Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
415/04-1
Relator: CARVALHO MARTINS
Descritores: DIREITOS
CONDOMÍNIO
RESERVA DA VIDA PRIVADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/31/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: Tem legitimidade para pedir a anulação da deliberação o condómino ou condóminos que a não tenham aprovado, como o autor.
O âmbito normativo do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada e familiar deverá delimitar-se, assim, como base num conceito de «vida privada» que tenha em conta a referência civilizacional sob três aspectos: (1) o respeito dos comportamentos; (2) o respeito do anonimato; (3) o respeito da vida em relação. Muito mais intensificada na relação plural de existência (recte, co-existência) em condomínio, ou propriedade horizontal, que tem, já, por si, como elemento de redutora caracterização, uma acentuada limitação de espaço e movimento, com inevitáveis partilhas de domínio e sujeição a regras, como factor sistemático de relevância permanente.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:



I - A Causa:



"A", residente na Avenida ..., na cidade de Braga, na qualidade de condómino, propôs contra "B", "C", "D", "E", "F", "G", "H", "I", "J", "M", "N", "O", "P", "Q", "R", "S", "T", representados pelo referido condómino "N", na qualidade de administrador do condomínio desse prédio, todos residentes na Avenida ... Braga, acção de impugnação de deliberação tomada em Assembleia Geral de condóminos, pedindo a anulação ou a declaração de nulidade da deliberação da assembleia geral de condóminos realizada no dia 24 de Janeiro de 2003, na parte em que aprovou a instalação de um sistema de vídeo-vigiláncia destinada a cobrir os acessos ao edifício.
Para sustentar a sua posição, alegou ser proprietário das fracções AA (destinada a habitação) e CM (destinada a garagem) do prédio sito na Avenida ..., com entrada pelo n.° ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n.° ... e que, em Assembleia Geral de Condóminos, realizada em 24/01/2003, foi deliberada a instalação de um sistema de vídeo-vigiláncia, incidente sobre os acessos do edifício.
O autor não esteve presente nem se fez representar nesta Assembleia Geral, mas teve conhecimento da acta que reproduziu a mesma em 07/03/03, enviada por carta registada para a sua morada pelo administrador do prédio.
O autor não esteve presente nem se fez representar nesta Assembleia Geral, mas teve conhecimento da acta que reproduziu a mesma em 07/03/03, enviada por carta registada para a sua morada pelo administrador do prédio.
O autor considera que o sistema de vídeo-vigilância, a ser instalado, viabilizará o conhecimento e registo, por estranhos, dos seus actos pessoais, ou os de qualquer outro condómino, tais como as horas a que sai ou chega a casa, que pessoas ou convidados frequentam a sua casa, se passou o fim-de- semana em casa ou fora, etc.
Assim, invoca a ilegalidade da deliberação aludida, por violar o direito constitucional à reserva da intimidade da vida privada e familiar, consagrado no art.° 26.° da Constituição da República Portuguesa, bem como o art. 80.° do Código Civil.
Citados regularmente todos os réus, apenas António "M" de Araújo, "B", "D", "F", "G", "I", "J", "N" e "Q" vieram exercer processualmente o seu direito de defesa.
Assim, em contestação, alegam que a deliberação, na forma genérica adoptada, não é em si mesma ilegal, pois que, ainda que a sua concretização possa ser potencialmente ilegal (no que tange às características dos equipamentos, pontos exactos de vigilância, regulamentação do acesso, conservação e destruição de dados), tais pontos serão ponderados pela administração em conformidade com as disposições legais e regulamentares aplicáveis.
Acrescentam os réus, que a instalação de câmaras de vigilância não constitui uma violação da intimidade privada do autor, porquanto as áreas potencialmente abrangidas com o sistema de vigilância têm a ver, essencialmente, com a via pública, e com espaços comuns muito circunscritos, tais como a entrada principal do prédio e os acessos às garagens individuais.
Além disso, argumentam que no imóvel, onde circula um elevado número de pessoas, habitam 44 famílias, estando aberto à generalidade das pessoas que pretendem aceder ao edifício, pelas mais variadas razões, o que legitima a necessidade de implementar alguma forma de controlo, neste domínio.
Na opinião subscrita pelos réus, o acesso às fracções autónomas propriamente dito não será objecto de nenhum registo.
Como fundamento da deliberação aprovada apontam o facto de se terem verificado alguns assaltos por arrombamento de portas, não só de garagens, mas das próprias fracções, tendo, igualmente, sido detectados desconhecidos no interior do imóvel.
A instalação do sistema de vídeo-vigilância viabilizará a identificação de eventuais criminosos, funcionando igualmente como um efeito dissuasor.

