Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1965/05-1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: NOTAÇÃO TÉCNICA
FABRICO DE NOTAÇÃO TÉCNICA FALSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/21/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Sumário: I – O art. 255º al. b) do Cód. Penal define o conceito de «notação técnica», para os efeitos penais que agora interessam: “a notação de um valor, de um peso ou de uma medida, de um estado ou do decurso de um acontecimento, feita através de aparelho técnico que actua, total ou parcialmente, de forma automática, que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a certo circulo de pessoas os seus resultados e se destina aprova de facto Juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento quer posteriormente’’
II – No caso em apreço, de alteração do totalizador de quilómetros de um automóvel, de entre todos os requisitos indicados nesta norma, falta o de o conta-quilómetros de um automóvel se destinar à prova de «facto juridicamente relevante».
III – Na verdade, «facto juridicamente relevante» é aquele que, por si só, tem relevância para o direito, por a lei lhe atribuir efeitos ou utilidades, como é o caso, no veículo automóvel, dos números de matrícula, da carroçaria e do motor ou, até, da cor, pois que a todos estes elementos a lei atribui a virtualidade de permitirem a identificação do veículo.
IV – Efectivamente, quer na falsificação de documento, quer na falsificação de notação técnica, o que está em causa é a função probatória relativamente a facto juridicamente relevante, sendo certo que o número de quilómetros já percorridos por um automóvel nenhuma relevância tem, por si só, para o direito.
V – Se em abstracto, nada impedia que o legislador desse relevância jurídica às indicações deste aparelho, por exemplo, fixando o chamado «imposto de circulação» em função dos quilómetros percorridos em vez de, como faz, do ano de registo e da cilindrada, seria evidente a relevância jurídica da notação técnica em causa.
VI – Assim sendo, a alteração do totalizador do conta-quilómetros de um veículo não integra a prática de m crime de falsificação de notação técnica p. e p. pelo art. 258 n° 1 al. b) do Cod. Penal.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
No processo comum com intervenção do tribunal colectivo 838/03.7PCBRG.2 da Vara de Competência Mista de Braga, foi proferido acórdão que:
1 – Condenou o arguido Miguel R... em:
a) 7 (sete) meses de prisão, por um crime de falsificação de notação técnica p. e p. pelo art. 258 nº 1 al. b) do Cod. Penal; e
b) 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão, por um crime de burla qualificada p. e p. pelo art. 218 nº 2 al. a) do Cod. Penal.
E, em cúmulo jurídico destas duas penas, na pena única de 2 anos e 6 meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de 3 anos, com a condição de o arguido no prazo de 10 meses pagar ao ofendido a quantia de € 3.250,00.
2 – Condenou o arguido Miguel R... a pagar ao demandante Pedro P... a quantia de € 3.250,00, acrescida de juros à taxa de 4% a contar da notificação do pedido até integral pagamento.
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O arguido Miguel R... interpôs recurso desta sentença, suscitando as seguintes questões:

- a nulidade do acórdão – art. 379 nº 1 al. a) do CPP;
- a impugnação da matéria de facto;
- a invocação dos vícios do art. 410 nº 2 do CPP;
- a existência de «factos novos dados por assentes e não constantes da acusação»;
- o consentimento presumido do ofendido; e
- a incriminação dos factos.
Respondendo, o magistrado do MP junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso.

Nesta instância o sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso merecer provimento.

Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.

Colhidos os vistos, realizou-se a audiência.


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No acórdão recorrido foram considerados provados os seguintes factos:

