Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
574/09.0TBGMR.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: LEGADO
LEGÍTIMA
INOFICIOSIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/22/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. Os sucessores podem ser herdeiros ou legatários, sendo herdeiro aquele que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados. Pode um sucessor ser, simultaneamente, herdeiro e legatário.
2. Os legados podem ser feitos por força da quota disponível, por conta da legítima ou em substituição da legítima.
3. Não contendo o testamento qualquer elemento indicativo de uma ou de outra intenção por parte do testador, na dúvida, deve entender-se o legado deixado ao filho como sendo por conta da legítima.
4. Se o valor do bem legado a um dos filhos exceder a sua legítima, deve o excesso imputar-se na sua quota disponível, só havendo inoficiosidade para lá da soma do valor da legítima do herdeiro, acrescentado do valor da quota disponível, pois só nesse caso haverá prejuízo para os outros herdeiros legitimários, por verem ofendida a sua legítima.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

Antónia..., Maria… , Maria…, Maria…, Maria…, Maria…e Mariana… requereram Inventário cumulativo por óbito de seus pais Joaquim…e Francelina…, alegando que estes faleceram, deixaram sete filhos, um dos quais já falecido, deixaram bens a partilhar, não tendo sido possível até à data proceder à sua partilha e não estando interessados em manter a comunhão hereditária, requerendo que seja nomeado cabeça de casal Manuel…, por ser o filho mais velho do casal.
O cabeça de casal Manuel… prestou as declarações a que se refere o artigo 1340.º, n.º 2 do CPC e juntou a relação de bens, instruída com os necessários documentos, entre os quais certidão do testamento de Joaquim…a favor do filho Manuel…, pelo qual lhe lega a quantia de vinte e cinco mil euros em dinheiro, referindo o cabeça de casal que o mesmo já se encontra cumprido.
Foi apresentada reclamação à relação de bens, oportunamente decidida.
Procedeu-se a conferência de interessados, com acordo parcial e licitações quanto ao demais. O passivo foi aprovado e deliberada a forma de pagamento do mesmo.
Em despacho autónomo foram os interessados convidados a pronunciar-se sobre a questão aí posta de saber se o legado deve ser imputado à quota disponível ou à legítima, tendo as requerentes manifestado a opinião de que o legado terá de ser imputado na quota indisponível do interessado Manuel… e este entendendo em sentido contrário, ou seja, que o legado deve imputar-se na quota disponível do “de cujus”.
Por despacho foi determinada a forma à partilha e, posteriormente, elaborado o mapa informativo e o mapa da partilha, tendo sido proferida sentença de homologação.
Discordando do despacho determinativo da forma da partilha e, consequentemente, da sentença homologatória da partilha, deles interpôs recurso o cabeça de casal, tendo formulado as seguintes
Conclusões:
I – Da deixa testamentária em causa nestes autos não resultam quaisquer elementos que permitam considerá-la como sendo imputável na quota indisponível do “de cuius” (legado por conta da legítima ou em substituição da legítima).
II – Com efeito, por força do princípio especial da intangibilidade da legítima, a mesma deve ser imputada na quota disponível do “de cuius”, valendo como pré-legado ou “legado testamentário puro”, com todas as legais consequências.
III – Não tendo o tribunal “a quo” decidido neste sentido, violou-se o artigo 2156.º, 2163.º a 2165.º e 2187.º, todos do Código Civil.

As requerentes do inventário contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão sob recurso.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
A única questão a resolver traduz-se em saber se o legado efectuado ao cabeça de casal deve ser imputado na quota disponível ou na quota indisponível do autor da herança, com as inerentes consequências ao nível da partilha.

II. FUNDAMENTAÇÃO
O despacho determinativo da partilha, na parte que aqui está em discussão, diz o seguinte:
«Relativamente ao legado (…) a posição do tribunal foi adiantada a fls. 191 a 193.
