Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
131/05-1
Relator: MARIA AUGUSTA
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
SEGURANÇA SOCIAL
CONFLITO DE DEVERES
ESTADO DE NECESSIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/14/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O conflito de deveres surge como uma das causas de justificação regulada expressamente no Código Penal, que refere no art°360º n° 1: “ Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito, no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer o dever ou ordem de igual valor ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar”.
II – Ora sendo evidente que os arguidos, enquanto sócios das arguidas, estavam contratualmente obrigadas a pagar integralmente os salários dos seus assalariados, já está sequer provado que exista um nexo de causalidade entre a não entrega das contribuições à Segurança Social e o pagamento dos salários em questão, sendo lógico que, apesar de se desconhecer o número de trabalhadores da empresa, a não entrega das contribuições apenas permitiria o pagamento dos salários a uma pequena parte deles.
III – Por outro lado, a partir do momento em que o Estado, que representa a sociedade, decidiu criminalizar a apropriação por parte das entidades empregadoras das importâncias deduzidas nas retribuições a título de contribuições para o regime de Segurança Social, não há dúvida de que para a ordem jurídica, considerada na sua totalidade, o dever de não se apropriar dessas contribuições prevalece sobre o dever das entidades patronais pagarem os salários.
IV – De resto, não se pode considerar sequer que os arguidos ao utilizarem as contribuições devidas para pagar salários estejam a agir num estrito cumprimento do dever, devendo notar-se que ao manter postos de trabalho, utilizando dinheiro pertencente à Segurança Social, não só prejudicam o Estado mas também as empresas que cumprem as suas obrigações legais, desvirtuando as regras da livre concorrência.
V – É, pois, de concluir pela não verificação de conflito de deveres, uma vez que nada legalmente impedia os arguidos de agir em conformidade com a ler
VI – O estado de necessidade, enquanto circunstância de exclusão da culpa, pretende abranger aquelas situações em que se encontra enfraquecido, de forma significativa, o desvalor da acção ilícita através de situações de estados emocionais que colidem com o processo de formação da vontade, de tal forma que não e exigível ao agente outro comportamento, referindo o artº 35º, nº 1 do C. Penal que: Age sem culpa quem praticar um facto Ilícito adequado a afastar um perigo actual e, não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir dele, segundo as circunstâncias do caso comportamento diferente.
VII – No entanto, não basta que o facto ilícito perpetrado seja adequado ao afastamento do perigo, sendo ainda necessário que aquele seja o único facto capaz de remover o perigo, pelo que havendo outro ou outros meios para afastar o perigo, o agente terá que optar pelo lícito ou menos ilícito.
VIII – Ora, no caso em apreço, não há fundamento para considerar o não pagamento de salários como um perigo actual, devendo notar-se que, se os arguidos tivessem deixado de pagar os salários os trabalhadores poderiam fazer cessar, por justa causa, os seus contratos de e intentar contra a sociedade arguida as competentes acções.
IX – Por outro lado, também não há qualquer elemento que aponte no sentido de que o único meio de que o arguido dispunha para efectuar o lamento dos salários passasse pela assunção de um comportamento delituoso.
X – É, pois, de concluir que não se verificam os pressupostos do estado de necessidade desculpante, nem há elementos nos autos que permitam, de forma alguma, sustentar que não era exigível aos arguidos ter um comportamento lícito.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:


No processo Comum Singular n.º660/03 do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Braga, por sentença datada de 13/06/04 e depositada na mesma data, foram condenados os arguidos "A", "B" e "C" condenados como co-autores materiais de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, na forma continuada p. e p. pelos artºs27-B27-B, 24º nºs 1, 2 e 4, todos do Dec-lei nº20-A/90, 30º nº2 e 79º, ambos do C.P., nas seguintes penas:
- o primeiro, na pena de 5 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa, à taxa diária de € 10,00;
- cada um dos 2º e 3ºs, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, condicionada ao pagamento à Segurança Social do montante total das contribuições em dívida e respectivos acréscimos legais, no prazo de 2 anos, contados sobre o trânsito em julgado da sentença.
Foi ainda condenada a arguida "D", nos termos do artº7º do RJIFNA na multa de € 3 278,69.

O pedido cível foi julgado parcialmente procedente e, em consequência, foram os demandados "B", "C" e "D", condenados a pagar ao IGFSS a quantia de € 9 116,33 e o demandando "A", também solidariamente, a pagar a esta a quantia de € 2 954,15, referente às contribuições retidas nos meses de Junho a Agosto de 2001, quantia essa incluída no montante de € 9 116,33.
Foram ainda condenados os demandados a pagar juros sobre as quantias devidas, à taxa prevista no artº3º nº1do Dec-Lei nº73/99, de 16/03, quanto às vencidas há menos de 5 anos e à taxa estabelecida pelo Cód. Civil e Portarias nº263/99, de 12/04 e nº291/2003, de 08/04 quanto às restantes, a contar da data da notificação do pedido cível e até efectivo pagamento.