1 – No dia 19 de Outubro de 2002, Pedro P... dirigiu-se ao Stand S..., sito no lugar de Porto Martim, Cabreiros, na cidade de Braga.
2 - Uma vez aí acordou com o arguido a venda do veículo, de matrícula 7...-64-LT, da marca BMW., modelo 320D, cor preta, com 112.000 Km efectuados, conforme constava no conta quilómetros do veículo, pelo valor de € .25.937,00
3 - Para tal, o arguido garantiu ao ofendido Pedro que o referido BMW estava em bom estado e tinha 112.000Km e que só não lhe entregava, naquele momento, o livro de revisões por o veículo vir de uma retoma e logo que fosse possível lho entregaria.
4 - Atendendo ao que foi referido pelo arguido e porque confiasse na palavra do mesmo Pedro, adquiriu o veículo tendo pago pelo mesmo os referidos 25.937,00 €.
5 – Por diversas vezes Pedro solicitou a entrega do livro de revisões do veículo ao arguido, nunca este o tendo entregue.
6 – Na data de aquisição o veículo indicava no contaquilómetros 112.000 km, o que foi factor relevante para a aquisição do veículo, uma vez que dada a marca e modelo em causa, fez o ofendido sentir-se seguro quanto ao bom estado de funcionamento da viatura.
7 – A viatura apresentava bom estado de conservação.
8 – No mês de Março de 2003, após diligências que efectuou veio o ofendido a descobrir que, em Julho de 2002, aquele veículo tinha estado em revisão no Stand da B..., SA, no Porto e, nessa altura, constava no conta-quilómetros do veículo 202.000 Km, ou seja, em Julho de 2002 o carro já tinha mais 100.000 Km. dos que os que constavam do conta-quilómetros em Outubro de 2002 quando o veículo foi adquirido.
9 - De facto, em data que não foi possível apurar, mas posterior a Julho de 2002 e anterior ao dia 19 de Outubro de 2002, o arguido adulterou o conta-quilómetros da viatura BMW acima referida colocando os números 112.000 visando dar a aparência enganosa de que o veículosó tinha circulado aqueles quilómetros.
10 - O ofendido Pedro só adquiriu o carro por estar convencido que o mesmo apenas tinha 112.000 Km, pois se soubesse que tinha mais quilómetros não o tinha adquirido.
11 – Ao alterar o conta-quilómetros, sabia o arguido que fazia em benefício próprio e em prejuízo de terceiros, pondo em causa a credibilidade do referido instrumento, já que é idóneo a certificar o estado do veículo e desgaste do mesmo.
12 – Com a alteração do conta-quilómetros visou o arguido prejudicar o ofendido e obter enriquecimento ilegítimo, através de engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinando com tal conduta que o ofendido adquirisse viatura que se fosse conhecedor da sua real situação não teria adquirido, sofrendo, por isso, um elevado prejuízo.
13 – Em todo o processo referido, o arguido agiu deliberadamente, livre e consciente, bem sabendo do carácter proibido das suas condutas.
14 – O arguido exerceu a actividade de comerciante, também na qualidade de sócio da Araújo & C..., Lda., vendendo e comprando carros, durante cerca de 20 anos, explorando dois estabeecimentos, um em Braga e outro em Monção.
15 – Há cerca de um ano deixou de exercer essa actividade, não exercendo qualquer outra.
16 – É casado e a mulher exerce a profissão de professora do ensino secundário.
17 – Desconhece-se o destino dos aludidos estabelecimentos e qual a situação da sociedade.
18 – O arguido era pessoa considerada no meio comercial da compra e venda de carros, onde mantém ligações e é respeitado.
19 - É primário.
20 – Uma viatura automóvel com as mesmas características da viatura adquirida pelo ofendido, com mais 10.000Km. custava menos 2.500,00 € do que a quantia efectivamente paga.
Considerou-se não provado que:
- na aquisiçãoda viatura o ofendido tivesse um prejuízo de € 6.000,00.

