baseou, pelo que a mesma subsistiu, impondo no processo os seus efeitos.

Será que a totalidade dos interessados poderá agora vir afirmar no processo a sua vontade unânime de não respeitar o decidido na conferência de interessados, fazendo sobrepor ao que foi aí decidido, uma diferente regulamentação dos seus interesses, mas solicitando, ao mesmo tempo, do tribunal, que julgue válida por sentença esta nova e diferente regulamentação de interesses?
Ou, não será, que a situação jurídica criada com a licitação ocorrida na conferência de interessados, e que, por decisão transitada, não foi anulada por erro vício na vontade do licitante, deixou de ser disponível para os interessados, não podendo estes trazer aos autos para homologação instrumento de auto composição do litígio em que alterem o ali decidido?
Inclinamo-nos para este entendimento.
Sem prejuízo, de se admitir, obviamente, que os interessados em inventário facultativo como é o presente, sempre poderem, fora do processo, regular como entendam os seus interesses, independentemente das licitações havidas, tudo se passando como se nunca tivesse sido interposto o inventário, o qual terminará, nestas circunstâncias, por inutilidade superveniente da lide em função da junção aos autos da escritura pública de partilhas.

Dir-se-á mesmo, genericamente, que não faz sentido admitir que um processo de inventário, ainda que facultativo, possa terminar por transacção.
É que, desde a Reforma de 95, que se tornou claro, que se a lei substantiva exige como forma para a transacção, um documento autêntico, esta não se poderá fazer por simples documento particular ( art 300º/1 do CPC)
Por sua vez, o art 1250º do CC preceitua que a transacção extrajudicial constará de escritura pública quando dela possa derivar algum efeito para o qual a escritura seja exigida. Logo, a transacção extrajudicial relativa à partilha só pode alcançar-se por escritura pública. Ora, se os interessados logram acordo entre eles para formalizarem a partilha deste modo extra-judicial – através de escritura pública - obviamente que já não necessitam do inventário, porque o objecto dele obteve total satisfação fora dele. E o inventário extinguir-se-á, não pela homologação da transacção, mas pela sua inutilidade superveniente.

Dir-se-á então, como o dizem os agravantes, que, não sendo legal a prolação de sentença homologatória da transacção, se deverá anular a licitação e o deliberado na conferência de interessados e designar data para nova conferência de interessados, para se fazer valer a actual vontade dos interessados, tendo em atenção, o reconhecimento unânime, implícito no acordo de partilha, do erro em que incorreu o interessado "D" ao propor-se adquirir o prédio por um valor realmente muito superior ao que pretendia atribuir-lhe.

Ora, foi especificamente feito nos autos um pedido de anulação da licitação, e o mesmo foi indeferido com trânsito em julgado. O caso julgado sempre implicaria que não se pudesse decidir em contrário, vindo a anular-se a licitação.

Poder-se-ia argumentar que se a lei permite que, mesmo após a prolação da sentença homologatória da partilha, esta seja emendada por acordo de todos os interessados havendo erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes (art 1386º CPC), por maioria de razão, admitiria os efeitos de tal emenda antes daquela sentença e pese embora aquele caso julgado.
Só que aí, e salvo melhor opinião, esbarrar-se-ia com o facto desse caso julgado se ter construído precisamente por não haver vontade unânime daqueles interessados em reconhecerem o erro de um deles, o que sempre implicaria estar-se na presença de um erro subjectivo e pessoal e não objectivo e material e, consequentemente, e ao que parece - cfr Lopes Cardoso, “Partilhas Judiciais”, II, p 526- insusceptível de causar a emenda.

Pelo que se expôs entende-se que a Exma Juiz “a quo” decidiu correctamente.

V - Termos em que se nega provimento ao agravo e se confirma o despacho recorrido.

Custas pelos agravantes.