Oportunamente, foi proferida decisão, onde se consagrou que:

Pelo exposto, julgo procedente a presente acção e, em consequência, declaro a nulidade da deliberação aprovada pelos réus, na parte em que determinaram “que a nova administração fica mandatada a proceder à instalação de um sistema de vídeo-vigilância, por forma a cobrir os acessos do prédio”.

Inconformados, os Réus vieram dela interpor recurso, de apelação, de fls. 124 e 125, alegando e formulando as seguintes conclusões, de fls.141 a 155:

1 — O saneador-sentença recorrido não contém matéria de facto donde se possa concluir pela legitimidade activa do Apelado (a sua qualidade de condómino), sendo que o seu direito de propriedade — facto impugnado — não resultou provado pelos meios idóneos.
2 — Pelo que violou o Meritíssimo Juiz a quo o art. 1420 1433° n.°1 do Código Civil e art. 2° n.° 1 ai. a) e 106° n.° 1 do Código do Registo Predial.
3 — Entendendo-se que “a própria argumentação dos réus (Apelantes) a propósito da premência de uma valorização do valor segurança no caso vertente, padece de alguma ambiguidade e falta de concretização”, deveria o Meritíssimo Juiz convidá-los a concretizar, ao abrigo do art. 508° n.° 3 e 265 n.° 3 do CPC ou permitir-lhes a concretização, no decurso da instrução da causa, enquanto factos instrumentais em desenvolvimento daqueles que fora oportunamente alegados, nos termos do art. 264 n.° 3 do CPC, normativos esses que resultaram violados.
4 — A vídeo-vigilância de partes comuns de prédios multi-familiares não é em si mesma ilegal, não existindo norma jurídica que expressamente o proíba.
5 — O Decreto-Lei n.° 231/98, de 22/07 (que regula o exercício da actividade de segurança privada), alterado pelo Decreto-Lei n.° 9472002, de 12/04, e bem assim como da Portaria n.° 969/98, de 16/11, parece admitir, por analogia, o emprego de meios de autoprotecçâo (como a vídeo vigilância) em condomínios de prédios - cfr. art.° l n.° 3 ai. b) e art. 4°.
6 — Não sendo a vídeo-vigilância em si mesma ilegal, apenas o poderiam ser as suas manifestações concretas; ora, a sentença recorrida não possuía matéria de facto para conhecer do pedido — nem o Apelado a alegou — por nem sequer ter sido definido qual o regime de acesso, conservação e destruição dos dados, locais concretos de colocação de câmares e a contratação de empresa de segurança operadora.
7 — A deliberação não tinha que conter a disciplina de tratamento/acesso aos dados recolhidos, a qual poderia ser efectuada numa ulterior deliberação (impugnável) ou num regulamento elaborado pelo próprio administrador, desde que tal definição fosse prévia à entrada em funcionamento do sistema.
8 - Os termos literais da deliberação que o Apelado vem por em causa constituem balizas demasiado genéricas para que o julgador pudesse avaliar os critérios concretos de necessidade, proporcionaldade e adequação, na concordância prática entre direitos fundamentais potencialmente antitéticos.
9 - Ou seja, o julgador da 1 instância não tinha matéria de facto, nem sequer objecto, para poder conhecer do pedido — muito menos no despacho saneador.
10 - O sistema de vídeo-vigilância não traduz a priori um “atentado de repercussões gravosas, contra o direito de reserva da intimidade da vida privada do autor e de qualquer outro condómino”.
11 - Apenas permite saber-se quando se entra e quando se sai e com quem se entra e com quem se sai das habitações, factos esses que não constituem o núcleo essencial do direito à protecção da intimidade da vida privada, uma vez que são facilmente controláveis por vias alternativas, a quem pudera querer interessar-se pela vida do Apelado (relembrando-se que os Apelantes são igualmente ciosos da protecção da sua intimidade), mediante vigilância por meios electrónicos ou até mesmo directa, a partir da via pública.
12 - Um porteiro — meio de legalidade aparentemente inquestionável - possui desvantagens manifestamente superiores à vídeo-vigilância, porquanto se trata de solução incomparavelmente mais onerosa e mais propícia a maior devassa e difusão de potenciais comentários, onde o “acesso aos dados” é irrestrito, verificando-se um risco de indiscrição manifestamente maior.
13 - Não se vê em que medida um sistema de vídeo-vigilância se traduz agravamento adicional sobre o direito à protecção da intimidade privada, relativamente a um porteiro. Também este pode conhecer “uma multiplicidade de aspectos ligados à privacidade de cada um”, pondo em causa a sua preservação pelo mero conhecimento (inevitável) ou difusão, mais ou menos circunscrita.
14 - A sentença não podia chumbar liminar e rotundamente, em abstracto, a tutela do valor da segurança mediante sistema de vídeo-vigilância, contra o direito de protecção à intimidade privada.
15 - A vídeo-vigilância é um meio reconhecidamente eficaz na dissuasão da prática de crimes e, subsidiariamente, permite identificar os seus agentes, sendo a realização da justiça penal um bem constitucionalmente protegido.
16 — Ao dirimir o conflito de direitos, a sentença em causa sacrificou, sem fundamentação bastante, o núcleo essencial dos direitos fundamentais à segurança, integridade física e moral, com o que violou os arts. 250 n.° 1, n.° 27° n.° 1 e 34 n.° 1 da Constituição da República), dos condóminos que votaram expressa e tacitamente a deliberação (todos os demais), incorrendo em inconstitucionalidade, que ora se argui e invoca expressamente, para todos os efeitos legais.
TERMOS EM QUE
a) deve ser revogado o despacho saneador-sentença, substituindo-se por despacho que absolva os Réus do pedido, por falta de objecto da deliberação;
ou subsidiariamente
b) deve ser revogado o despacho saneador, ordenando-se a notificação dos Apelados para concretizar a matéria alegada nos arts. 220 a 250 da contestação, ordenando-se a posterior elaboração de selecção da matéria de facto, onde se inclua a questão da propriedade do Apelado, com o prosseguimento dos demais termos.

