Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1257/05.TAGMR.G1
Relator: MARIA AUGUSTA
Descritores: BURLA
ELEMENTOS TÍPICOS
DIREITO DE QUEIXA
EXTINÇÃO DO DIREITO DE QUEIXA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/06/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: O crime de burla é um crime de dano, que se consuma quando existe um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo, mas também de resultado, pois apenas se consuma com a saída do valor da esfera patrimonial do sujeito passivo, consubstanciada num prejuízo efectivo.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.

O MºPº deduziu acusação contra ANA V..., imputando-lhe a prática de um crime de burla, p. e p. pelo artº217º, nº1 do C.P..

O Sr. Juiz proferiu despacho de não recebimento da acusação, declarando extinto o procedimento criminal, por considerar que quando o ofendido participou os factos o direito de queixa já se encontrava extinto, carecendo, por isso, o MºPº de legitimidade para o exercício da acção penal.


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Inconformado, recorreu o MºPº, terminando a sua motivação com conclusões das quais resulta ser a questão a apreciar apenas uma:
· Saber se a queixa foi apresentada atempadamente.


Não houve resposta.

A Exmª Procuradora–Geral Adjunta nesta Relação emitiu parecer no qual entende que o recurso não merece provimento.

Foi cumprido o disposto no nº2 do artº417º do C.P.P.

Realizados o exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre decidir, sendo que as questões a decidir as acima enunciadas


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Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, a questão a decidir é a acima enunciada:
Saber se a queixa foi apresentada atempadamente e se, por isso, o MºPº tem legitimidade para instaurar e prosseguir com o procedimento criminal e deduzir acusação contra a arguida pelo crime de burla, p. e p. pelo artº217º do C.P.:

Nos termos do artº217º nº3 do C.P., o procedimento criminal pelo crime de burla simples nele previsto e pelo qual a arguida vem acusada, depende de queixa.
Quando o procedimento criminal depende de queixa, tem legitimidade para a apresentar o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, de acordo com o artº113º nº1 do C.P..
E para que o MºPº tenha legitimidade para promover o processo é necessário, nos termos do nº 1 do artº49° do C.P.P., que o titular desse direito dê conhecimento do facto ao Ministério Público para que este promova o processo.
Contudo, conforme preceitua o nº1 do artº115º do C.P., o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores.

No caso, António F... apresentou queixa contra L... e ANA V..., em 16/05/2005, imputando-lhe os seguintes factos passíveis, em seu entender, de integrar um crime de burla:
- celebrou com a L..., representada pela aqui arguida, sua funcionária, um contrato segundo o qual aquela se obrigou a fornecer-lhe equipamento informático e ministrar-lhe um curso de introdução à informática, no valor de € 2 240,00;
- para pagamento de parte do preço, entregou à L... um cheque no montante de € 500,00;
- para pagamento da restante quantia, em 17/06/2003, solicitou e obteve um empréstimo da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Área Metropolitana do Porto, a pagar em 36 prestações mensais, no montante de € 60,32 cada, vencendo-se a primeira em 17/07/2003;
- a aqui arguida comunicou-lhe que a proposta de crédito não havia sido aprovada;
- e exigiu-lhe, para que lhe fosse entregue o equipamento, a entrega de 3 cheques pré-datados, no valor de € 580,00 cada um;
- ignorando que a proposta de crédito tinha sido aprovada, em 04/09/2003, entregou-lhe 3 cheques com datas de, respectivamente, 15/10/2003, 15/11/2003 e 28/12/2003;
- os montantes titulados pelos cheques foram debitados na sua conta em 16/10/2003, 18/11/2003 e 30/12/2003, respectivamente;
- só quando foi efectuada a transferência mensal de € 60,32, em 14/08/2003, é que tomou conhecimento do facto;
- a arguida agiu com intenção de obter para a L... um enriquecimento ilegítimo e de lhe causar a si prejuízo patrimonial.

Basta ler a participação de fls.2/5 para se constatar, sem margem para dúvidas, que o queixoso teve «conhecimento do facto e dos seus autores» logo em 14/08/2003, conforme o mesmo confessa.
Por isso, quando apresentou queixa, em 16/05/2005, já esse direito se tinha extinguido, pois já tinham decorrido mais de 6 meses.

Mas, mesmo que assim se não entendesse, à mesma conclusão se chegaria tendo em conta a data de consumação do crime.
Explicitando:
Dispõe o artº217º do C.P, no seu nº1
Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
São, pois, elementos do tipo:
- que o agente determine alguém à prática de actos que causem prejuízo patrimonial a si próprio ou a terceiro;
- que o agente use de erro ou engano sobre os factos que astuciosamente provocou;
- que tenha intenção de obter, para si ou para terceiro, enriquecimento ilegítimo.
Na doutrina Comentário Conimbricense do CÓDIGO PENAL – Parte Especial – Tomo II, pág.276 e seg.. este crime é classificado como:
- um crime de execução vinculada;
- um crime de dano;
- um crime material ou de resultado;
- um crime de resultado parcial ou cortado.
De execução vinculada porque a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Traduz-se ele na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.
Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se, ainda, que nesse engano resida a causa prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais.
De dano porque só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património passivo do sujeito da infracção ou de terceiro.
Material ou de resultado porque apenas se consuma com a saída das coisas ou dos valores da esfera de “disponibilidade fáctica” do sujeito passivo ou da vítima;
De resultado parcial ou cortado porque se caracteriza por uma “descontinuidade” ou “falta de congruência” entre os correspondentes tipos subjectivo e objectivo, ou seja, embora se exija a intenção de enriquecimento ilegítimo por parte do agente, a consumação não está dependente de um efectivo enriquecimento, bastando-se com o empobrecimento da vítima.
Passando ao caso concreto:
Sendo o crime de burla, como se viu que é, um crime de dano, que se consuma quando existe um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo, mas também de resultado, pois apenas se consuma com a saída do valor da esfera patrimonial do sujeito passivo, consubstanciada num prejuízo efectivo, a sua consumação ocorreu em 2003, quando os cheques foram depositados na conta de L..., conforme consta da participação de fls.2/5.
Por isso, pelo menos desde a data em que foi depositado o último cheque – 30/12/2003 – teve o queixoso, necessariamente, conhecimento do facto e, obviamente, dos seu(s) autore(s).
Daí que em 16/05/2005, quando apresentou queixa, já há muito que o prazo de 6 meses a que se refere o artº115º, nº1 do C.P. se tinha extinguido.

Improcede, por isso, o recurso.


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DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em julgar o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Sem tributação.

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Guimarães, 06/12/2010