Inconformados, recorreram os arguidos "A", "B" e "C".
O primeiro, termina a sua motivação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1. Não se logrou provar a culpa e autoria do crime por que vinha acusado, o recorrente, subsistindo dúvidas no comportamento do recorrente, pelo que, face a essas mesmas dúvidas, deveria ter sido absolvido.
2. Ficou provado em sede de audiência de julgamento que os montantes correspondentes em falta aos serviços da Segurança Social foram utilizados pelos demais gerentes para pagamento dos salários dos trabalhadores e alguns fornecedores.
3. A opção pelo comportamento imediatamente atrás referido é motivado e resulta da procura dos restantes arguidos, em evitar que a empresa deixasse de laborar e entrasse em incumprimento com os trabalhadores e fornecedores, bem como, em última instância, não “atirar” mais trabalhadores para o desemprego.
4. Que ao pagarem os salários aos trabalhadores, bem como o pagamento de alguns fornecedores foi cumprido um dever legal superior ou, pelo menos igual, ao dever sacrificado.
5. Que de acordo com o disposto no artigo 36.º do Código Penal estamos perante uma causa de justificação da ilicitude, pelo que deve o recorrente ser absolvido do crime que lhe é imputado.
6. Que não deverá colocar-se a questão da sensível superioridade dos deveres ou interesses que os deveres se destinam a salvaguardar, pois que bastará a sua igualdade, aplicando-se tal entendimento ao caso em apreço.
7. Que ainda que assim se não entenda, o que apenas se suscita por mera hipótese sem minimamente conceder, deveria o recorrente ser absolvido por não se encontrar preenchido o elemento objectivo do tipo do artigo 27.º-B do R.J.I.F.N.A. pois não se provou a apropriação dos montantes não entregues aos serviços da Segurança Social.
8. Que ao condenar o recorrente o Tribunal fez uma interpretação errada do artigo 27.º-B do R.J.I.F.N.A., pois não se provou a apropriação.
9. Que os demais gerentes apenas utilizaram os montantes retidos para pagamento de salários, não tendo o recorrente incorporado tais valores seu património.

O segundo, termina a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. Procederam os arguido efectivamente à apropriação de quantia proveniente de descontos salariais dos trabalhadores, que deveriam ter sido entregues nos cofres do Estado, e não (como sucedeu) NO PATRIMÓNIO DA SOCIEDADE.
2. Jamais procedendo à retenção arbitrária e oportunista EM PROVEITO PRÓPRIO das referidas cotizações sociais.
3. Com efeito, da factualidade apurada, deflui o impulsionamento da actuação dos arguidos por uma conjuntura económico-financeira societária em total colapso, conexionada com a crucial omissão de cumprimento que envolveu créditos em falta por parte de uma multiplicidade de clientela-
4. Contexto macro-económico, propiciado pelo "flop" total do sector têxtil, mormente no período em apreço.
5. resultante da desestabilização macro-económica ao nível mundial, que atingiu a Europa a partir de 1 de Janeiro de 1999, designadamente constituindo um eco da política monetária única, e da sobreposição da moeda única no mercado interno
(originadora de uma interdependência entre Estados-membros da União Europeia),
6. constituindo ainda sequela do enfraquecimento da taxa de crescimento da produtividade, uma vez que as tentativas de coordenação das politicas monetárias entre os diversos Estados- membros potenciou uma fatal disfunção de determinados sectores económico-empresariais, estimulando o desregulamento (com o advento da mobilidade transeuropeia dos factores de produção, em especial de capitais) da concorrência e irreversíveis distorções da competitividade..
7. Ambiência financeira sustentada em audiência pelos preciosos depoimentos testemunhais, designadamente da testemunha Silvino Granja, contabilista da Sociedade arguida desde 1982, profundo conhecedor da decadência económica de que a empresa foi irremediavelmente objecto, bem como dos fundamentos irradiadores de tal improsperidade,
8. testemunha que, ademais esclareceu o Tribunal do factor desencadeador do incumprimento dos arguidos.
-reconhecimento do premente cumprimento das despesas urgentes e vitais a prossecução da actividade da empresa.
9. Na verdade, o arguido em aprticular e os restantes co-arguidos em geral, num contexto de total impotência face às insustentáveis estruturas sócio- financeiras da empresa, opta (numa tremendamente complexa decisão) pela possibilitação da manutenção do labor societário e de forma suprema e basilar pelo pagamento salarial dos trabalhadores, decisão incessantemente objecto de ponderação e reequacionamento pela pluralidade dos sócios, os quais numa titude de humanismo e altruísmo conferem supremacia aos referidos pagamentos salariais face ao pagamento das cotizações,
10. bem como o propiciamento da rnanutenção do laboris da empresa, igualmente objecto de ponderação, na sequência das expectativas de inversão do rumo deficitário da empresa e cumprimento in totum dos compromissos obrigacionais pendentes.
11. Daí decorrendo que o arguido atribuísse aos interesses que objectivava salvaguardar (manutenção do laboris empresarial e pagamento salarial dos operários) natureza superior ao do pagamento das cotizações, pelo que salvo melhor opinião, ocorre in casu urna causa de exclusão da ilicitude.
12. Uma vez que, em bom rigor, as regras da responsabilidade penal pela prática de facto punível, contrapõe as causas que obstam á punibilidade do agente.
13. O facto típico intergrará a antijuridicidade, salvo se concorre com qualquer causa de exclusão da ilicitude.
14. A Doutrina alemã denomina tais excludentes da ilicitude de "fundamentos de justificação"
15. tais "justificativas" incorporam-se no tipo legal, negando a própria tipificação codificada quando coberta por esta.
16. Assim, na "moldagem" ao caso concreto permanece injusto incumprir o pagamento das cotizações, porém. Sendo tal atitude amparada de forma implícita ou expressa no tipo legal, o injusto "deixa a seara da ilicitude para assumir contornos de acto justificadamente lícito (Marini Celso, in "Teoria dos elementos negativos do tipo", Teresinha, a.4, nº45, set. 2000).
17. Ainda fundamentando o injusto, como acto lícito, quando via de regra é tido como acto ilícito, devemos entender que as causas de exclusão da criminalidade se baseiam na impossibilidade de se exigir do Homem, conduta diversa da adoptada -vige o principio da não exigibilidade de outra conduta face ás circunstancias e fundamentos que a determinaram.
18. A responsabilidade do Homem decorre da exigibilidade de adopção de urna conduta conforme a ordem jurídica. Agirá ele culposamente, com acpacidade de conhecimento e vontade se proceder de maneira conflituante com a norma geral,
19. e, in casu, o arguido supôs presente todos os pressupostos de incidência de uma causa de exclusão da ilicitude, prevista no Direito, por forma a cobrira juridicidade da sua conduta, tanto mais que, na realidade não obteve configuração jurídica pela omissão de um dos elementos necessários á sua incidência.
20. Figueiredo Dias quanto á matéria respeitante aos princípios da prova, considera a plena aplicação do principio "in dubio pro reo" ás causas de exclusão da ilicitude.
21. Isto posto deve o comportamento do arguido ser subsumido no art.31 nº 1,2 do C. Penal, em virtude dos interesses que os arguidos objectivavam proteger (pagamentos salariais dos trabalhadores e prossecução da actividade da empresa) possuírem uma natureza superior ao pagamento dos impostos, consubstanciando a ocorrência de uma causa de exclusão da ilicitude.
22. Porquanto entende o recorrente , salvo o devido respeito e melhor opinião, que a Mmª juiz não apreciou no sentido devido a prova produzida em sede de audiência de julgamento, tendo este recurso fundamento em erro notório na apreciação da prova, violando no mínimo o art.410° nº2 al.c) do C.de Processo Penal.
23. Nestes termos, e nos mais de Direito, deve o aliás douto acórdão proferido pelo Tribunal a quo ser revogado no sentido supra decrito, assim se fazendo justiça.


