Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2077/07-1
Relator: AUGUSTO CARVALHO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/06/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA IMPROCEDENTE
Sumário: 1.Segundo a nova redacção do artigo 46º, nº 1, alínea c), são títulos executivos os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações de entrega de uma coisa. Mas, exige-se que o acto negocial seja válido quanto à forma pela qual foi celebrado, porque a exequibilidade de um documento pressupõe que ele respeita as exigências quanto à forma.
2.Nos casos em que a lei substantiva exija certas condições de forma para a constituição ou prova da obrigação, o título que não obedeça a tais condições não pode servir para exigir executivamente a dita obrigação.
3.Consubstanciando o documento apresentado à execução um contrato de mútuo nulo por irregularidade de forma, ele não pode ser considerado eficaz como título executivo. Ou seja, por virtude da invalidade formal do mútuo, o título apresentado é inexequível e o processamento da execução inviável.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


Luís V... instaurou execução comum contra Adelino D..., Luísa D..., Paulo F...., visando a cobrança da quantia total de 61.312,71 euros, proveniente de um contrato de empréstimo que celebrou com os executados.

Todos os executados deduziram oposição à execução, todos alegando, em síntese, a inexistência do título e que o documento dado à execução retrata um empréstimo efectuado, não pelo exequente, mas pelo seu irmão.

Nas contestações apresentadas, o exequente refere, além do mais, que o documento dado à execução consubstancia um título executivo, com a inerente força probatória dada pela lei civil, sendo dele inteligível a causa de pedir na execução. Representando uma confissão de dívida – e não um contrato de mútuo – foi o mesmo elaborado pelos executados e entregue ao exequente, de livre e espontânea vontade e cujo conteúdo represente a declaração dos signatários.
Todos os executados sabem que é o exequente o dono do estabelecimento de comércio de automóveis e que os irmãos negoceiam em seu nome. Também sabem que a dívida que possuem é para com o exequente.

Procedeu-se a julgamento e, a final, foi proferida decisão, julgando todas as oposições procedentes, tendo por base a prova testemunhal produzida, considerando que o empréstimo foi feito pelo irmão do exequente, pelo que se verifica inexequibilidade do título.

Inconformado com as decisões proferidas nas oposições à execução, o exequente recorreu para esta Relação, formulando as seguintes conclusões:
1.Dispõe o artigo 376º, do C. Civil: que “1. O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento. 2. Os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante; mas a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão”.
2.Dispõe o artigo 394º, do C. Civil: “1. É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções ou adicionais ao conteúdo do documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores. 2. A proibição do número anterior aplica-se a acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores”.

3.A confissão de dívida firmada pelos executados retrata a existência de uma dívida que é real e cujo dinheiro era pertença do exequente.
4.Não se vislumbra nos autos que os signatários do documento dado à execução o tenham firmado contra a sua vontade ou que o seu conteúdo seja falso ou retrate uma falsidade.
Principalmente quando, além da declaração de dívida em nome do exequente, emitem a favor do mesmo e em seu nome doze cheques bancários, para pagar o montante confessado.
5.Este entendimento terá que ser considerado, apesar do dinheiro ter sido entregue aos executados, através de cheque sacado da conta bancário do irmão do exequente. Mesmo assim, a materialidade de tal declaração de dívida não deixa de ser verdadeira.
6. Uma vez determinado que o documento particular é da autoria da pessoa ou pessoas a quem se refere, provado fica que estas fizeram as declarações que nele lhes são atribuídas e os factos compreendidos na declaração consideram-se provados, na medida em que forem contrários aos interesses do declarante.
7 O Juiz “a quo”, ao decidir como decidiu, fez errada interpretação do disposto nos artigos 376º e 394º, do C. Civil.
Sem prescindir:
8.deve ser alterada a resposta aos pontos 3 e 4, da matéria de facto provada, à qual deve ser dada a seguinte redacção:
“Para pagamento parcial da dívida confessada, o oponente Adelino pagou ao exequente o seguinte valor:
A 18 de Fevereiro de 2004, pelo cheque número 1576469944, da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Minho, pagou a quantia de 5.500,00”.
O número 3, da matéria de facto assente, deve ser dado como provado com a exclusão do texto – “(…) por José V..., irmão do exequente, e não por este (…)”.
9. Tudo ao abrigo do disposto no nº 1, do artigo 712º, do C. P. Civil e, afinal, a opsições serem julgadas improcedentes.
10. O Mmº Juiz “a quo”, ao decidir ao contrário da matéria de facto constante dos autos, extraída dos depoimentos e dos documentos também juntos, resulta necessariamente uma nulidade da sentença, nos termos das alíneas c) e d), do nº 1, do artigo 668º, do C. P. Civil.

