Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
252/04-2
Relator: AMÍLCAR ANDRADE
Descritores: ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
ACORDO
NULIDADES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/19/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- A veracidade das declarações dos outorgantes constantes de escritura pública pode ser contrariada por meio de prova testemunhal.
II- Tendo-se produzido prova testemunhal em audiência, sobre a existência de acordo simulatório comete-se uma nulidade secundária, com influência na decisão da causa, nos termos do disposto no artº 201º do Código de Processo Civil.
III- Tal nulidade terá de ser arguida na audiência, não podendo dela o tribunal conhecer oficiosamente.
IV- Em acção de preferência, devem os autores proceder ao depósito do preço real, para beneficiarem da preferência que reclamam.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

"A" e mulher e outros melhor identificados na petição inicial intentaram contra "B" e Eng.º "C" a presente acção de preferência com processo comum sob forma ordinária, pretendendo a declaração do seu direito de preferência na alienação do direito e acção à meação e à herança ilíquida e indivisa por óbito da falecida esposa do primeiro réu.
Para tanto alegam, em suma, que por escritura de 23/04/1993, o primeiro réu vendeu ao segundo, pelo preço de PTE 43.000$00, o direito e acção à meação do dissolvido casal e o direito e acção à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito da sua mulher Palmira ....
Sucede que, sendo os autores e o primeiro réu os únicos e universais herdeiros da falecida, não foi comunicado àqueles o projecto de venda e as cláusulas do mesmo.
Apenas o segundo réu contestou, alegando, em suma, a caducidade por decurso do prazo para propositura da acção e que o negócio constante da dita escritura foi simulado, porquanto o que as partes pretenderam foi efectuar uma dação em pagamento, por forma a que o primeiro réu liquidasse uma dívida no montante de PTE 5.000.000$00, que tinha para com uma sociedade de que o segundo réu é sócio-gerente.
Na réplica, a autora defendeu a não verificação de qualquer das alegadas excepções peremptórias.
Foi elaborado despacho saneador, no qual se relegou para final o conhecimento das invocadas excepções peremptórias e seleccionada a matéria de facto assente e a controvertida relevante para a decisão da causa, que constitui a base instrutória.
Procedeu-se a julgamento, tendo, a final, sido proferida sentença, que decidiu:
1. Julgar a acção improcedente;
2. Julgar a reconvenção parcialmente procedente e, consequentemente :
a) Declarar nula por simulação a escritura pública referida em 1. da matéria de facto provada;
b) Declarar válido o negócio dissimulado subjacente a tal escritura, mantendo-se os precisos termos da mesma escritura, com excepção do preço, que é de PTE 5.000.000$00 (€24.939,89).

Inconformados apelaram os Autores tendo apresentado súmula conclusiva em ordem à revogação da decisão e sua substituição por outra que julgue a acção procedente e ordenando-se que aos recorrentes seja permitido o depósito da quantia constante da escritura de compra e venda.

O Réu José António Campos de Sousa contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
Os Factos
Na 1ª instância foram julgados provados os seguintes factos:
1. Por escritura outorgada no Estabelecimento Prisional de Braga a 23 de Abril de 1993, e lavrada a fls. 68 a 68-v. do livro de notas nº 370-G do 1º Cartório Notarial de Braga, o réu "B" declarou que foi casado com Palmira ..., sob o regime de comunhão geral de bens, tendo esta falecido a 1 de Setembro de 1987, encontrando-se o seu casal ainda indiviso e declarou ceder ao réu "C", o qual declarou aceitar, “todo o direito e acção que tem à meação do referido casal indiviso e ainda o direito e acção que tem à herança ilíquida e indivisa da sua indicada mulher”, pelo preço de quarenta e três mil escudos.
2. Por escritura pública outorgada a 17 de Março de 1997 no 2º Cartório Notarial de Braga, o réu "B" declarou ser o cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de sua mulher Palmira Gonçalves e que esta faleceu no dia 1 de Setembro de 1987, no estado de casada com ele em primeiras núpcias de ambos e sob o regime da comunhão geral, que a falecida não fez qualquer disposição de última vontade, tendo deixado por seus herdeiros o outorgante "B". viúvo, e os filhos havidos do seu matrimónio, todos solteiro à data da abertura da herança : Maria ..., José ..., ... António ... e Brigita ....
3. A herança referida em 2. mantém-se ilíquida e indivisa e reduz-se ao seguinte imóvel : prédio misto, sito no lugar do ..., freguesia de ..., inscrito na matriz sob o artigo ... rústico e ... urbano e descrito na Conservatória do registo Predial de Fafe sob o nº ....
4. O projecto da cessão referida em 1. e as respectivas cláusulas não foram comunicados aos autores.
5. Os autores tomaram conhecimento da cessão referida em 1. em dia não apurado do final do ano de 1996.
6. A Motorave ... teve relações comerciais com o réu "B".
7. Na sequência do referido em 6., o réu "B" devia, em 1993, à Motorave ..., a quantia de cinco milhões de escudos.
8. A cessão foi realizada para pagamento da dívida referida em 7.
9. Pelo preço de cinco milhões de escudos.
10. Na escritura referida em 1., os réus declararam o preço de quarenta e três mil escudos para facilitar o negócio.
11. Para evitar a sobrecarga da Sisa.
12. Para evitar a sobrecarga dos custos da escritura e dos registos.
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Analisemos a censura feita à sentença, explanada nas conclusões do recurso, considerando que é por elas que se afere da delimitação objectiva deste (artºs 684º,3 e 690º,1, do CPC).
As questões essenciais a dirimir no presente recurso são substancialmente as seguintes:
1. Admissibilidade da prova testemunhal aos quesitos versando o acto simulado.
2. Depósito do preço.