O terceiro, termina a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. No entendimento do recorrente, a decisão proferida pelo tribunal a quo violou os art.ºs 36º do Código Penal, art.º 27-B do Dec.Lei n.º20-A/90 e artº. 107º do Dec.Lei n.º15/2001.
2. Que dos elementos constantes do processo retira-se, com suficiente clarividência, que deveria ter sido outra a decisão sobre matéria de facto relativa aos acontecimentos em discussão nos autos, que por isso se impugna por meio deste recurso.
3. De facto, pela prova produzida em sede de audiência de julgamento, sempre o recorrente deveria ser absolvido da prática do crime que lhe é imputado.
4. Ficou provado em sede de audiência e julgamento que os montantes em dívida á Segurança Social foram utilizados pelos recorrentes e pelos demais gerentes para pagamento dos salários aos trabalhadores e alguns fornecedores.
5. Que com tal intenção procuraram evitar que a empresa deixasse de laborar e evitando assim o “sacrifício” de postos de trabalho, com todas as consequências que tal decisão acarretaria.
6. Que ao pagarem os salários aos trabalhadores bem como o pagamento de alguns fornecedores foi cumprido um dever legal superior ou, pelo menos igual, ao dever sacrificado.
7. Que o conflito de deveres pode representar uma situação de estado de necessidade em sentido amplo. Uma situação de perigo ameaça pelo menos dois bens jurídicos e o agente, tendo o dever de salvar ambos, só pode, por força das circunstâncias, salvar um deles.
8. A carga dogmática da situação de necessidade própria do conflito do conflito de deveres é maior do que aquele que inere ao direito de necessidade: enquanto neste o agente tem o direito ( e não o dever de intervir), que pode ou não exercer, naquele o agente tem a obrigação de cumprir os dois deveres mas só pode cumprir um à custa do incumprimento do outro.
9. Que de acordo com o art.º36 do CP estamos perante uma causa de justificação da ilicitude, pelo que deve o recorrente ser absolvido do crime que lhe é imputado.
10. Que não se deverá colocar a questão da sensível superioridade dos deveres ou interesses que os deveres se destinam a salvaguardar, pois que bastará a sua igualdade.
11. Que ainda que assim se não entenda, o que se aventa por mera hipótese de raciocínio sem minimamente conceder, deveria o recorrente ser absolvido por não se encontrar preenchido o elementos subjectivo do tipo do art.º105º e 107 do RGIT pois não se provou a apropriação dos montantes não entregues à Segurança Social.
12. Que para que esteja preenchido o tipo de ilícito de confiança fiscal é necessário que haja lugar a apropriação.
13. O recorrente nunca beneficiou de qualquer montante da acusação e muito menos teve a intenção de obter para si qualquer vantagem patrimonial.
14. Que não se provou que o recorrente bem como os demais gerentes não tivessem a intenção de entregar ao Estado tais montantes logo que lhes fosse possível.
15. Que o recorrente bem como os demais gerentes apenas utilizaram os montantes retidos para pagamento de salários, não os tendo incorporado no seu património.
16. Que ao condenar o recorrente o Tribunal fez uma interpretação errada do artigo 107º do RGIT, pois não se provou a apropriação.

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O MºPº contra-alegou, concluindo pela improcedência dos recursos.

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O Ex.mo Procurador Geral Adjunto nesta Relação emitiu parecer de fls. 551 a 555, concluindo pela confirmação da sentença recorrida.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º n.º 2 do C.P.P.

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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para a audiência, na qual foram observados todos os formalismos legais.