Os opoentes/recorridos Adelino D... e Maria D... apresentaram contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

A sentença recorrida considerou assentes os seguintes factos:
1.O teor do escrito intitulado “ confissão de dívida “ que faz fls. 23 do processo de execução.
2.O teor dos 10 cheques que fazem fls. 108 a 111 do processo de execução.
3.O documento referido em 1) supra foi redigido na sequência de um empréstimo de €: 60.000,00 feito por José V..., irmão do exequente, e não por este, ao oponente Adelino e a Paulo S..., dedicando-se então estes dois últimos, em sociedade, ao comércio de automóveis, nos termos e condições nele exarados e cujo teor se dá por reproduzido integralmente, sendo que a restante quantia de €: 6.000,00 dizia respeito a juros remuneratórios.



4.Para pagamento parcial do aludido empréstimo, o oponente Adelino pagou ao referido José Júlio, os seguintes valores:
a) A 18 de Fevereiro de 2004 pelo cheque número 1576469944 da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo do Minho, pagou a quantia de €: 5.500,00.
b) A 28 de Abril de 2004 pagou a quantia de €: 5.500.00. através do cheque número 63102960 emitido pelo executado e sacado sobre a sua conta número 2749436-000-001 no balcão do BPI, da Póvoa de Lanhoso.
c) A 08 de Junho de 2004 foi paga nova quantia de €: 5.500.00 através do cheque número 64520537 sacado sob a mesma conta do BPI.
d) A 12 de Julho de 2004, foi paga a quantia €: 5.500.00, através do cheque número 67373779, sacado sob a mesma conta do BPI.
5.Os cheques referidos no ponto 2) supra foram preenchidos e assinados pelo oponente e entregues ao referido José, aquando da declaração mencionada em 3) supra.
6.Na mesma ocasião do aludido empréstimo, o aludido José exigiu que, além do referido Adelino e de Paulo S..., o escrito referido em 2) supra fosse também subscrito por Luísa D..., mulher do oponente Adelino, e por Lino S..., pai daquele executado Paulo F....
7.Aquando de tal escrito e empréstimo, o mencionado José Júlio, o mesmo Adelino e Paulo dedicavam-se à actividade de compra e venda veículos automóveis, sendo o oponente e Paulo F... sob a denominação “ Stand S... “.
8.O cheque nº 0676469945, cujo original consta de fls. 77 do apenso C), não foi pago, sendo devolvido pelo banco sacado.
9.O teor do escrito de fls. 16 do apenso B).