1ª questão
Sustentam os recorrentes que o tribunal recorrido julgou procedente a simulação valendo-se apenas de prova testemunhal para responder aos quesitos sobre tal matéria, violando claramente o disposto no artº 394º do Código Civil.
Vejamos se assim é.
Os documentos autênticos só fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora – artº 371º, nº 1 do Cód. Civil.
Quando o facto estiver provado por documento ou por outro meio com força probatória plena não é admissível prova por testemunhas – artº 393º, nº 2 do Cód. Civil.
Provou-se que por escritura outorgada no Estabelecimento Prisional de Braga a 23 de Abril de 1993, e lavrada a fls. 68 a 68-v. do livro de notas nº 370-G do 1º Cartório Notarial de Braga, o réu "B" declarou que foi casado com Palmira ..., sob o regime de comunhão geral de bens, tendo esta falecido a 1 de Setembro de 1987, encontrando-se o seu casal ainda indiviso e declarou ceder ao réu "C", o qual declarou aceitar, “todo o direito e acção que tem à meação do referido casal indiviso e ainda o direito e acção que tem à herança ilíquida e indivisa da sua indicada mulher”, pelo preço de quarenta e três mil escudos.
Assim, está provado que os outorgantes disseram o que consta da escritura de 23 de Abril de 1993.
Nada impede que se recorra à prova testemunhal para demonstrar a falta ou vícios da vontade, com base nos quais se impugna a declaração documentada (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, anotação ao artº 393º).
«É atendível a prova testemunhal que contrarie ou possa contrariar as declarações das partes exaradas em documento autêntico» (RP, 6.2.1979, CJ, 1979, 1º-285).
«Nos documentos autênticos, de modo algum, a autoridade ou oficial público respectivo garante que sejam verdadeiras, sinceras ou eficazes as afirmações que lhes foram feitas, pelo que, quanto a elas, é admissível a prova testemunhal» (RP, 18.10.1983, CJ, 1983, 4º-256).
Daí que as declarações dos outorgantes constantes da escritura em análise podiam ver a sua veracidade contrariada por meio da prova testemunhal.
No caso em apreço, tendo sido invocada a existência de um negócio simulado, sustentam os apelantes que é inadmissível a prova da simulação por testemunhas.
Mas, a ser assim, quais as consequências de se ter produzido prova testemunhal em audiência, sobre a existência do acordo simulatório?
Ter-se-ia cometido uma nulidade secundária, com influência na decisão da causa, nos termos do disposto no artº 201º do CPC.
As nulidades processuais secundárias devem ser arguidas dentro do prazo prescrito no artº 205º nº 1 do CPC, não podendo delas o tribunal conhecer oficiosamente.
O artº 205º do CPC prevê duas situações: uma, estando presente a parte ou o seu representante, em que a irregularidade terá que ser reclamada até findar o acto judicial complexo no decurso do qual ela existiu; a outra, não estando presente a parte ou o seu representante, em que a arguição terá que ser produzida no prazo de cinco dias (cfr. STJ, 18.2.1992, BMJ,414º-418).
Como flui da análise da acta de audiência de discussão e julgamento, em que os recorrentes estiveram representados pelo seu Exmo. Advogado, contra essa nulidade não foi deduzida a pertinente arguição ou reclamação, o meio correcto para reagir contra a ilegalidade cometida.
Não tendo a nulidade sido arguida no tribunal recorrido, terá de considerar-se sanada.
Não podem agora, por via de interposição de recurso, os apelantes reagir contra aquela nulidade, pois, como escreveu Alberto dos Reis, «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se» (Com., 2º-507).
Daí resulta que, não tendo os recorrentes suscitado a questão da inadmissibilidade da prova testemunhal à matéria dos indicados quesitos, até ao encerramento da audiência, está-lhes vedado suscitar agora tal questão em sede de recurso, por se tratar claramente de questão nova.
Nesta parte, o recurso improcede.

