Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1783/03-1
Relator: ANTONIO RIBEIRO
Descritores: EMPREITADA
PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA
VISTORIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/12/2003
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário: É DE DEFERIR O REQUERIMENTO DE PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA FORMULADO PELO DONO DA OBRA, CONSISTENTE NA REALIZAÇÃO DE UMA VISTORIA À OBRA QUE, ALEGADAMENTE, O EMPREITEIRO NÃO CONCLUIU, AINDA QUE ESTEJA NA DISPONIBILDADE DO REQUERENTE A NÃO CONTINUAÇÃO DA MESMA, MAS ESTANDO ELA NESSE CASO SUJEITA A EVENTUAL DEGRADAÇÃO.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório;

Recorrente: "A";
Recorrido: "B";

4º Juízo Cível da comarca de Viana do Castelo – processo nº .../03.

Na petição da acção declarativa, com processo ordinário, que instaurou contra “B", com sede no lugar de ..., freguesia de ..., da comarca de ..., o autor, "A", residente no lugar de ..., da mesma freguesia e comarca, requereu a produção antecipada de prova alegando, em suma, que pela empreitada contratada entre autor e ré esta se comprometeu a dotar o imóvel daquele de condições de habitabilidade, por forma a que ele aí pudesse residir permanentemente. A ré não acabou a obra, não estando o prédio em condições de ali residir, pelo que o autor terá de concluí-la e proceder à eliminação dos defeitos que apresenta. Antes de proceder à conclusão da obra impõe-se que sejam tecnicamente verificados e determinados os defeitos e avaliado o custo dos trabalhos em falta. Requer a realização de uma perícia colegial.

Em despacho liminar, o Exmº Juiz do Tribunal “a quo” inferiu a pretensão do recorrente.

Inconformado com tal decisão, interpôs o autor-requerente o presente recurso de agravo.

O Exmº Juiz sustentou o seu despacho.

Nas suas alegações de recurso, formulou o agravante as seguintes conclusões:

«1.- Em causa nos presentes autos está o incumprimento por parte da recorrida de um contrato de empreitada celebrado entre esta e o recorrente.
2.- Pelo que esta pede a resolução daquele contrato e condenação da recorrida no pagamento de uma indemnização pelos danos causados.
3.- Trata-se de obras de remodelação e ampliação efectuadas na casa de morada do recorrente.
4.- A recorrida abandonou a obra em Dezembro de 2002, deixando o prédio com graves defeitos de construção, nomeadamente no que concerne ao isolamento e impermeabilização.
5.- O que tem levado a constantes infiltrações de águas pluviais nas paredes e tecto do imóvel em questão.
6.- Não é possível ao recorrente habitar no imóvel nas condições que o mesmo apresenta, daí que seja necessário concluir a obra por forma a dotar a casa de condições de habitabilidade.
7.- Pelo facto de ter instaurado a presente acção, não se pode impôr ao recorrente que habite o imóvel nas condições que apresenta ou que deixe de o habitar, até ser proferida decisão sobre o mérito da causa.
8.- Daí -que seja necessário, conforme requerido, proceder à produção antecipada de prova, por forma a determinar tecnicamente os defeitos da obra e quantificar o custo da sua conclusão bem como da eliminação e/ou correcção dos defeitos.
9.- Contrariamente ao que refere o douto despacho ora recorrido, não é necessário um alto grau indiciário acerca da existência de um risco sério e inevitável de se perder a prova.
10.- Pois, dispõe expressamente o artigo 520° do CPC que basta o justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil a produção da prova em causa.
11.- Ora, com o decurso do tempo e a delonga da presente lide, o recorrente tem fundado e justo receio que se a mesma não for produzida antecipadamente, deixe de ser possível.
12.- Na medida em que não poderá habitar o imóvel com os defeitos que apresenta, e receia que a segurança do mesmo venha a ser posta em causa com a chegada do Inverno e o aumento das infiltrações.
13.- O que poderá originar a queda dos tectos e obrigar a obras por forma a manter a segurança do edifício perdendo-se, assim, a prova que se pretende produzir antecipadamente.
14.- Pelo que não se trata aqui de uma medida dilatória, estando demonstrada a pertinência do requerido devendo, contrariamente ao que foi entendimento vertido no douto despacho de que ora se recorre, deferir-se a produção antecipada de prova requerida pelo recorrente.
15.- A douta decisão ora recorrida violou, assim, por errada interpretação o disposto no artigo 520° do CPC.
TERMOS EM QUE, deve julgar-se o presente recurso procedente e, em consequência, revogar-se o douto despacho ora recorrido, substituindo-se por outro que defira a realização da produção antecipada de prova requerida pelo recorrente.»

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – Delimitação do objecto do recurso;

A única questão a apreciar consiste na admissibilidade da produção antecipada de prova por arbitramento (vistoria), requerida pelo agravante, designadamente em função dos fundamentos por ele alegados.

Na acção que intentou pretende o autor que se declare resolvido o contrato de empreitada que celebrou com a ré, por incumprimento desta, e se condene a mesma no pagamento dos prejuízos causados.

III – Fundamentos;

No despacho recorrido entendeu-se que, da alegação do autor, ressalta com clareza que a evitabilidade do risco de destruição de provas (eventuais alterações do estado actual do imóvel) está nas suas próprias mãos, pois será a continuação e conclusão das obras – que o recorrente pretende concretizar – que as destruirá, acrescentando que o requerente sugere uma verdadeira acção de auto-tutela, pois pretende retirar a obra da ré e executá-la ele próprio, ainda antes de obter a resolução do contrato de empreitada.
Entendeu-se, assim, não estarem preenchidos os requisitos exigidos pelo artigo 520º do Código de Processo Civil (CPC), pois que o que tal norma visa garantir é a preservação da prova, quando haja justo receio de que, no futuro, a recolha da mesma se torne impossível ou muito difícil.