Não houve contra alegações.

II. Os Fundamentos:

Colhidos os Vistos legais, cumpre decidir:

Matéria de facto assente na 1ª Instância:

1 — Em 26 de Agosto de 1992, no Segundo Cartório Notarial, em Braga, "A", casado no regime de comunhão geral de bens com ...Maria, declarou, perante notário, comprar a Henrique ... e Artur , que outorgaram na qualidade de únicos sócios e gerentes da sociedade comercial por quotas ‘H.. D..., ..” que, por sua vez, declararam vender, a fracção AA, destinada a habitação e a fracção CM, destinada a garagem, ambas situadas no prédio urbano sito na Avenida ..., com os n.°s ... a ... de polícia.
2 — Os réus são condóminos do prédio, constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida ..., n.° ..., em Braga.
3 — Em 24 de Janeiro de 2003 realizou-se uma Assembleia Geral Ordinária de Condóminos.
4 — Da acta desta Assembleia Geral, junta aos autos a fls. 08 a 13, consta que, no âmbito do ponto “outros assuntos” foi proposto pelo condómino do 10.0 esquerdo frente e aprovado por unanimidade, “que a nova administração fica mandatada a proceder à instalação de um vídeo-vigilância, por forma a cobrir a cobrir os acessos ao edifício. Para tal, deve a administração decidir pela melhor proposta de um conjunto de orçamentos a obter, em número nunca inferior a dois.”
5 — O autor não esteve presente, nem se encontrava representado na Assembleia Geral referida em 3).
6— Em 07 de Março de 2003, o autor recebeu a carta registada, emitida pelo administrador do prédio, com o teor da acta da Assembleia Geral referida em 3).

Nos termos do art. 684º, nº3 e 690º, nº1, do CPC, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do disposto na última parte do nº2, do art. 660º, do mesmo Código.

Das conclusões, ressaltam as seguintes questões:

1 — O saneador-sentença recorrido não contém matéria de facto donde se possa concluir pela legitimidade activa do Apelado (a sua qualidade de condómino), sendo que o seu direito de propriedade — facto impugnado — não resultou provado pelos meios idóneos?
2 — Pelo que violou o Meritíssimo Juiz a quo os art.s 1420º e 1433° n.°1 do Código Civil e art. 2° n.° 1 ai. a) e 106° n.° 1 do Código do Registo Predial?

3 — Entendendo-se que “a própria argumentação dos réus (Apelantes) a propósito da premência de uma valorização do valor segurança no caso vertente, padece de alguma ambiguidade e falta de concretização”, deveria o Meritíssimo Juiz convidá-los a concretizar, ao abrigo do art. 508° n.° 3 e 265 n.° 3 do CPC ou permitir-lhes a concretização, no decurso da instrução da causa, enquanto factos instrumentais em desenvolvimento daqueles que fora oportunamente alegados, nos termos do art. 264 n.° 3 do CPC, normativos esses que resultaram violados?