2ª questão
Argumentam os recorrentes que os Autores apenas pretendiam preferir pelo preço declarado na escritura e que não estavam, por isso, obrigados, nem interessados em fazer o depósito de 5.000.000$00.
Também aqui se nega razão à crítica.
Como resulta do nº 1 do artigo 1410º do Código Civil, o titular do direito de preferência deve proceder ao depósito do preço devido nos quinze dias seguintes à propositura da acção.
O preço por que o preferente há-de haver a coisa é o realmente pago ainda que outro conste da escritura de venda.
A preferência tem que operar sempre pelo preço real.
O depósito do preço no prazo legal é condição do exercício do direito de preferência (RC, 23.11.1977, CJ, 1977,5º-1132).
No caso vertente, não se mostra realizado qualquer depósito.
E, como mostram os autos, verificada a falta de depósito do preço, foi proferido, a 11/11/2002, despacho com o seguinte teor :
“Ao pretender elaborar sentença nos presentes autos, verifico que os autores não procederam ao depósito do preço, a que alude o artigo 1410º, nº 1 do Código Civil.
A acção foi proposta em 03/04/1997.
A actual redacção deste artigo foi introduzida pelo artigo 1º, do Dec.-Lei nº 68/96, de 31/5, o qual entrou em vigor simultaneamente com o Dec.-Lei nº 329-A/95, de 12/12, ou seja, em 1 de Janeiro de 1997.
Nos termos desse artigo, o depósito do preço devido é feito nos quinze dias seguintes à propositura da acção.
Tal depósito é feito por meio de documento avulso dirigido ao gerente da agência respectiva da Caixa Geral de Depósitos, a favor do Juiz do processo, desde que foi alterada a redacção do artigo 1410º, nº 1, tudo conforme dispõe o artigo 124º, nº 4, do Código das Custas Judiciais, que entrou em vigor, também ele, em 1/1/97vide Costa, Salvador da, Código das Custas Judiciais Anotado, 2ª ed, Livraria Almedina, Coimbra, 1997, p. 384-385, n. 5. .
No entanto, ainda que tal depósito tivesse sido feito pelos autores, sempre os mesmos agora seria convidados a fazer o seu reforço.
É que, não obstante constar da escritura de cessão de meação e de herança que o respectivo preço foi de PTE 43.000$00, o certo é que se apurou que tal preço foi simulado.
Na verdade, apurou-se em julgamento que a Motorave teve relações comerciais com o réu "B". Na sequência dessas relações o réu "B" devia, em 1993, à Motorave, a quantia de PTE 5.000.000$00. A cessão em apreço foi realizada para pagamento de tal dívida, pelo preço de PTE 5.000.000$00. Na escritura, os réus declararam o preço de 43.000$00 para facilitar o negócio, para evitar a sobrecarga da Sisa e para evitar a sobrecarga dos custos da escritura e dos registos.
Nesta conformidade, para beneficiarem da preferência que reclamam, devem os autores proceder ao depósito do preço real.
Pelo exposto, decide-se, notificar os autores para, em quinze dias, procederem ao depósito, à ordem do processo :
- da quantia de € 24.939,89 (vinte e quatro mil novecentos e trinta e nove euros e oitenta e nove cêntimos), correspondente ao preço da cessão;
- das quantias pagas pelo réu "C" a título de Sisa e pelo custo da escritura.”
Porém, até agora, os autores não só nada depositaram à ordem do processo, como ainda asseveram que não estão interessados em fazer depósito de 5.000.000$00.
Soçobram, assim, na totalidade, as conclusões da douta alegação dos apelantes.
Decisão
Pelo exposto, julgando-se improcedente o recurso, confirma-se a douta sentença recorrida.
Custas pelos apelantes.
Guimarães, 19 de Maio de 2004