FUNDAMENTAÇÃO
1 – Questão prévia
A fls. 212, na sequência de informação de que o arguido não efectuara o preparo para as despesas de transcrição, conforme estipula o art. 89 nº 2 do CCJ, foi proferido despacho considerando que ficou inutilizado o recurso sobre a matéria de facto.
Tal decisão, no entanto, não cabe no âmbito dos poderes do tribunal recorrido, ao qual compete decidir a admissão do recurso e instruí-lo com os elementos necessários. Admitido este, apenas o tribunal a quo, e não o tribunal ad quem, pode emitir decisão sobre a sua procedência. Diferente seria se o tribunal recorrido tivesse apenas decidido que não seria feita a transcrição, deixando à Relação a definição das consequências desse facto. O caso destes autos é exemplar. O recorrente não ataca a matéria de facto apenas pela via da impugnação prevista no art. 412 nºs 3 e 4 do CPP, mas também pela invocação dos vícios do art. 410 nº 2 do CPP, que não está dependente de transcrição. A decisão de considerar “inutilizado o recurso sobre a matéria de facto”, equivaleria a impedir que a Relação conhecesse de tais vícios, os quais, aliás, são de conhecimento oficioso, conforme acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 19-10-95, DR – Iª Série de 28-12-95
2 – A nulidade do acórdão – art. 379 nº 1 al. a) do CPP
Alega o recorrente que não foi feito o exame crítico da prova.
Mas lendo-se aparte da motivação da matéria de facto, resultam absolutamente claros os motivos da decisão quanto à matéria de facto: porque nas suas declarações o arguido nunca afirmou que outra pessoa, seu sócio ou empregado, tivesse contacto com a viatura; porque a testemunha funcionária da Tovicar garantiu que a viatura saiu desta empresa com cerca de 214.000 Km; porque um funcionário da empresa importadora dos veículos BMW afirmou que em Agosto de 2002 o conta-quilómetros indicava 202.959 Km; no documento de fls. 149, que igualmente indica que o veículo tinha percorrido cerca de 214.000 Km
São, pois, claros os elementos que constituíram o substracto racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido dos factos provados.
Com isto se esgota a questão da nulidade da sentença com base no não cumprimento do disposto no art. 374 nº 2 do CPP. O «exame crítico das provas» destina-se, conjuntamente com a documentação das declarações prestadas na audiência, a permitir, às partes e ao tribunal de recurso, o controlo da decisão da matéria de facto. A nulidade em causa só ocorre quando não existir o exame crítico das provas e não também quando forem incorrectas ou passíveis de censura as conclusões a que, através dele, o tribunal a quo chegou. A demonstração de que determinado raciocínio é ilógico, poderá sustentar, conjuntamente com o registo da prova, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, o que é questão distinta da nulidade da sentença. A aceitar-se o entendimento do recorrente, sempre que se mostrassem incorrectos o julgamento da matéria de facto ou a aplicação do direito, então a sentença seria «nula». O que seria processualmente anómalo, pois a nulidade da sentença tem como consequência a Relação ordenar que seja proferida nova sentença, em que sejam supridas as nulidades, enquanto os erros de julgamento levam à revogação da decisão recorrida e à substituição por outra.

3 – As questões de facto
Ao longo da motivação o recorrente vai misturando, sem critério aparente, diversas questões relacionadas com a decisão sobre a matéria de facto que, sendo distintas, obrigavam a tratamento diferenciado.
De tal modo, que se fica sem se saber se pretende impugnar a matéria de facto, nos termos do art. 412 nºs 3 e 4 do CPP, ou se invoca os vícios do art. 410 nº 2 do CPP.
Em qualquer dos casos, fá-lo de forma incorrecta.
Se pretendeu impugnar a matéria de facto, nos termos do art. 412 nºs 3 e 4 do CPP, a motivação parte de um equívoco: o entendimento de que o tribunal da Relação pode fazer um novo julgamento, indicando, mediante a leitura das transcrições feitas, os factos que considera provados e não provados.
Porém, como escreveu o Prof. Germano Marques da Silva, talvez o principal responsável pelas alterações introduzidas no CPP pela Lei 59/98 de 25-8, “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” – Forum Justitiae, Maio/99.
Não concretiza aquele Professor a que vícios se refere, mas alguns poderão ser sumariamente indicados.