São apenas as questões suscitadas pelos recorrentes e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar – artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do C. P. Civil.
As questões levantadas com o presente recurso são as seguintes: inexequibilidade do título executivo; inadmissibilidade da prova testemunhal sobre o conteúdo do documento particular apresentado como título executivo; erro na apreciação da matéria de facto, no que concerne aos pontos 3 e 4, da matéria de facto assente.
Vejamos, em primeiro lugar, se ao documento, intitulado confissão de dívida, junto a fls 23, assiste força executiva, nos termos do artigo 46º, nº 1, alínea c), do C. P. Civil, visto que as outras questões se encontram numa relação de prejudicialidade.
Naquele documento – confissão de dívida – é referido que os opoentes Adelino D... e mulher Luísa D..., Paulo S... e Lino S... confessam-se solidariamente responsáveis devedores ao Senhor Luís V..., residente na freguesia de S. Victor, cidade e concelho de Braga, da quantia de 65.000,00 euros, quantia essa proveniente de um empréstimo que o referido senhor lhes fez e cujo pagamento lhe será efectuado, por eles confitentes, em 12 (doze) prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de 5.500,00 euros cada uma, vencendo-se a primeira em 15 de Fevereiro de 2004 e a última em 15 de Janeiro de 2005. Para pagamento das referidas prestações, entregam hoje, a ele credor, 12 (doze) cheques, no valor de 5.500,00 euros cada um, com os números 1576469944, 0676469945, 9476469946, 8576469947, 7676469948, 6776469949, 5876469950, 4976469951, 4076469952, 3176469953, 2276469954, 1376469955, emitidos pelo primeiro dos referidos confitentes e sacados sobre a conta número 40014153218 da Caixa de Crédito Agrícola do Minho, de que o mesmo é titular”.
Nos termos do artigo 458º, nº 1, do C. Civil, «se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário».
Consente-se que, através de acto unilateral, se efectue a promessa de uma prestação ou o reconhecimento de uma dívida, sem que o devedor indique o fim jurídico que o leva a obrigar-se, presumindo-se a existência e a validade da relação fundamental.
«Não se consagra neste artigo o princípio do negócio abstracto. O que se estabelece é apenas a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental. Se A, por exemplo, declara dever a B 100 contos, sem invocação da causa (empréstimo, venda, etc.), presume-se que esta obrigação tem uma causa, podendo, porém, o devedor fazer a prova do contrário.
Negócios puramente abstractos existem apenas no domínio dos títulos de crédito, no campo do direito comercial». P. de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 440.
A promessa de cumprimento e o reconhecimento de dívida, admitidos pelo citado artigo 458º, não constituem negócios abstractos, mas presunções de causa ou negócios com causa presumida. Isto é, são negócios causais, em que apenas se verifica a inversão do ónus da prova e daí que o devedor possa provar que a relação fundamental não existe ou é nula. Cfr. Castro Mendes, Direito Civil, vol. III, nº 202-G, pág. 420.
Quanto à forma, estabelece o artigo 458º, nº 2, que «a promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental».
A forma mínima para a promessa é o documento escrito. Se a prova da relação fundamental depender de formalidade de maior força, essa mesma forma ter-se-á de observar também na promessa ou reconhecimento.
Do documento – título executivo – resulta que a dívida nele reportada, no montante de 65.000,00 euros, da qual os executados/opoentes se confessam devedores solidários deriva de um empréstimo que o exequente lhes terá feito.
Consubstancia, pois, tal documento um mútuo, que, nos termos do disposto no artigo 1142º, do C. Civil, é um contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
Tem-se entendido que a entrega feita pelo mutuante ao mutuário do objecto do mútuo é um dos elementos do contrato, que a lei (citado artigo 1142º) conceberia como um contrato real, isto é, dependente da entrega da coisa. Cfr. Vaz Serra, Ver. De Leg. e Jur., ano 102º, pág. 363.
Sendo o conteúdo de tal documento consubstanciador de um contrato de mútuo, este é nulo por vício de forma, atento o disposto no artigo 1143º, do C. civil, na redacção introduzida pelo Dec. Lei nº 343/98, de 6 de Novembro, nulidade que é de conhecimento oficioso.
O carácter formal do contrato de mútuo deve-se a importantes interesses em jogo e à dificuldade que, de outro modo, ofereceria a sua prova.
Em sede de acção executiva e suas condições, como refere Miguel Teixeira de Sousa, deve distinguir-se entre exequibilidade do título e exequibilidade da pretensão exequenda ou, dito de outra forma, entre exequibilidade da pretensão incorporada ou materializada no título (exequibilidade extrínseca) e validade ou eficácia do acto ou negócio nele titulado (exequibilidade intrínseca).
«A exequibilidade do título executivo decorre do não preenchimento dos requisitos para que um documento possa desempenhar essa função específica, a inexequibilidade da pretensão baseia-se em qualquer facto impeditivo, modificativo ou extintivo do dever de prestar». Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, Lex, pág. 70.
Segundo a nova redacção do artigo 46º, nº 1, alínea c), são títulos executivos os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações de entrega de uma coisa, tendo deixado de relevar que esta seja móvel ou imóvel. Mas, exige-se que o acto negocial seja válido quanto à forma pela qual foi celebrado, porque a exequibilidade de um documento pressupõe que ele respeita as exigências quanto à forma.
«A invalidade formal do negócio jurídico afecta não só a constituição do próprio dever de prestar, como a eficácia do respectivo documento como título executivo. Essa invalidade formal atinge não só a exequibilidade da pretensão, como também a exequibilidade do título». Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., pág. 70.
No mesmo sentido, Lopes Cardoso afirma que, “nos casos em que a lei substantiva exija certas condições de forma para a constituição ou prova da obrigação, o título que não obedeça a tais condições não pode servir para exigir executivamente a dita obrigação». Manual da Acção Executiva, 3ª edição, pág. 44.
Assim, consubstanciando o documento em causa um contrato de mútuo nulo por irregularidade de forma, ele não pode ser considerado eficaz como título executivo. Ou seja, por virtude da invalidade formal do mútuo, o título apresentado é inexequível e o processamento da execução inviável.
É claro que o exequente/apelado pretendia ver provado, pela via da alteração da decisão sobre a matéria de facto, assim tornando exequível o título, que o empréstimo fora feito pelo exequente e não pelo irmão deste, José V..., aos executados/opoentes.
De todo o modo, sendo o exequente ou o irmão deste quem possa ter feito o empréstimo de 65.000,00 euros, por virtude da invalidade formal do contrato, sempre o título seria inexequível e o processamento da execução inviável.
A solução só poderá ser a de propor previamente acção de condenação na restituição da quantia mutuada por nulidade do contrato.
Em conclusão, dir-se-á o seguinte: segundo a nova redacção do artigo 46º, nº 1, alínea c), são títulos executivos os documentos particulares, assinados pelo devedor, que importem a constituição ou o reconhecimento de obrigações de entrega de uma coisa. Mas, exige-se que o acto negocial seja válido quanto à forma pela qual foi celebrado, porque a exequibilidade de um documento pressupõe que ele respeita as exigências quanto à forma; nos casos em que a lei substantiva exija certas condições de forma para a constituição ou prova da obrigação, o título que não obedeça a tais condições não pode servir para exigir executivamente a dita obrigação; consubstanciando o documento apresentado à execução um contrato de mútuo nulo por irregularidade de forma, ele não pode ser considerado eficaz como título executivo. Ou seja, por virtude da invalidade formal do mútuo, o título apresentado é inexequível e o processamento da execução inviável.
Verifica-se, deste modo, inexequibilidade do título, o que obsta ao prosseguimento da execução contra os executados e, por isso, embora com fundamento algo diverso, decide-se confirmar as sentenças proferidas nas várias oposições deduzidas.

Decisão:



Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar as sentenças recorridas.

Custas pelo apelante.



Guimarães, 6.12.2007