Proceder-se-á à partilha nos seguintes termos:
(…)
b) Por óbito do inventariado Joaquim…
Soma-se a meação ao quinhão hereditário que lhe coube por óbito da inventariada Francelina… e divide-se em três partes iguais, constituindo uma delas a quota disponível do inventariado (artigos 2156.º e 2159.º, n.º 1 do C.C.) e as outras duas partes a sua quota indisponível.
Estas duas partes deverão ser subdivididas por oito, por tantos serem os filhos do inventariado, imputando-se o legado na quota parte do interessado Manuel…, filho do inventariado.
A quota disponível será a dividir por oito, por tantos serem os filhos do inventariado.
(…)
Se numa ou noutra operação da partilha se vier a apurar que o legado afecta a quota indisponível de cada um dos herdeiros, ter-se-á de proceder à sua redução nos termos do preceituado nos artigos 2168.º, 2171.º e 2174.º, n.º 1 do Código Civil (regressando ou não o bem ao acervo a partilhar consoante a importância da redução exceda ou não metade do valor do bem doado – artigo 2174.º, n.º 2).
(…)»
O despacho de fls. 191 a 193, referido na forma à partilha e que adianta a posição do tribunal quanto à imputação do legado, diz, no que aqui interessa, o seguinte:
«Do cumprimento do legado não resulta a desnecessidade de conferência do mesmo.
(…)
Testamento é o acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles – artigo 2179.º, n.º 1 do Código Civil – o que sucederá, vg., por via dos legados, os quais podem ser feitos por força da quota disponível, por conta da legítima ou em substituição da legítima – cfr. Pereira Coelho, “Direito das Sucessões”, págs. 322 – 324.
No legado por conta da quota disponível há da parte do testador a manifestação da vontade no sentido de beneficiar o herdeiro contemplado com o legado e este nada confere, sem prejuízo do legado poder vir a ser reduzido por inoficiosidade, caso o seu valor ofenda a legítima dos restantes herdeiros legitimários.
No caso em apreço o testamento é omisso quanto à imputação do legado na quota disponível ou indisponível.
Ora, na falta de indicação expressa no testamento, só a interpretação ou integração deste nos pode deixar apreender o sentido desta disposição, nomeadamente se a vontade do testador foi a de afastar o sucessível da herança, limitando-o às forças do legado, de simplesmente preencher a sua quota hereditária com determinados bens, ou de o beneficiar, atribuindo-lhe esses bens, além daquela quota.
Não fornecendo o texto qualquer elemento sobre a intenção do testador, nem sendo conhecida a sua real vontade, deve considerar-se que estamos perante um legado por conta da legítima e não em substituição desta, ou para imputar na quota disponível – cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 21/04/2004 e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de em www.dgsi.pt.
Ou seja, não resultando apurada uma vontade de beneficiar os herdeiros contemplados com legados, nem de afastar a legítima destes, deve entender-se que com o legado não se pretendeu uma modificação das regras da sucessão legal, mas apenas se fez questão que, mantendo-se essas regras, determinados bens fossem transmitidos a certos herdeiros.
O que vem de ser dito importará a imputação do legado em causa na legítima ou quota indisponível do herdeiro Manuel Barbosa Ribeiro.
(…)».

Tendo presente que o objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente – artigos 660.º, n.º 2, 684.º, n.ºs 2 e 3 e 685.º-A, n.ºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil – passemos, então, a analisar a questão da imputação do legado na quota disponível ou indisponível.
No caso da herança que aqui nos ocupa, todos os herdeiros são legitimários – filhos e viúva e filha de filho pré-falecido – artigos 2157.º e 2140.º do Código Civil – o que implica para o autor da sucessão o respeito pelas respectivas legítimas, sendo que pode suceder que, mercê de doações ou legados que tenha feito, o inventariado tenha ofendido o direito dos seus herdeiros legitimários.