Contrapõe o recorrente que, não podendo habitar o imóvel e receando que a segurança do mesmo esteja em risco com a chegada do inverno e o aumento das infiltrações, existe justo receio de que a produção da prova em causa venha a tornar-se impossível, nomeadamente com a delonga da lide judicial. Tais argumentos, contudo, só surgem agora nas alegações de recurso. Aquando do requerimento o autor apenas referiu, efectivamente, a necessidade de concluir as obras para poder habitar o edifício.

Os recursos visam a reapreciação das decisões judiciais em função da situação concreta por elas apreciada e que as partes definiram. Não podem pronunciar-se sobre questões novas, não suscitadas perante o tribunal “a quo”.
Todavia, optando o autor pela resolução do contrato de empreitada por incumprimento culposo da ré, o que pressupõe a conversão da eventual mora do devedor em incumprimento definitivo, seja pela perda do interesse do credor na continuação do contrato, que tem de ser apreciada objectivamente, seja mediante interpelação admonitória, seja por declaração inequívoca do empreiteiro, expressa ou tácita, de não pretender cumprir o contrato (cfr. artigos 801º e 808º do Código Civil - CC), não se lhe pode negar a faculdade de concluir a obra.

A resolução do contrato opera por simples declaração à outra parte (art. 436º, nº 1 do CC).
Questão diferente é a de saber se essa declaração é legítima, assentando ela no incumprimento culposo do devedor. Neste momento é impossível a resposta, dada a fase inicial da acção, mas ainda que se venha a considerar que o pretenso direito de resolução não ocorre, a ré sempre terá os seus interesses garantidos pela via indemnizatória, pois que no âmbito da empreitada nunca se coloca a exigência da restituição em espécie das prestações efectuadas pelo empreiteiro. Tanto mais que o dono da obra pode desistir da empreitada a todo o tempo, ainda que sido iniciada a sua execução (cfr. art. 1229º do CC). Isto é, a eventual continuação da obra pelo recorrente sempre correrá por sua conta e risco no caso de não vir a obter ganho na causa.

Visando a empreitada a execução de uma obra de restauro de um edifício para habitação do recorrente e estando essa obra por concluir, sempre segundo a sua alegação, é de admitir que a paragem da obra possa levar à deterioração da construção, alterando até o estado em que o empreiteiro a deixou, com consequências negativas para ambas as partes em termos probatórios e, eventualmente, também económicos.
Do ponto de vista da razoabilidade – e mesmo da justiça – admitindo a alegada necessidade de conclusão da obra por parte do recorrente, nomeadamente no sentido de evitar maiores prejuízos, é de concluir pelo justo receio de que venha a perder-se, em termos de prova, a possibilidade de determinar o estado em que o empreiteiro deixou a obra (ou se a chegou mesmo a concluir, como ele parece propugnar, segundo o que é relatado pelo autor, dono da obra, na petição que apresentou na acção declarativa – art. 9º da p. i.).

Para os efeitos do disposto no artigo 520º do CPC, o «justo receio», como requisito da produção antecipada de prova, verifica-se quando, de acordo com as regras da experiência, seja razoável prever o desaparecimento ou o significativo obnubilar das provas.
Uma vez que o recorrente – autor na acção já proposta – não reclama a reparação dos defeitos, nem a conclusão da obra pelo empreiteiro, a realização antecipada da vistoria colegial requerida permitirá a posterior continuação da obra por ele, não parecendo razoável exigir-lhe o aguardar pelo momento processualmente próprio, em regra, para a produção de tal prova e muito menos ter de esperar por uma decisão transitada em julgado para poder terminar a obra (se é que efectivamente não está concluída, claro!).

Se é verdade, de algum modo, que é a eventual continuação da obra que torna mais premente a produção antecipada da prova, não pode deixar de reconhecer-se que, neste caso, o interesse do recorrente em concluí-la merece tutela, tanto mais que, segundo ele diz, a posição da empreiteira é a de que a obra está acabada, pelo que também lhe convirá a realização da perícia quanto antes, sem que o edifício sofra mais degradações, no mínimo por não ser entretanto habitado.

Acresce que, atendendo a que se trata de prova por arbitramento, não estará em jogo sequer o princípio da imediação – pois que tudo se cristalizará, em qualquer caso, no relatório dos peritos – sendo certo que também o contraditório estará assegurado em face do regime previsto nos artigos 517º, 521º, nº 2, 568º, nº 2, 569º, nº 1, b), nº 2 e nº 3 e 578º, nº 1 do CPC.
Em situações como a dos autos, em que há – ou pode haver – interesses juridicamente relevantes a proteger, é aconselhável a procura da interpretação da norma mais consentânea com essa tutela, desde que ela a admita como é inequivocamente o caso, sendo de evitar as decisões assentes numa lógica estritamente formal se despidas duma reflexão sistemática, axiológica e teleológica.
Como último argumento, de conteúdo eminentemente prático (não jurídico), poderá ainda sopesar-se a eventualidade de a perícia realizada nesta fase processual poder contribuir para um mais fácil encontro de posições entre as partes, quem sabe propiciando um acordo entre elas acerca do objecto do actual litígio.


IV – Decisão;

Em face de todo o exposto, pese embora a consistente fundamentação positivista do despacho recorrido, acorda-se em revogá-lo, determinando a sua substituição por outro que, considerando admissível a requerida produção antecipada de prova por arbitramento, ordene a observância do disposto no artigo 517º, nº 2, com referência aos artigos 521º, nº 2, 568º, nº 2 e 569º, nºs 1 b), 2 e 3, todos do CPC.

Não são devidas custas em qualquer das instâncias.
Registe e notifique.