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Cumpre decidir:

Matéria de facto provada:
1. A arguida "D" – Nova Comercial ..., Lda” é uma sociedade por quotas com sede na Travessa do ..., concelho de Braga.
2. Os arguidos "B", Alberto M... e "A" eram os gerentes da referida sociedade, cargo a que o arguido "A" renunciou por escritura de 12/09/2001 lavrada no Segundo Cartório Notarial de Barcelos.
3. Nesta qualidade, os arguidos "B", Alberto M... e "A", estavam obrigados a descontar, nas remunerações pagas aos trabalhadores daquela sociedade, a cotização de 11% e a entregar o seu valor nos serviços da Segurança Social, até ao dia 15 do mês seguinte àquela a que as contribuições respeitavam – cf. artº 18º do Dec.-Lei nº 140-D/86, de 14/06.
4. Todavia, nos meses de Junho de 2001 a Março de 2002, inclusive, embora tivessem auto-liquidado a cotização de 11% devida à Segurança Social nas remunerações pagas aos trabalhadores da sociedade arguida, os arguidos "B", Alberto M... e "A" - sendo este último apenas até 12.09.2001 -, não procederam à entrega dos respectivos valores até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam, nem regularizaram a dívida nos 90 dias volvidos aquelas datas.
5. Descriminando, os meses, valores das remunerações pagas aos trabalhadores e das contribuições retidas e não entregues nos serviços da Segurança Social são os seguintes:

Mês Valor das Remunerações Valor das Contribuições
Pagas Retidas
Junho 2001 1.548.000$00 174.240$00
Julho 2001 2.317.109$00 254.882$00
Agosto 2001 1.483.017$00 163.132$00
Setembro 2001 1.493.900$00 164.329$00
Outubro 2001 1.493.900$00 164.329$00
Novembro 2001 1.461.347$00 160.748$00
Dezembro 2001 2.987.807$00 328.659$00
Janeiro 2002 1.343.033$00 147.734$00
Fevereiro 2002 1.259.969$00 138.597$00
Março 2002 1.191.003$00 131.010$00
6. Além de a dívida não ter sido regularizada dentro dos 90 dias contados do termo do prazo de entrega, também não o foi até à presente data, ascendendo a 1.827.660$00 (€ 9.116,33 ), acrescida de juros legais.
7. A entrega das contribuições à Segurança Social configura uma obrigação legal que nasce no acto do pagamento dos salários, sendo pela sua retenção e pagamento responsável a entidade empregadora.
8. Após efectuar a retenção das cotizações acima indicadas, os arguidos "B", Alberto M... e "A" (sendo o último apenas até 12.09.2001), ingressaram os respectivos valores no património da sociedade arguida, bem sabendo que não eram sua pertença mas sim do Estado.
9. O que fizeram devido a graves dificuldades financeiras que a sociedade arguida então estava a atravessar, relacionada com a falta de pagamento de alguns créditos importantes que lhe eram devidos por clientes e pela crise que então havia no sector têxtil.
10. Agiram de modo livre, voluntário, concertado e consciente, no propósito de se apoderarem das quantias acima descriminadas, actuando de forma homogénea e no quadro da mesma solicitação exterior, consubstanciada pela difícil situação económica vivida pela empresa durante todo o período em causa, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.
11. A sociedade arguida encontra-se actualmente inactiva.
12. O arguido "B" é divorciado e encontra-se actualmente desempregado.
13. O arguido Alberto M... também é divorciado, exercendo actualmente a actividade profissional de intermediário-comissionista na colocação de artigos de vestuário.
14. O arguido "A" é casado, exerce a profissão de carpinteiro, por conta própria, não tendo funcionários por sua conta.
15. Os arguidos "B" e "A" são delinquentes primários.
16. O arguido Alberto M... já foi condenado pela prática de crimes de detenção de arma proibida, desobediência, associação criminosa, burla agravada, falsificação de documentos e emigração clandestina, todos praticados antes do ano de 1991.
Tendo-lhe sido já aplicadas penas de prisão efectiva.

Mais se provou que:

17. Enquanto foi sócio e gerente da sociedade arguida, o arguido "A" dedicava-se mais à parte comercial e de markting dessa empresa.
18. Dedicando-se os arguidos "B" e Alberto M... mais à parte contabilística e documentação fiscal da sociedade.
Não obstante, estes arguidos, punham sempre o arguido "A" ao corrente de tudo o que se passava na empresa, designadamente da auto-liquidação das cotizações devidas à Segurança Social nas remunerações pagas aos trabalhadores da sociedade arguida, bem como da falta de entrega dos respectivos valores.


FACTOS NÃO PROVADOS

Não se apuraram os demais factos constantes da acusação do pedido cível e da contestação do arguido "A" que não tenham sido supra referidos ou que com eles estejam em contradição, designadamente:

a) Que os arguidos se tenham apossado em proveito próprios das contribuições retidas, supra descriminadas no ponto 5.
b) Que o arguido "A" tivesse a qualidade de gerente da sociedade arguida a partir de 12.09.2001.
c) Que o arguido "A" não se tenha apropriado, em proveito da arguida sociedade, de qualquer pretasção para Segurança Social, deduzida nos termos da lei.
d) Que tenha sido a crise financeira que a arguida sociedade atravessava, aliada a situações dúbias e estarnhas de funcionamento e património da sociedade arguida, que levaramo arguido "A" a renunciar à gerência e a ceder as suas quotas.
e) Que o arguido "A" só se tenha apercebido da real dimensão dos problemas e dívidas da empresa depois de ter entrado para a sociedade, pois tal facto foi-lhe encoberto pelos anteriores sócios.
f) Que enquanto foi sócio e gerente da sociedade arguida, o arguido "A" se dedicasse exclusivamente à parte comercial e de markting dessa empresa,o que lhe ocupava todo o tempo.
g) Que a seu pedido e por sua insistência, o arguidoAlberto M... e um outro funcionário da sociedade arguida eram quem dominava, geria, decidia e controlava toda a contabilidade e documentação da mesma sociedade, limitando-se o arguido "A", em matéria de processamento de vencimentos e contribuições à Segurança Social, a confiar nos restantes sócios, subscrevendo e assinando toda a documentação que lhe era apresntada.
E, quando começou a recusar a assinar qualquer documento sem que antes tivesse tempo de o consultar e analisar, passando a exigir ao arguido Alberto M... e ao outro funcionário que lhe dessem explicações, estas sempre lhe foram negadas.
Encontrando-se toda a documentação relativa a impostos e contribuições para a Segurança Social na posse do arguido Alberto M... ou do já supra mencionado funcionário, que não permitiam que mais ninguém lhes acedesse.
Não sabendo inclusive o arguido "A" se alguém falsificou a sua assinatura.
Não possuindo também sequer elementos que lhe possibilitem saber, com exactidão, quais as quantias que, na realidade, foram deduzidas do valor das retribuições pagas aos trabalhadores e quais não foram entregues.


FUNDAMENTAÇÃO FACTUAL

Para a prova dos factos supra referidos e tomada de posição quanto à factualidade não purada, a convicção do tribunal formou-se com base no teor dos documentos de fls. 28 a 135, 226 a 230 e 354 a 358 - todos devidamente submetidos a contraditório em audiência -, e na sua conjugação com os depoimentos das testemunhas Manuel L... e Sérgio B..., o primeiro Inspector Adjunto Especialista da Segurança Social e, o segundo, Técnico Superior do quadro da Segurança Social, tendo ambos demonstrado que, através do exercício das suas funções profissionais, tiveram conhecimento directo da situação em causa nos autos, a qual descreveram de forma objectiva, pormenorizada e coincidente.
Foi também importante o depoimento da testemunha Silvino G..., contabilista da sociedade arguida desde 1982 até ao presente que, através do exercício dessas suas funções profissionais, demonstrou também conhecer pormenorizadamente toda a situação contabilística da arguida sociedade, designadamente no que respeita a salários pagos aos trabalhadores e contribuições retidas e não entregues à Segurança Social, o que narrou de forma sincera e coerente, apoindo-se inclusive em documentação junta aos autos.
Tendo também referido ter alertado repetidamente os arguidos para as consequências da não entrega à Segurança Social das contribuições retidas.
Demonstrou também esta testemunha conhecimento da situação económica que a arguida sociedade atravessava à altura dos factos, das razões que a determinaram, bem como da actual inactividade em que a mesma se encontra.
Os arguidos esclareceram todos de forma coincidente as tarefas a que cada um predominantemente se dedicava dentro da arguida sociedade.
Esclarecendo também também todos não terem pago as contribuições retidas e devidas à segurança social, por necessitarem de fazer face a despesas urgentes da sociedade, de que dependiam a continuação da sua actividade, sempre esperançados que a situação viesse a melhorar.
Tendo o próprio arguido "A", apesar de referir dedicar-se mais à parte comercial e de markting da empresa, admitido expressamente em audiência, ter conhecimento de toda essa situação, durante o período em que foi sócio e gerente da sociedade, pois dela era posto ao corrente pelos outros sócios e por ela também se responsabilizava.
Não referindo sequer que assinasse documentos sem conhecer o seu teor, ou que quem quer que fosse lhe recusasse explicações relativamente ao teor de documentos que lhe eram dados para assinar.
Não tendo também este arguido, ou qualquer outra testemunha, explicado em audiência os motivos pelos quais aquele acabou por vir a ceder as suas quotas e renunciar à gerência em 12.09.2001.
As testemunhas Ana P..., Maria B... e Maria I... que, por causa das suas funções profissionais em outras empresas, contactaram por algumas vezes a arguida sociedade, referiram todas que o arguido "A" era quem aparecia ligado à parte comercial e de markting da arguida "D”.
Embora nenhuma delas tivesse conhecimento se o mesmo trabalhava também ou não na parte referente ao processamento de folhas de vencimentos, contribuições retidas e sua entrega à Segurança Social, ou se as pessoas que trabalhavam nesse sector lhe davam ou não conhecimento e explicações de tudo o que aí se pasasva.
A situação familiar, profissional dos arguidos teve por base as declarações dos próprios, que nesses pontos surgiram de forma sincera espontânea e coerente.
Consideraram-se ainda os certificados de registo criminal de fls. 215, 233 a 241 e 291.

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O objecto do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação por eles apresentada, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Assim, são as seguintes as questões a decidir:
I. Arguido "A":
a. Saber se o arguido deveria ter sido absolvido por terem subsistido dúvidas sobre se ele tinha ou não conhecimento do montante das importâncias devidas à Segurança Social e se estas foram entregues;
b. Saber se a conduta do arguido pode ser integrada na previsão do artº36º do C.P. (conflito de deveres) ou configura uma situação de estado de necessidade;
c. Saber se os factos apurados integram todos os elementos do tipo, designadamente, a intenção de se apoderarem e integrarem no seu património as quantias em dívida;
d. Dosimetria da pena: saber se a pena aplicada é excessiva.
II. Arguido "B":
a. Saber se a sentença padece do vício de erro notório na apreciação da prova.
b. Saber se a actuação dos arguidos ao utilizarem as quantias devidas à segurança Social para pagar os ordenados dos seus trabalhadores configura alguma causa de exclusão da ilicitude.
III. Arguido "C":
a. Saber se a conduta do arguido configura uma situação de conflito de deveres, prevista no artº36º do C.P. ou configura uma situação de estado de necessidade;
b. Saber se os factos apurados integram todos os elementos do tipo, designadamente, a intenção de se apoderarem e integrarem no seu património as quantias em dívida.