Já se sabe que os sucessores podem ser herdeiros ou legatários, sendo herdeiro aquele que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados – artigo 2030.º do Código Civil.
Pode, ao mesmo tempo, um sucessor ser herdeiro e legatário.
No caso dos autos, o inventariado deixou testamento em que legou a um dos seus filhos a quantia de € 25.000,00.
Os legados podem ser feitos por força da quota disponível, por conta da legítima ou em substituição da legítima.
No legado por conta da quota disponível, há da parte do testador a manifestação de vontade no sentido de beneficiar o herdeiro contemplado com o legado e este nada confere, isto, claro está, sem prejuízo de a doação poder vir a ser reduzida por inoficiosidade, caso o seu valor ofenda a legítima dos restantes herdeiros legitimários. No legado por conta da legítima, o testador não atribui ao legatário qualquer prevalência quantitativa em relação aos demais herdeiros, apenas lhe antecipa a quota hereditária, no todo ou em parte, preenchendo-a com os bens legados. Já no legado em substituição da legítima, ao herdeiro legitimário é oferecida a possibilidade de receber o legado, perdendo a legítima – cfr. Acórdão da Relação do Porto de 2/10/2006, in CJ, ano XXXI, tomo IV, pág. 163, Acórdão da Relação de Guimarães de 21/04/2004, in www.dgsi.pt/jtrg e, ainda que relativamente a doações, Lopes Cardoso, in “Partilhas Judiciais”, vol. II, 4.ª edição, pág. 370 e 371.
No testamento do aqui inventariado nada se diz quanto à imputação do legado.
Na falta de indicação expressa no testamento, como bem se refere no despacho sob recurso, só a interpretação ou a integração deste nos pode deixar apreender o sentido da deixa testamentária.
Ora, a questão coloca-se quando o texto não fornece qualquer pista sobre a intenção do testador, nem se conhece a sua real vontade.
Não resultando apurada uma vontade de beneficiar o herdeiro contemplado com um legado, nem de afastar a sua legítima, deve entender-se que com o legado não se pretendeu uma modificação das regras da sucessão legal, mas apenas se fez questão que, mantendo-se essas regras, determinados bens fossem transmitidos a certos herdeiros – neste sentido o Acórdão da Relação do Porto de 02/10/2006 e o da Relação de Guimarães de 21/04/2004, já citados.
Na doutrina, veja-se, também, no mesmo sentido Oliveira Ascensão, in «Direito Civil. Sucessões», pág. 354, edição de 1981, Pereira Coelho, in «Sucessões», 1966, pág. 260 e Lopes Cardoso, in «Partilhas Judiciais», vol. I, 4.ª edição, pág. 85, nota 265.
Ou seja, nesta parte será de confirmar o despacho sob recurso, uma vez que não contendo o testamento qualquer elemento indicativo de uma ou de outra intenção por parte do testador, na dúvida, deve entender-se o legado deixado ao filho como sendo por conta da legítima.
Já assim não será, no entanto, quanto à restante forma à partilha.
Com efeito, se o valor do bem legado a um dos filhos exceder a sua legítima, deve o excesso imputar-se na sua quota disponível, só havendo inoficiosidade para lá da soma do valor da legítima do herdeiro, acrescentado do valor da quota disponível. Só aí haverá verdadeira inoficiosidade, ou seja, prejuízo para os outros herdeiros legitimários – neste sentido veja-se Pires de Lima e Antunes Varela, in «Código Civil Anotado», vol. VI, 1998, pág. 281.
Assim, o valor que excede a legítima do herdeiro contemplado com o legado, deve ser imputado na sua quota disponível (no quinhão desse herdeiro nessa quota), conciliando-se assim o espírito de igualação dos herdeiros com o respeito pela vontade do testador de que o bem legado fosse transmitido àquele herdeiro.