4 - Ou seja, o julgador da 1ª instância não tinha matéria de facto, nem sequer objecto, para poder conhecer do pedido — muito menos no despacho saneador?

5 - O sistema de vídeo-vigilância não traduz a priori um “atentado de repercussões gravosas, contra o direito de reserva da intimidade da vida privada do autor e de qualquer outro condómino”?

6 - Ao dirimir o conflito de direitos, a sentença em causa sacrificou, sem fundamentação bastante, o núcleo essencial dos direitos fundamentais à segurança, integridade física e moral, com o que violou os arts. 250 n.° 1, n.° 27° n.° 1 e 34 n.° 1 da Constituição da República), dos condóminos que votaram expressa e tacitamente a deliberação (todos os demais), incorrendo em inconstitucionalidade?


Apreciando, diga-se que, de acordo com o disposto no art. 510º,do CPC, o estado do processo permitirá conhecer imediatamente do mérito da causa sem necessidade de mais provas (al. b) do n.° 1 deste artigo, na sua actual redacção) sempre que a questão seja apenas de direito, ou, sendo de direito e de facto, ou só de facto — como se dizia no anterior texto — o processo contiver todos os elementos, segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, e não apenas tendo em vista a perfilhada pelo juiz da causa. O que, circunstancialmente, acontece.
De salientar que o texto actual da aI. b) do n.° 1, deste mesmo artigo, consagrou a admissibilidade do conhecimento parcial do mérito da casua no despacho saneador — apreciação de «algum dos pedidos principais» — na esteia do entendimento perfilhado, já antes, pela doutrina e jurisprudência dominantes.
Ficou, de igual modo, claro que a decisão quer no sentido da procedência, quer da improcedência de alguma excepção peremptória, incide sobre o mérito da causa, com as inerentes consequências para efeito da espécie de recurso cabível (cf. parte final do n.° 3) (da improcedência de excepção peremptória, decidiram caber recurso de agravo, entre outros, os Acs. RE, de 2O.1. 325.°- 6 D 335.°- 348 RL, de 13.12.1983: Col. Jur., 1983, 5.°-231; RC, de28,10,1986: BMJ, 360.°-666; RC, de 10.1.1989: BMJ 383.°-624; e A. Varela, RLJ, 121°- 133).
Devendo o juiz conhecer no saneador de qualquer questão que envolva o afastamento de uma ou mais causas de pedir na acção, de modo a evitar ter de especificar ou quesitar factos que, de antemão, se sabe serem indiferentes à solução jurídica do pleito . (Ac. RL, de 12.1.1973: BMJ, 223.°-273).
O conhecimento do pedido no despacho saneador pressupõe um estudo profundo do processo por forma a conhecer-se que é esse o único caminho a seguir. (Ac. RC, de 25.10.1983: CoL Jur., 1983, 4.°- 64). E isso, por constatação, foi feito.
Tem legitimidade para pedir a anulação da deliberação o condómino ou condóminos que a não tenham aprovado (Rodrigues Pardal, Baptista Dias, Da Propriedade Horizontal, 5ª Edição, Coimbra Editora, pag. 258), como o autor. Na verdade, o condómino que votou a favor da deliberação, esse, é que não tem legitimidade para pedir a sua anulação (arts. 26.° e 680º do Cod. de Proc. Civil). Sendo que a legitimidade «tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da acção possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida, como a apresenta o autor» (M. TEIXEIRA DE SOUSA, A Legitimidade Singular..., BMJ, 292°- 105).
O que permite concluir que o Senhor Juiz a quo não violou os art.s 1420º 1433° n.°1 do Código Civil e 2° n.° 1 al. a) e 106° n.° 1 do Código do Registo Predial.
Colhem, assim, resposta negativa as 1ª e 2ª questões formuladas.