Por exemplo, se o tribunal a quo tiver dado como provado que A bateu em B com base no depoimento da testemunha Z, mas se da transcrição do depoimento de tal testemunha não constar que ela afirmou esse facto, então estaremos perante um erro manifesto no julgamento. Aproveitando ainda o mesmo exemplo, também haverá um erro no julgamento da matéria de facto se, apesar da testemunha Z afirmar que A bateu em B, souber de tal facto apenas por o ter ouvido a terceiros. Aqui estaremos perante uma indevida valoração de meio de prova proibido (arts. 129 e 130 do CPP), que pode ser sindicada pela relação.
O recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art. 127 do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, ed.1974, pag. 204.
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”. E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre convicção é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar” – Anotado, vol. IV, pags. 566 e ss.
O art. 127 do CPP indica-nos um limite à discricionaridade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
Por tudo isso é que o art. 412 nº 3 do CPP dispõe:
Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente provados; e
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida.
c) ....
Note-se que a lei refere as provas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa. É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
O recorrente não cumpriu o formalismo previsto naquele nº 3, especificando quais os factos que considera incorrectamente julgados e, relativamente a cada um deles, quais as provas que impunham decisão diversa e o sentido ou a redacção correcta da decisão.
Pelo contrário fica-se por frases como “a prova produzida em audiência foi gravada, pelo que o tribunal de recurso está apto a conhecer da matéria de facto”. É verdade, mas isso não basta para a impugnação da matéria de facto.
As exigências do art. 412 nº 3 do CPP não são um capricho do legislador, nem uma intolerável compressão do direito ao recurso consagrado no art. 32 nº 1 da CRP, estando, antes, de acordo com a finalidade dos recursos em geral. Estes não se destinam a que os juízes do tribunal ad quem, depois de lerem o processo, digam a decisão que teriam proferido se tivessem estado no lugar do tribunal recorrido. Como referem Simas Santos e Leal Henriques em Recursos em Processo Penal, pag. 47, “Os recursos concebidos como remédios jurídicos (...) não visam unicamente a obtenção de uma melhor justiça, tendo o recorrente que indicar expressa e precisamente, na motivação, os vícios da decisão recorrida, que se traduzirão em error in procedendo ou in judicando”. E alegar não é só afirmar que se discorda da decisão recorrida, mas sim atacá-la, especificando não só os pontos em que se discorda dela, mas também as razões concretas de tal discordância.
Finalmente, no parecer do sr. procurador geral adjunto junto do STJ foi suscitada a questão de o recorrente ser convidado a aperfeiçoar as suas conclusões.
Mas não há fundamento para tal.
O recurso tem duas partes: a «motivação», em que o recorrente enuncia especificadamente os seus argumentos, e as «conclusões», onde são resumidas as razões do recurso – art. 412 nº 1 do CPP.
O normal é que aquelas especificações sejam feitas na motivação. A «prova» ou «não prova» de um facto pode resultar da conjugação e relacionamento de inúmeros meios de prova produzidos na audiência de julgamento. Explicar em que medida cada um desses elementos de prova contribui para a decisão que o recorrente pretende que Relação tome quanto à matéria de facto, é claramente função da «motivação» e não das «conclusões», que são apenas um resumo de algo que pode ter tal complexidade que implique uma longa explanação de motivos.

O Tribunal Constitucional vem repetidamente afirmando que a deficiência na formulação das conclusões (por prolixidade, por omissão das indicações mencionadas no art. 412 nº 2 do CPP ou por outro motivo) não pode ter o efeito de levar à rejeição liminar do recurso, sem que ao recorrente seja facultada a oportunidade de suprir as deficiências. Se o recorrente na motivação expôs correctamente as suas razões, uma imperfeição das conclusões não pode ter um efeito cominatório irremediavelmente preclusivo do recurso, sob pena de violação do direito ao recurso consagrado no art. 32 nº 1 da CRP.

Se bem se leu e compreendeu, é apenas esse o alcance do acórdão do TC que declarou “com força obrigatória geral a inconstitucionalidade, por violação do art. 32 nº 1 da CRP, da norma constante do art. 412 nº 2 do CPP (e não, também, dos nºs 3 e 4), interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas als. a), b), e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência” – ac. TC de 9-7-02, DR Iª Série –A de 7-10-02.

Não se conhecem decisões similares quando as deficiências do recurso residem na própria motivação.

Pelo contrário, escreveu-se no ac. do TC 259/02 de 18-6-02, publicado no DR – IIª Série de 13-12-02 que o que aquele tribunal considerou, em várias decisões, constitucionalmente desconforme foi “a rejeição de um recurso (portanto sem prévio convite ao aperfeiçoamento) quando as conclusões da motivação faltassem, fossem em grande número ou ocupando muitas páginas, nelas se cumprisse deficientemente certos ónus ou não se procedesse a certas especificações, mas não chegou a afirmar-se, por exemplo, o direito do arguido a apresentar uma segunda motivação de recurso, quando na primeira não tivesse indicado os fundamentos do recurso, ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos”.

E o mesmo acórdão acaba por afirmar que a existência de um despacho de aperfeiçoamento quando o vício seja da própria motivação “equivaleria, no fundo, à concessão de novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se no próprio direito ao recurso”.