Finalmente, se o valor do bem legado ultrapassar a legítima e o quinhão do herdeiro beneficiado com o legado na quota disponível, deve imputar-se a parte restante do legado na parte restante da quota disponível do “de cujus”, constituindo o sobrante desta o total dos quinhões hereditários dos restantes herdeiros, a dividir apenas entre eles.
Ora, verifica-se que no despacho que deu a forma à partilha e, subsequentemente, no mapa da partilha, não foram efectuadas as operações necessárias à distinção entre a quota disponível e a quota indisponível, no sentido de se averiguar se haveria verdadeira inoficiosidade, por o legado ofender a legítima dos restantes herdeiros legitimários – artigo 2168.º do Código Civil.
Nestes termos, confirmando-se o despacho recorrido na parte em que considera que o legado deve ser imputado na quota indisponível, julga-se, no entanto, o recurso de apelação parcialmente procedente, quanto ás operações de partilha, alterando-se a forma da partilha, passando a imputação do legado a fazer-se da seguinte forma:
- começa por determinar-se a quota disponível e a quota indisponível do inventariado;
- o valor do legado começa por imputar-se na legítima do legatário;
- existindo um excesso, este imputa-se no quinhão hereditário da quota disponível do legatário;
- mantendo-se ainda um excesso, este imputa-se na parte restante da quota disponível do inventariado;
- caso haja remanescente de quota disponível, é dividido em partes iguais pelos restantes sete filhos do inventariado (a parte do filho pré-falecido será adjudicada à sua filha), nada recebendo o oitavo filho beneficiário do legado, cujo quinhão hereditário na quota disponível já foi totalmente preenchido com a imputação do valor do legado.
Verifica-se, em consequência, que o legado não atinge a legítima dos outros herdeiros, pelo que deve ser respeitada a vontade do testador de que o legado se transmita para o herdeiro contemplado, não sendo necessário reduzir o legado por o mesmo não ofender a legítima dos restantes herdeiros, ofendendo apenas o seu quinhão na quota disponível, uma vez que, ao imputar-se o excesso do legado na parte restante da quota disponível, resulta um prejuízo para os quinhões dos restantes herdeiros nesta quota. Como já vimos, tal liberalidade não é inoficiosa, porque não ofende, nos termos expostos, a legítima dos herdeiros legitimários.
Tendo em atenção o que ficou acordado na conferência de interessados e as verbas que foram adjudicadas ao herdeiro Manuel…, terá este que repor tornas aos demais interessados, não pelo valor que consta do mapa da partilha efectuado, mas pelo que resulta das operações acima determinadas.

Sumário:
1. Os sucessores podem ser herdeiros ou legatários, sendo herdeiro aquele que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados. Pode um sucessor ser, simultaneamente, herdeiro e legatário.
2. Os legados podem ser feitos por força da quota disponível, por conta da legítima ou em substituição da legítima.
3. Não contendo o testamento qualquer elemento indicativo de uma ou de outra intenção por parte do testador, na dúvida, deve entender-se o legado deixado ao filho como sendo por conta da legítima.
4. Se o valor do bem legado a um dos filhos exceder a sua legítima, deve o excesso imputar-se na sua quota disponível, só havendo inoficiosidade para lá da soma do valor da legítima do herdeiro, acrescentado do valor da quota disponível, pois só nesse caso haverá prejuízo para os outros herdeiros legitimários, por verem ofendida a sua legítima.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a apelação, mantendo-se o despacho determinativo da partilha na parte em que imputou o legado na quota indisponível do interessado Manuel…, filho do inventariado e revogando-se esse mesmo despacho relativamente às operações subsequentes da partilha, passando a mesma a efectuar-se na forma acima descrita, com a consequente anulação de todo o processado subsequente, incluindo a sentença homologatória da partilha.
Custas da apelação pelos herdeiros, na proporção do recebido.
Guimarães, 22 de Março de 2011
Ana Cristina Duarte
Maria Rosa Tching
Espinheira Baltar