Como negativa é a resposta à 3ª e 4ª questões formuladas. Pois que o art. 508º não funciona como qualquer elemento impeditivo, já que dele decorre, tão só, que o nº° 2 do art. 265º, para o qual remete a al. a) do n.° 1 deste art. 508º, prescreve que «o juiz providenciará, mesmo oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando estiver em causa alguma modificação subjectiva da instância, convidando as partes a praticá-los».
«A generalidade dos pressupostos processuais cabe nesse normativo, desde, designadamente, situações de suprimento de incapacidade judiciária e de irregularidade de representação (arts. 23ºe 24º,5, ou de falta de autorização ou de deliberação (art. 25°), ou de adequada cumulação (art. 31º), ou de falta de representação forense (art. 33º) ou, até mesmo, situações de litisconsórcio necessário ou de outra modificação possível subjectiva da instância (art. 265º, n.° 2)» (A. PAIS DE SOUSA e J. CARDONA FERREIRA, Processo Civil, 1997, pág. 38).
«O n.° 2, implica um dever do Tribunal, e o nº 3 uma simples faculdade. Daí que a omissão do convite nos termos do n.° 3 não seja impugnável; mas já seja arguível, como regularidade potencialmente relevante, a omissão do dever prescrito pelo nº2, e seja recorrível (conforme as regras dos recursos) o despacho proferido sobre tal arguição» (A. PAIS DE SOUSA e CARDONA FERREIRA, Processo Civil, 1997, pág. 39).
Recorde-se, mesmo, que o Acórdão n° 222/90 do Tribunal Constitucional, de 20.6.1990 (DR, II, n.° 215, de 17.9.1990, BMJ398.°-224 e ATC, 16.°-635), não julgou inconstitucional a norma do antigo art. 508º n.° 3, do CPC, enquanto consentia que o juiz pudesse decidir no despacho saneador «qualquer excepção».
Com o declarado e assumido objectivo de reduzir drasticamente os obstáculos formais, de natureza processual, à apreciação do objecto da lide e a inerente composição do conflito, a reforma de 1996 não só introduziu a possibilidade de sanação da falta de certos pressupostos processuais, como, além disso, atribuiu ao Juiz os necessários poderes-deveres tendentes a efectivar essa regularização, em assunção consagrada, designadamente, no art.265º, do CPC.
No entanto, reconheça-se que o juiz só não pode, sem mais, conhecer do mérito da causa do despacho saneador (julgando improcedente a acção) se não constarem dos autos os elementos que provariam os factos alegados pelo autor; apenas nessa altura – que se não conforma nos Autos - devendo, no âmbito dos poderes que lhe são conferidos pelo art. 264°, n.° 3, do Cód. Proc. Civil, convidar o autor a completar essa prova no prazo que seja fixado, sob pena de o processo ser, então , e sempre, apreciado através dos elementos nele existentes (Ac. RC, de 27.11,1979: BMJ, 293.°-443).
Tomando por referência o disposto no art. 264º do CPC, em sentido lato, o princípio dispositivo, enquanto contraposto ao princípio inquisitório ou da oficialidade, significa que «as partes dispõem do processo, como da relação jurídica material. O processo é coisa ou negócio das partes (concepção privatística, contratualista ou quase-contratualista do processo). E uma luta, um duelo entre as partes, que apenas tem de decorrer segundo certas normas. O juiz arbitra a pugna, controlando a observância dessas normas e assinalando e proclamando o resultado (concepção duelistica ou «guerresca» do processo). Donde a inércia, inactividade ou passividade do juiz, em contraste com a actividade das partes. Donde também que a sentença procure e declare a verdade formal (intra-processual) e não a verdade material (extra-processual)» (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civí4 1963, págs. 347 e s.),
Como corolários ou consequências do mencionado princípio, o processo só se inicia sob o impulso da parte, mediante o respectivo pedido — princípio do pedido—, assim como só prossegue desde que tal impulso se mantenha, podendo as partes pôr-lhe termo (desistência da instância) e/ou determinar o conteúdo da sentença de mérito, seja através de confissão ou de desistência do pedido, seja mediante transacção, e, acima de tudo, só às partes compete proporcionar ao juiz, mediante as suas afirmações de facto e as provas que produzam, a base factual da decisão, obedecendo a apreciação das provas a critérios legais rígidos.