No caso do recurso que cumpre agora decidir, nenhuma esforço foi feito, na motivação ou nas conclusões, de cumprir os requisitos prescritos no art. 412 nºs 3 e 4 para a impugnação da matéria de facto, pelo que esta sempre teria de improceder.

Quanto aos vícios previstos no art. 410 nº 2 do CPP.

Todos eles têm forçosamente, como decorre do texto do corpo do nº 2, que resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo possível, para a sua demonstração, o recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações prestadas ou documentos juntos durante o inquérito, a instrução, ou até mesmo no julgamento – cfr. ac. STJ de 19-12-90, citado por Maia Gonçalves em anotação a este artigo.
Daqui decorre, desde logo, a improcedência da alegação da existência do vício da al. c) (erro notório na apreciação da prova), pois para o demonstrar o recorrente invoca “os termos da prova e dos depoimentos gravados”.
Embora no capítulo que dedicou à «inexistência do crime de burla», o recorrente argumenta que o “número de quilómetros da viatura é um de muitos outros factores que determinaram a aquisição da viatura em causa”. Nenhuma contradição intrínseca existe em se ter dado como provado que “o ofendido Pedro só adquiriu o carro por estar convencido que o mesmo apenas tinha 112.000 Km, pois se soubesse que tinha mais quilómetros não o tinha adquirido”. Naturalmente, quem compra um carro usado inevitavelmente pondera vários factores. Mas nenhuma regra da experiência comum é violada pelo facto de se considerar que alguém deu relevância decisiva ao número de quilómetros já percorridos pelo veículo. Alguns comprarão um automóvel pensando possuí-lo durante pouco tempo. Para esses talvez sejam mais importantes o aspecto exterior, as linhas modernas e o ano de matrícula. Porém, outros pensam num automóvel que possam utilizar durante o maior período de tempo possível. Nesses casos é evidente a importância dos quilómetros já percorridos. O colectivo decidiu na sua livre convicção, como aliás está obrigado por lei (art. 127 do CPP), e nenhum erro, notório ou não, é possível detectar através da leitura do acórdão.
Invoca também o recorrente o vício da al. a) e b) do nº 2 do art. 410, mas verdadeiramente, não se descortina onde, no seu entendimento, estão esses vícios.
O vício a que alude a al. a) do nº 2 do art. 410 do CPP é a insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, que não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, que é coisa bem diferente. Este vício verifica-se quando há omissão de pronúncia pelo tribunal relativamente a factos alegados por algum dos sujeitos processuais ou resultantes da discussão da causa, que sejam relevantes para a decisão. Ou seja, quando o tribunal não dá como «provado» nem como «não provado» algum facto necessário para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. O recorrente não indica quais os factos em relação aos quais houve omissão de pronúncia.
Quanto ao vício da al. b): o esforço de alegação do recorrente ficou-se por anunciar a sua existência na epígrafe da al. c) da motivação. Por isso, sem outras considerações, se conclui pela improcedência.
Tem-se, assim, por definitivamente assente a matéria de facto fixada na primeira instância.
4 – A existência de «factos novos dados por assentes e não constantes da acusação»
Também nesta parte o recorrente mistura questões distintas: a existência de factos novos e a insistência na alegação de erros de julgamento. Quanto a estes já acima se decidiu.
Quanto aos factos novos:
Não é este o local para dissertar sobre a identidade do processo penal e as garantias de defesa do arguido que condicionam o conhecimento pelo tribunal de factos novos que importem uma alteração «substancial» ou «não substancial» dos que constam na acusação. Aliás, o recorrente não alega, sequer, ter havido uma dessas alterações.
Há apenas que referir o seguinte: nem todos os factos novos introduzidos na sentença importam a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação das sanções (alteração substancial) ou são relevantes para a sua responsabilidade penal (alteração não substancial). Há também aqueles factos em que o juiz apenas pormenoriza ou concretiza os que já constam da acusação e outros que se destinam a permitir a escolha da espécie e medida da pena, como os que se relacionam com a inserção social do arguido, o seu comportamento anterior e posterior, ou a sua situação económica e familiar. A ponderação destes factos não está sujeita ao prévio desencadear dos mecanismos previstos nos arts. 358 e 359 do CPP.