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Nota:
As questões que são comuns a todos os arguidos serão conhecidas em simultâneo.

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1ª Questão do recurso do arguido "A" e 1ª Questão do arguido "B":
Entende o primeiro arguido que deveria ter sido absolvido por terem subsistido dúvidas sobre se ele tinha ou não conhecimento do montante das importâncias devidas à Segurança Social e se estas foram entregues, o que configura erro de julgamento. Porém, para que se pudesse conhecer do alegado erro era necessário, antes de mais, que as declarações prestadas oralmente, em julgamento, na 1ª instância, tivessem sido documentadas na acta. Ora, conforme desta consta (fls.389), as partes declararam unanimemente prescindir da documentação da audiência, o que “vale como renúncia ao recurso em matéria de facto” (artº428º nº2, parte final, do C.P.P.).

Assim, não pode este Tribunal conhecer da matéria de facto, a não ser no âmbito dos vícios do nº2 do artº410º do C.P.P.. Contudo, nem o arguido imputa qualquer destes vícios à decisão recorrida nem nós os vislumbramos. Apenas o arguido "B", e tão só nas conclusões, considera que a sentença padece do vício do erro notório, sem concretizar, por qualquer forma, a afirmação que faz.
Ora, qualquer dos vícios a que se reportam as três alíneas do nº2 do artº410º - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova – têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Não pode lançar-se mão de elementos que não constem da decisão.
Da leitura desta nenhum daqueles erros se manifesta.
Mesmo o erro notório, vício que se verifica “quando da factualidade provada se extraiu uma conclusão ilógica, irracional e arbitrária ou notoriamente violando as regras da experiência comum BMJ nº476, pág. 253., ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal Ac. da Rel. de Lisboa, in http://www.dgsi.pt. ou ainda quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis, não se descortina.
A prova (documental e testemunhal) que serviu para formar a convicção da julgadora e o exame crítico que dela é feito, demonstram que o tribunal “a quo” seguiu um processo lógico e racional na sua apreciação. A “fundamentação factual” da sentença é suficientemente clara quanto às razões que levaram o Tribunal a dar como provados os factos, designadamente, os impugnados, o que em nada ofende o sentimento do homem médio, as regras da experiência comum ou os juízos de normalidade.
Note-se que para que exista erro notório não basta que a decisão da matéria de facto do tribunal não esteja em conformidade com a que seria a apreciação do recorrente, como parece ser o entendimento do recorrente Francisco. Como se escreve no Ac. do STJ, de 13/02/91 AJ nº15/16, pág.7., “Se o recorrente alega vícios da decisão recorrida a que se refere o nº2 do artº410º do CPP, mas fora das condições previstas nesse normativo, afinal impugna a convicção adquirida pelo tribunal “a quo” sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecido da regra da libré apreciação da prova inserta no artº127”.

Assim, conclui-se pela inexistência de qualquer vício do nº2 do artº410º do C.P.P., mantendo-se, por isso, inalterada a matéria de facto fixada pela 1ª Instância.

2ª Questão do recurso do arguido "A", 2ª Questão do arguido "B" e 1ª Questão do arguido "C":

Saber se a conduta dos arguidos pode ser integrada na previsão do artº36º do C.P. (conflito de deveres):
Sustentam todos os arguidos que o seu comportamento não é punível por terem agido em conflito de deveres, isto é, entre o dever de entregar as quantias descontadas nos salários dos seus trabalhadores à Segurança Social e o dever de pagar os salários a estes e fazer pagamentos a alguns fornecedores para que a empresa não deixasse de laborar, optaram primeiro.
Como é sabido, o crime é a acção típica, ilícita e culposa.
O conflito de deveres surge como uma das causas de justificação regulada expressamente no Código Penal.
Assim, o artº31º n.º 2 estipula que não é ilícito o facto praticado:
c) No cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade.
Por outro lado, o artº36º nº 1 do Código Penal estabelece: Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito, no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer o dever ou ordem de igual valor ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar.
É evidente que os arguidos, enquanto sócios das arguidas, estavam contratualmente obrigados a pagar integralmente os salários dos seus assalariados.
No entanto, ao contrário do que parecem sustentar, não está sequer provado que exista um nexo de causalidade entre a não entrega das contribuições à Segurança Social e o pagamento dos salários.
Mas, como é lógico, apesar de se desconhecer o número de trabalhadores da empresa, a não entrega das contribuições apenas permitiria o pagamento dos salários a uma pequena parte deles.
Por outro lado, a partir do momento em que o Estado, que representa a sociedade, decidiu criminalizar a apropriação por parte das entidades empregadoras das importâncias deduzidas nas retribuições a título de contribuições para o regime de Segurança Social, não há dúvida de que para a ordem jurídica, considerada na sua totalidade, o dever de não se apropriar dessas contribuições prevalece sobre o dever das entidades patronais pagarem os salários.
De resto, não se pode considerar sequer que os arguidos ao utilizarem as contribuições devidas para pagar salários estejam a agir num estrito cumprimento do dever.
Note-se que o comportamento dos arguidos ao manterem ficticiamente postos de trabalho, utilizando dinheiro pertencente à Segurança Social, não só prejudicam o Estado mas também as empresas que cumprem as suas obrigações legais, desvirtuando as regras da livre concorrência.
É, pois, de concluir pela não verificação de conflito de deveres, nada legalmente os impedindo de agir em conformidade com a lei Vejam-se neste sentido os acórdãos citados pelo Exmº Procurador Geral Adjunto, no seu douto Parecer. .