Com a actual reforma do processo civil, por um lado, as partes perderam o quase monopólio que detinham sobre a lide, e, por outro, o tribunal passa a assumir uma posição muito mais activa, por forma a aproximar da verdade material, ou seja, a alcançar a justa composição do litígio, que é, em derradeira análise, o fim último de todo o processo.
Assim, às partes cabe, em exclusivo, definir o objecto do litígio através da dedução das suas pretensões — ou seja, enunciar o pedido ou pedidos formulados por via da acção ou da reconvenção — e da correlativa alegação dos factos que integram a causa de pedir ou que sirvam de fundamento a eventuais excepções, de tal modo que, em princípio, o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes.
Ainda assim, constituem emanações do princípio dispositivo, entre outras, as seguintes faculdades reconhecidas às partes:
a) a de suscitarem questões incidentais (art. 96°); b) a de provocarem a suspensão temporária da instância (art. 279°- 4); c) a liberdade, embora com limites, de desistência, confissão e transacção (arts. 293.° a 300º); d) a de o réu deduzir pedido reconvencional, mesmo com o envolvimento de outros sujeitos processuais (arts. 274.° e 501.°- 1; e) a de requererem tentativa de conciliação (art. 509.°-1); f) a de seleccionar os meios de prova a utilizar e de lhe introduzirem algumas alterações.
O nº 1 do artigo 264º mantém a consagração do princípio do pedido, competindo exclusivamente às partes a delimitação dos termos do litígio, mediante o enunciado dos fundamentos (causa de pedir) e a formulação das respectivas pretensões (pedido) e a selecção dos meios de defesa tidos por adequados.
Relevando, muito embora, nos termos do n.° 3 deste artigo, para que os factos essenciais à procedência da acção ou das excepções deduzidas, resultantes da instrução e/ou da discussão da causa, e que sejam complemento ou concretização de outros oportunamente alegados, possam ser tomados em consideração para efeitos de decisão, é indispensável a verificação cumulativa de um duplo requisito: (i) que a parte interessada manifeste, por forma suficientemente clara e inequívoca, vontade de deles se aproveitar, seja por iniciativa própria e autónoma, seja por sugestão do Tribunal; (ii) que à parte contrária tenha sido facultado um efectivo contraditório quer em relação aos factos propriamente ditos, quer ao seu aproveitamento e/ou relevância.
Apreciando a 5ª questão, considera-se, também, que o sistema de vídeo-vigilância traduz um “atentado de repercussões gravosas, contra o direito de reserva da intimidade da vida privada do autor e de qualquer outro condómino”, em resposta de formulação positiva.
Com efeito, os direitos de personalidade são protegidos contra qualquer ofensa ilícita, nos termos do art. 70º do CC, não sendo necessária a culpa nem a intenção de prejudicar o ofendido, pois decisiva é a ofensa em si (Ac. STJ, 6-5-1998: CJ/STJ, 1998. 2 - 76). A própria Constituição da República, no seu art. 26º, consagra o direito de todos os cidadãos «à imagem e à reserva de intimidade da vida privada e familiar.( Ac. STJ,24.5.89: BMJ, 387 – 531; Diogo Leite de Campos, O Direito e os Direitos de Personalidade, em ROA, 531 (1993), pag.s 202 e ss; Rabindranath Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade,1995, passim).
Com efeito, ao reunir num único artigo ( 26º ) nada menos do que sete direitos distintos, a Constituição sublinha aquilo que, para além da sua diversidade, lhes confere carácter comum, e que consiste em todos eles estarem directamente ao serviço da protecção da esfera nuclear das pessoas e da sua vida, abarcando fundamentalmente aquilo que a literatura juscivilista designa por direitos de personalidade. Não é por acaso que este preceito surge imediatamente a seguir ao direito à vida e ao direito à integridade pessoal (arts. 24° e 25°) e que a sua epígrafe refere «outros direitos pessoais», o que quer dizer: outros, além da vida e da integridade pessoal, mas integrantes da mesma categoria específica.
Daí que, tal como esses, alguns destes direitos de personalidade gozem de protecção penal, e que eles constituam igualmente limite de outros direitos fundamentais que com eles possam conflituar (v. g., limite à liberdade de informação e de imprensa). Cfr. J. DE CASTRO MENDES, «Direitos, liberdades e garantias», Estudos sobre a Constituição. vol. 1 (Lisboa, 1977); RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA,«A Constituição e os direitos de personalidade», Estudos sobre a Constituição, vol. II (Lisboa, 1978); J. J. CANOTILHO/V. MOREIRA Fundamentos da Constituição, Cap. I 4.2. VIII.
O direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (n° 1, in fine, e n° 2) analisa-se, principalmente, em dois direitos menores: (a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem (cfr. Cód. Civil, art. 80°). Alguns outros direitos fundamentais funcionam como garantias deste: é o caso do direito à inviolabilidade do domicílio e da correspondência (art. 342º), da proibição de tratamento informático de dados referentes à vida privada (art. 35°-3); instrumentos jurídicos privilegiados de garantia deste direito são igualmente o sigilo profissional e o dever de reserva das cartas confidenciais e demais papéis pessoais (cfr. Cód. Civil, arts. 75º a 78°). Aliás, a Constituição incumbe a lei de garantir efectiva protecção a esse direito (n° 2), compreendendo-se essa preocupação suplementar face aos sofisticados meios que a técnica hodierna põe à disposição da devassa da vida privada e da colheita de dados sobre ela.
Não é fácil demarcar a linha divisória entre o campo da vida privada e familiar que goza de reserva de intimidade e o domínio mais ou menos aberto à publicidade (sendo diversas as teorias que pretendem fornecer o critério distintivo). Alguma doutrina distingue entre esfera pessoal íntima (absolutamente protegida) e esfera privada simples (apenas relativamente protegida, podendo ter de ceder em conflito com outro interesse ou bem público); mas à face deste preceito da CRP parece que tal distinção não é relevante. O critério constitucional deve talvez arrancar dos conceitos de «privacidade» (nº 1) e «dignidade humana» (nº 2), de modo a definir-se um conceito de esfera privada de cada pessoa, culturalmente adequado à vida contemporânea.
O âmbito normativo do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada e familiar deverá delimitar-se, assim, como base num conceito de «vida privada» que tenha em conta a referência civilizacional sob três aspectos: (1) o respeito dos comportamentos; (2) o respeito do anonimato; (3) o respeito da vida em relação. Cf. JJ Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª edição, revista, pag.s 181 e 182.
Com este alcance, a inviolabilidade do domicílio está relacionada com o direito à intimidade pessoal (esfera privada espacial), previsto no art. 26°, considerando--se o domicílio como projecção espacial da pessoa. É ainda um direito à liberdade da pessoa, e assim é que a Constituição considera a «vontade», o «consentimento» da pessoa (n° 2 e 3) como condição sine qua non da possibilidade de entrada no domicílio dos cidadãos fora dos casos de mandato judicial.
As restrições ao direito à inviolabilidade do domicílio (nºs 2 e 3) estão sob reserva da lei a qual deverá tipificar os casos em que pode ter lugar. Cfr. JJ Gomes Canotilho, Constituição da República Portuguesa, Anotada, 3ª Edição Revista, pág.s 179 e 180.
Assim se compreende que, com a tutela ao resguardo da vida privada, se pretende defender, contra quaisquer violações, a paz, o resguardo, a tranquilidade duma esfera íntima da vida: não se trata da tutela da honra, mas do direito de estar só (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pag. 209).
Naturalmente que se configura como inquestionável a circunstância de, no nº1, do art. 27º, da CRP « todos têm direito à liberdade e à segurança». O que quer dizer que além do direito à liberdade, o n°1 garante o direito à segurança, o qual significa essencialmente garantia de exercício seguro e tranquilo dos direitos, liberto de ameaças ou agressões. Desde a Constituição de 1822 (art. 3°), onde a ideia de segurança pessoal significava «a protecção que o governo deve dar a todos para poderem conservar os seus direitos pessoais», que a segurança representa mais uma garantia de direitos do que um direito autónomo. O sentido do texto actual comporta duas dimensões: (a) dimensão negativa, estritamente associada ao direito à liberdade, traduzindo-se num direito subjectivo à segurança (direito de defesa perante agressões dos poderes públicos); (b) dimensão positiva, traduzindo-se num direito positivo à protecção através dos poderes públicos contra as agressões ou ameaças de outrem. Cfr. JJ Gomes Canotilho, Vital Moreira, ob. cit., pag.184.
A decisão em causa coloca correctamente a questão ao considerar (fls. 104) que