É o caso de se ter dado como provado que “o arguido exerceu a actividade de comerciante, também na qualidade de sócio da Araújo & Capelo, Lda., vendendo e comprando carros, durante cerca de 20 anos, explorando dois estabelecimentos, um em Braga e outro em Monção”. Na economia do acórdão recorrido, este facto tem apenas a finalidade indicada de enquadrar a situação económica e social do arguido. Pretender com ele argumentar que a responsabilidade da venda não seria do arguido, mas apenas da sociedade, é esquecer o carácter pessoal da responsabilidade penal (art. 11 do Cod. Penal). A ser assim, nunca poderiam ser responsabilizados os agentes que tivessem tido comportamentos criminosos actuando em nome ou no interesse de pessoas colectivas.
5 - O consentimento presumido do ofendido
É algo que não é sequer concebível no crime de burla, pois ninguém pode consentir em ser «astuciosamente enganado». Na burla o ofendido não pode «consentir» em qualquer facto (cfr. arts. 38 e 39 do Cod. Penal), porque é levado, astuciosamente, a praticar actos cujas consequências naturalmente desconhece sempre.
6 - A incriminação dos factos
O recorrente alega que os factos não integram os crimes por que foi condenado.
Comecemos pelo crime de falsificação de notação técnica.
O art. 255 al. b) do Cod. Penal define o conceito de «notação técnica», para os efeitos penais que agora interessam: “a notação de um valor, de um peso ou de uma medida, de um estado ou do decurso de um acontecimento, feita através de aparelho técnico que actua, total ou parcialmente, de forma automática, que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a certo círculo de pessoas os seus resultados e se destina à prova de facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento quer posteriormente”.
No caso em apreço, de entre todos os requisitos indicados nesta norma, falta o de o conta-quilómetros de um automóvel se destinar à prova de «facto juridicamente relevante».
«Facto juridicamente relevante» é aquele que, por si só, tem relevância para o direito, por a lei lhe atribuir efeitos ou utilidades. É o caso, no veículo automóvel, dos números de matrícula, da carroçaria e do motor ou, até, da cor. A todos estes elementos a lei atribui a virtualidade de permitirem a identificação do veículo. Será também o caso, por exemplo, da alteração do mecanismo de aparelho legalmente aprovado para medir a taxa de taxa de álcool no sangue dos condutores. Ou, num caso mais vulgar, da alteração das declarações negociais dos documentos escritos. Quer na falsificação de documento, quer na falsificação de notação técnica, o que está em causa é a função probatória relativamente a facto juridicamente relevante.
O número de quilómetros já percorridos por um automóvel nenhuma relevância tem, por si só, para o direito. Não há norma que puna o facto de um automóvel circular com o conta-quilómetros avariado ou indicando um número diferente dos quilómetros efectivamente percorridos. Em abstracto, nada impedia que o legislador desse relevância jurídica às indicações deste aparelho. Por exemplo, fixando o chamado «imposto de circulação» em função dos quilómetros percorridos em vez de, como faz, do ano de registo e da cilindrada. Se assim fosse, seria evidente a relevância jurídica da notação técnica em causa. Aliás, que se saiba, não é sequer obrigatório que os automóveis estejam equipados com conta-quilómetros.
Tem, pois, o arguido de ser absolvido deste crime.
Quanto ao crime de burla:
Tem de ser alterada a incriminação.
O arguido vem condenado por um crime de burla qualificado por se ter considerado o prejuízo patrimonial «consideravelmente elevado».
O acórdão considerou que o que o valor do prejuízo coincide com o preço por que o queixoso comprou o automóvel – 25.937,00 €.
É certo que o ofendido desembolsou aquela quantia, mas, em contrapartida, viu integrado no seu património o automóvel que comprou, que tem um valor, ainda que inferior ao preço.
Ora, na burla o bem jurídico protegido é o património, globalmente considerado – Conimbricense, tomo II, pag. 275. O prejuízo consiste na diferença de valor em que património ficou prejudicado. “O prejuízo deverá determinar-se através da aplicação de critérios objectivos de natureza económica à concreta situação patrimonial da vítima, concluindo-se pela existência de um dano sempre que se observe uma diminuição do valor económico por referência à posição em que o lesado se encontraria se o agente não houvesse realizado a sua conduta” (sublinhado nosso) – Conimbricense, pag. 283.