Embora não de forma muito explícita, cremos que os arguidos defendem que a sua conduta não é culposa, por não lhe ser exigível ter outro comportamento.
Ora, a culpa traduz o juízo de reprovação ao agente por ter livre e conscientemente desobedecido ao comando legal. cfr. neste sentido Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, vol. II, pág. 192
As causas de exculpação ou causas de exclusão da culpa vêm expressamente indicadas no artº33º (excesso de legítima defesa), 35º (estado de necessidade desculpante) e 37º (obediência indevida desculpante). Não se trata de uma enumeração taxativa pois, para além destas está também excluída a culpa nas situações de inimputabilidade e nas situações de comportamento ilícito provocado por violência ou coacção física irresistível, coacção moral ou medo insuperável. cfr. Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, vol.I, pág. 326
No caso presente, a hipótese (única) a considerar é o estado de necessidade.
Este, enquanto circunstância de exclusão da culpa, pretende abranger aquelas situações em que se encontra enfraquecido, de forma significativa, o desvalor da acção ilícita através de situações de estados emocionais que colidem com o processo de formação da vontade, de tal forma que não é exigível ao agente outro comportamento.
O Código Penal estipula no citado artº35º n.º1 que Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual e, não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir dele, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
O n.º 2 do citado artigo dispõe que se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes e se se verificarem os pressupostos indicados no n.º1, a pena pode ser especialmente atenuada ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado da pena.
Como atrás se referiu, para o artº 35º n.º1 do C.P., não basta que o facto ilícito perpetrado seja adequado ao afastamento do perigo. É necessário que aquele seja o único facto capaz de remover o perigo.
Assim, havendo outro ou outros meios para afastar o perigo, o agente terá que optar pelo lícito ou menos ilícito.
Ora, no caso em apreço, não há fundamento para considerar o não pagamento de salários como um perigo actual.
Note-se que se o arguido tivesse deixado de pagar os salários os trabalhadores poderiam fazer cessar, por justa causa, os seus contratos de trabalho e intentar contra a sociedade arguida as competentes acções.
Por outro lado, também não há qualquer elemento que aponte no sentido de que o único meio de que o arguido dispunha para efectuar o pagamento dos salários passasse pela assunção de um comportamento delituoso.
Neste sentido, o acórdão da Relação de Coimbra de 17/10/01 CJ, ano 2001, tomo IV, pág. 61, decidiu: “não agiram em estado de necessidade os sócios–gerentes de uma sociedade que não pagaram ao Estado o IVA decorrente de transacções que efectuaram e que haviam recebido de uns clientes tendo utilizado a referida quantia em benefício da sociedade e dos trabalhadores.”
É, pois, de concluir que não se verificam os pressupostos do estado de necessidade desculpante, nem há elementos nos autos que permitam, de forma alguma, sustentar que não era exigível aos arguidos ter um comportamento lícito.
Improcedem, por isso, também nesta parte o recurso.

3ª Questão do recurso do arguido "A" e 2ª Questão do arguido "C":
Saber se os factos apurados integram todos os elementos do tipo, designadamente, a intenção de os arguidos se apoderarem e integrarem no seu património as quantias em dívida:
Defende o arguido que, conforme resulta da sentença, não se provou que ele e os demais arguidos tenham integrado no seu património as importâncias que deveriam ter sido entregues na Segurança Social.
Relativamente a esta questão, resulta provado o seguinte:

8. Após efectuar a retenção das cotizações acima indicadas, os arguidos "B", Alberto M... e "A" (sendo o último apenas até 12.09.2001), ingressaram os respectivos valores no património da sociedade arguida, bem sabendo que não eram sua pertença mas sim do Estado.
9. O que fizeram devido a graves dificuldades financeiras que a sociedade arguida então estava a atravessar, relacionada com a falta de pagamento de alguns créditos importantes que lhe eram devidos por clientes e pela crise que então havia no sector têxtil.
10. Agiram de modo livre, voluntário, concertado e consciente, no propósito de se apoderarem das quantias acima descriminadas, actuando de forma homogénea e no quadro da mesma solicitação exterior, consubstanciada pela difícil situação económica vivida pela empresa durante todo o período em causa, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei. (sublinhado nosso)

O artº27º-B do R.J.I.F.N.A) estipula: As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações pagas aos trabalhadores o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entregarem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, no período de 90 dias, do mesmo se apropriando, serão punidas com as penas previstas no artigo 24º.
Por seu lado, este artigo 24º estipula:
1. Quem se apropriar, total ou parcialmente, de prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar ao credor tributário será punido com pena de prisão até três anos ou multa não inferior ao valor da prestação em falta nem superior ao dobro sem que possa ultrapassar o limite máximo abstractamente estabelecido.
2. Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3. (...)
4. Se no caso previsto nos números anteriores, a entrega não efectuada for inferior a 250 000$00, o agente será punido com multa até 120 dias.
5. Se nos casos previstos nos números anteriores a entrega não efectuada for superior a 5 000 000$00, o crime será punido com prisão de um a cinco anos.