está, portanto, em causa a dificuldade de harmonizar, no caso concreto, dois direitos fundamentais — o direito à reserva da intimidade da vida privada e o direito à segurança — cuja inclusão no título II da 1 Parte da CRP consubstancia, desde logo, um elemento formal e sistemático legitimador da sua integração na categoria dos direitos, liberdades e garantias.
O que nos presentes autos se pretende apurar, consiste, pois, na questão de saber qual dos dois direitos conflituantes deverá prevalecer, atenta a natureza antitética da sua coexistência.
Neste contexto, há um conflito de direitos sempre que se constate que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição concreta.

E valora adequadamente, bem decidindo, ao dar prevalência - circunstancial - ao direito à reserva da intimidade da vida privada. Isto porque, como se apreciou, o que está em causa é, em absoluto, a paz, o resguardo, a tranquilidade duma esfera íntima da vida . Muito mais intensificada na relação plural de existência ( recte, co-existência ) em condomínio, ou propriedade existencial, que tem, já, por si, como elemento de redutora caracterização, uma acentuada limitação de espaço e movimento, com inevitáveis partilhas de domínio e sujeição a regras, como factor sistemático de relevância permanente. Sendo que, inarredavelmente, como, do mesmo modo se observou, e merece sufrágio:

Na verdade são os próprios réus a admitir, em sede de contestação, que as potencialidades do sistema de vídeo-vigilância se circunscrevem ao efeito dissuasor que o mesmo encerra, bem como à identificação de eventuais agentes de um crime que seja cometido nesse edifício.
Por outro lado, a própria argumentação dos réus a propósito da premência de uma valorização do valor segurança no caso vertente, padece de alguma ambiguidade e falta de concretização.
Com efeito, referem apenas que se registaram alguns assaltos por arrombamento de portas a garagens e habitações, mas não especificam o seu número, nem as circunstâncias em que os mesmos ocorreram, o que inviabiliza um juízo sustentado sobre a necessidade de um reforço na segurança do prédio.
Referem, ainda, que têm detectado no prédio, indivíduos de aspecto marginal e propósitos desconhecidos, mas tais factos, atenta a sua ambiguidade, são insusceptíveis de fundamentarem a gravidade da insegurança do prédio, nos termos que os réus pretendem ver reconhecida.
Acresce que não foi deliberada qualquer regulamentação quanto ao tratamento dos dados pessoais obtidos com o registo de imagens pelas câmaras de vigilância.

Razões que, conjugadas, permitem considerar que, ao dirimir o conflito de direitos, a sentença em causa não sacrificou, e com fundamentação bastante, o núcleo essencial dos direitos fundamentais à segurança, integridade física e moral, com o que violou os arts. 25 n.° 1, n.° 27° n.° 1 e 34 n.° 1 da Constituição da República), dos condóminos que votaram expressa e tacitamente a deliberação (todos os demais). Não incorrendo, por isso, em qualquer inconstitucionalidade. Deste modo respondendo, também, de forma negativa à 6ª questão formulada.

Pode, assim, concluir-se que:

1. O juiz deve conhecer no saneador de qualquer questão que envolva o afastamento de uma ou mais causas de pedir na acção, de modo a evitar ter de especificar ou quesitar factos que, de antemão, se sabe serem indiferentes à solução jurídica do pleito .

2. O conhecimento do pedido no despacho saneador pressupõe um estudo profundo do processo por forma a conhecer-se que é esse o único caminho a seguir. E isso, por constatação, foi feito.

3. Tem legitimidade para pedir a anulação da deliberação o condómino ou condóminos que a não tenham aprovado, como o autor.

4. «O n.° 2, do art. 508º do CPC, implica um dever do Tribunal, e o nº 3 uma simples faculdade. Daí que a omissão do convite nos termos do n.° 3 não seja impugnável; mas já seja arguível, como regularidade potencialmente relevante, a omissão do dever prescrito pelo nº2, e seja recorrível (conforme as regras dos recursos) o despacho proferido sobre tal arguição» .

5. O Acórdão n° 222/90 do Tribunal Constitucional, de 20.6.1990 (DR, II, n.° 215, de 17.9.1990, BMJ 398.°-224), não julgou inconstitucional a norma do antigo art. 508º n.° 3, do CPC, enquanto consentia que o juiz pudesse decidir no despacho saneador «qualquer excepção».

6. O nº 1 do artigo 264º, do CPC, mantém a consagração do princípio do pedido, competindo exclusivamente às partes a delimitação dos termos do litígio, mediante o enunciado dos fundamentos (causa de pedir) e a formulação das respectivas pretensões (pedido) e a selecção dos meios de defesa tidos por adequados.
7. Os direitos de personalidade são protegidos contra qualquer ofensa ilícita, nos termos do art. 70º do CC, não sendo necessária a culpa nem a intenção de prejudicar o ofendido, pois decisiva é a ofensa em si.

8. O critério constitucional deve talvez arrancar dos conceitos de «privacidade» (nº 1) e «dignidade humana» (nº 2), de modo a definir-se um conceito de esfera privada de cada pessoa, culturalmente adequado à vida contemporânea.

9. O âmbito normativo do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada e familiar deverá delimitar-se, assim, como base num conceito de «vida privada» que tenha em conta a referência civilizacional sob três aspectos: (1) o respeito dos comportamentos; (2) o respeito do anonimato; (3) o respeito da vida em relação.

10. A decisão em apreço, valora adequadamente, bem decidindo, ao dar prevalência - circunstancial - ao direito à reserva da intimidade da vida privada. Isto porque, como se apreciou, o que está em causa é, em absoluto, a paz, o resguardo, a tranquilidade duma esfera íntima da vida . Muito mais intensificada na relação plural de existência (recte, co-existência ) em condomínio, ou propriedade horizontal, que tem, já, por si, como elemento de redutora caracterização, uma acentuada limitação de espaço e movimento, com inevitáveis partilhas de domínio e sujeição a regras, como factor sistemático de relevância permanente.


III. A Decisão:

Pelas razões expostas, nega-se provimento ao recurso interposto, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.