Tendo ficado provado que “uma viatura automóvel com as mesmas características da viatura adquirida custava menos 2.500,00 € do que a quantia efectivamente paga”, é este montante que deverá ser considerado, como valor do prejuízo, para o efeito da incriminação pelo crime de burla.
E não argumente que também ficou provado que “o ofendido Pedro só adquiriu o carro por estar convencido que o mesmo apenas tinha 112.000 Km, pois se soubesse que tinha mais quilómetros não o tinha adquirido”. Esse erro poderá ser fundamento para a resolução do contrato, pedindo o comprador que cada uma das partes restitua o que prestou. Mas essa será uma questão meramente cível. Para a determinação do prejuízo causado pela burla, há apenas que atender à diminuição do valor do património do ofendido, globalmente considerado, causado pela actuação do arguido.
Finalmente, só mais duas notas:
Os factos efectivamente integram a prática de um crime de burla, sendo evidentes o engano e o prejuízo. Toda a argumentação do recurso, no sentido de demonstrar que não se verificam os elementos típicos deste crime pressupõe uma outra matéria de facto, diferente da fixada pela primeira instância.
O arguido deve ser punido pela prática de um crime de burla e não do crime de fraude sobre mercadorias do art. 23 nº 1 al. a) do Dec.-Lei 28/84, reclamado pelo recorrente, desde logo porque este artigo não é aplicável “se estiver previsto em tipo legal de crime que comine pena mais grave” – última parte do nº 1.
Atento o valor em causa (€ 2.500), cometeu o arguido o crime de burla p. e p. pelo art. 217 nº 1 do Cod. Penal e não o de burla qualificada do art. 218 nº 2 al. a) do mesmo código.
7 – A pena
Alterando-se a incriminação pelo crime de burla, há que fixar a pena concreta.
Sendo o crime punível com pena de multa em alternativa à prisão (prisão de 30 dias a 3 anos ou multa de 10 a 360 dias), o tribunal deverá dar preferência à primeira, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – art. 70 do Cod. Penal. Quando existem penas alternativas ou de substituição, a escolha pela pena de prisão ou pela pena de multa é algo que não tem directamente a ver com o grau de culpa, mas com as finalidades da punição. “Quer dizer, a escolha entre a pena de prisão e a alternativa ou de substituição depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial” - Maia Gonçalves em anotação ao art. 70 do Cod. Penal. Estas apontam inevitavelmente para a pena não privativa da liberdade, dada a inexistência de antecedentes criminais e o facto do arguido já não exercer a actividade no âmbito da qual praticou os factos.
A culpa, entendida como o juízo de censura ético-jurídica dirigida ao agente por ter actuado de determinada forma, quando podia e devia ter agido de modo diverso (Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, pag. 316), é de grau médio, pois nada de significativo distingue o comportamento do arguido de outros similares, neste tipo de negócios.
A ilicitude, aferida pela montante em causa, é superior à média, pois há a considerar que o limita máximo é dado pelo valor a partir do qual a burla seria qualificada.
O arguido não beneficia da confissão ou do arrependimento.
Como se referiu, são pouco relevantes as exigências de prevenção especial, mas são médias as de prevenção geral positiva.
Deve a pena ser fixada a meio da moldura penal abstracta, isto é, 180 dias de multa.
Quanto à taxa diária para cada dia de multa, são escassos os elementos que permitam determinar com exactidão a situação económica do arguido. Mas tudo aponta ser pessoa de média condição económica e social.
Explorou dois estabelecimentos de compra e venda de automóveis durante cerca de 20 anos, sendo pessoa considerada no meio, o que pressupõe êxito na actividade. A mulher é professora do ensino secundário.
Fixa-se, assim, a taxa diária de € 8.
Finalmente, nada há a decidir quanto ao pedido cível, porque o recorrente nada de específico alega quanto a ele, nomeadamente impugnando os valores fixados.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães, concedendo provimento parcial ao recurso:
1 – Absolvem o arguido Miguel R... do crime de falsificação de notação técnica p. e p. pelo art. 258 nº 1 al. b) do Cod. Penal; e
2 – Condenam o mesmo arguido, por um crime de burla p. e p. pelo art. 217 nº 11 do Cod. Penal, em 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de € 8 (oito euros).
No mais, mantém-se o decidido na primeira instância, nomeadamente, quanto ao pedido cível.
Custas pelo recorrente, por ter decaído parcialmente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.