Sobre o tipo de abuso de confiança fiscal, na redacção introduzida pelo DL n.º394/93 de 24/11 ( RJIFNA), escreve Alfredo José de Sousa Infracções Fiscais ( Não Aduaneiras), 3ª edição, pág. 108
, “ torna-se agora claro que a «vantagem patrimonial indevida» é a apropriação de cada uma daquelas quantias, com integração na esfera patrimonial do sujeito passivo ou do substituto tributário.
Esta apropriação pode traduzir-se na simples fruição ou na disposição pelo devedor de cada uma das prestações tributárias deduzidas ou retidas ( IRS e IRC) ou liquidadas com obrigação de entregar ao credor tributário ( IVA)”. Mais adiante acrescenta que “só são puníveis estes factos se praticados, com dolo, já que não está expressamente prevista a negligência”.

Como resulta evidente da comparação entre os artigos 24º e 27º B, os elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social são os mesmos, com a única diferença de que neste o objecto da apropriação são as contribuições devidas a esta entidade.

Após a data da prática de alguns dos factos entrou em vigor o Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001 de 5 de Junho.
O crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social está previsto no artº 107º, que estabelece:
1. As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem total ou parcialmente, às instituições de segurança social, no período de 90 dias, do mesmo se apropriando, serão punidas com as penas previstas nos n.ºs 1 a 5 do artigo 105º.
2. (…).

E o artº105º estipula:
1. Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2. Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3. É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha a natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4. Os factos descritos nos números anteriores só serão puníveis se tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo legal de entrega da prestação.
5. Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a € 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 para as pessoas colectivas”.
6. (…)
7. (…).

A previsão do artº107º do actual RGIT é mais ampla do que a do correspondente artº27º-B do RJIFNA, pois apenas exige, para a sua consumação, “a não entrega total ou parcial”, deixando de exigir a apropriação.
Quanto ao elemento subjectivo, continua a só ser punida a conduta dolosa.

Voltando ao caso em apreço, o arguido sustenta que não presidiu à sua actuação e dos demais qualquer intuito doloso durante o período em que não entregou as contribuições devidas à Segurança Social. Contudo, não é isso que resulta da matéria de facto provada sob os nºs 8 a 10, acima transcritos. O que deles resulta é que os arguidos agiram com dolo e dolo na modalidade de dolo directo, pois agiram com intenção de se apoderar das quantias devidas à segurança social e que sabiam que ao não entregar essas contribuições estavam a ter uma conduta proibida.
Por outro lado, a circunstância de não terem integrado as quantias no seu património mas no património da empresa não tem relevo no que concerne à não integração da conduta no tipo legal, pois não é elemento constitutivo do crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social que apropriação se dê em proveito do agente do crime.
Improcede o recurso também nesta parte.

4ª Questão do arguido "A":
Dosimetria da pena: saber se a pena aplicada é excessiva:
Entende o arguido que a pena que lhe foi aplicada – 5 meses de prisão, substituída por 150 dias de multa, à taxa diária de € 10,00 - é excessiva e injusta, dado não ter antecedentes criminais por crimes do mesmo tipo e o facto de ter renunciado à gerência, que só exerceu por cerca de 3 meses e meio, e dedicar-se á produção e marketing da sociedade arguida.
O artº71º do Cód. Penal indica os critérios para a escolha da medida da pena, estatuindo que esta deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, tendo em vista a protecção dos bens jurídicos e a reintegração daquele (artº40º nº1 do C.P.).
E no seu nº2 manda atender àquelas circunstâncias que não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra o agente, indicando, a título exemplificativo, algumas delas nas várias alíneas.
A medida concreta da pena tem que ser determinada sempre conjugando os factores culpa e prevenção.
Ensina Figueiredo Dias Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, pág.286. que na fixação da pena terá que estar sempre presente a ideia de prevenção, não de “prevenção em sentido amplo, como finalidade global de toda a política criminal, ou seja, como conjunto dos meios e estratégias preventivos da luta contra o crime” mas prevenção significando, “por um lado, prevenção geral, e, por outro lado, prevenção especial, com a conotação específica que estes termos assumem na discussão sobre as finalidades da punição”.
A pena deve ser fixada de forma a que contribua para a reinserção social do agente e não prejudique a sua posição social mais do que o absolutamente inevitável e, por outro lado, neutralize os efeitos do crime como exemplo negativo para a sociedade e simultaneamente contribua para fortalecer a consciência jurídica da comunidade sem deixar de ter em consideração as pessoas afectadas com o delito e suas consequências.
Na fixação da medida concreta da pena o Tribunal a quo teve em consideração:
· a intensidade da culpa – dolo directo;
· ser a ilicitude pouco elevada;
· o curto período de tempo em que os factos ocorreram;
· serem elevadas as necessidades de prevenção geral face ao elevado número de ilícitos desta natureza praticados por todo o país.
· não ter havido ressarcimento;
· ser o arguido primário.

Devidamente demonstradas estão as necessidades de prevenção geral e também de prevenção especial e, face a elas, correctamente se mostra fixada a pena e o montante diário da multa.
Por isso, também nesta parte nenhuma censura nos merece a sentença recorrida.

*****

DECISÃO

Pelo exposto julgam-se todos os recursos improcedentes, confirmando-se a sentença recorrida.
Condena-se cada um dos arguidos em 10 Ucs de taxa de justiça.

*****

Guimarães, 14/03/05