Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
174/08-2
Relator: GOUVEIA BARROS
Descritores: TESTAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/25/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA PROCEDENTE
Sumário: I) Falecido em 1994 testador que em 1971, sem descendentes ou ascendentes, dispusera da totalidade dos seus bens, cumpre reduzir a deixa testamentária em ordem a respeitar a legítima do cônjuge sobrevivo, instituída pelo Decreto-Lei nº496/77, de 25 de Novembro.
II) Constando do testamento diversas expressões colocadas entre parêntesis, sem que estes tenham qualquer função gramatical ou utilidade para a compreensão da declaração, deve entender-se que com eles se visou a supressão dos segmentos intercalados se a parte subsistente se apresentar coerente e lógica, não obstante tal eliminação não ter sido objecto de ressalva pelo oficial público.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:


JOAQUIM F., residente no lugar do Monte, Valença, MANUEL F., residente m Rua Arthur Chelles, , Rio de Janeiro, Brasil, MARIA ADELINA C. e DOMINGOS C., ambos residentes na Rua da Bouça Longa, Meadela, Viana do Castelo, MARIA ROSA C., residente na Rua Serpa Pinto, Porto e ROSA C., residente na Rua da Travessa, Nelas, Viana do Castelo, propuseram a presente acção declarativa em processo comum sob a forma ordinária contra BENVINDA G., viúva, com domicílio profissional em Arcos de Valdevez, ANÍBAL DE M. e esposa CARMELINDA L. residentes no lugar de Borgonha, concelho de Ponte de Lima, MANUEL RODRIGUES e esposa ADÉLIA e AGOSTINHO P. P. e esposa ROSA F. DE A. C., todos residentes no concelho de Ponte de Lima, pedindo que, com a procedência, se declare que, por força do testamento que constitui fls 16 e 17 dos presentes autos a primeira ré foi instituída fiduciária e, por isso, com o encargo de conservar os bens deixados por morte de José B... a fim de, por morte dela, reverterem a favor dos autores, sobrinhos do testador e beneficiários da substituição fideicomissária.
Alegam ainda ter a primeira ré, viúva do autor da herança, vendido por preço manifestamente inferior ao valor de mercado diversos prédios da herança aos restantes co-réus, em violação do encargo estabelecido pelo testador e com pleno conhecimento de tal circunstância por parte dos adquirentes, pedindo por isso a declaração de nulidade de tais vendas e o cancelamento do registo de tais actos.
Subsidiariamente, pedem a condenação da primeira ré a restituir à herança a quantia de €32.421,86, correspondente à soma do preço das vendas realizadas, acrescida de juros desde a citação e a condenação solidária da viúva do testador e dos adquirentes pela diferença entre o preço declarado nas respectivas escrituras e o valor de mercado dos prédios em questão.
Contestaram os réus para dizer que não foram os autores mas antes seu pai, irmão do autor do testamento, quem foi instituído fideicomissário, dado que o testador gostava muito dele e queria ajudá-lo, pois que nem sequer conhecia os filhos e ora autores, por quem não nutria qualquer afectividade especial.
Concluem assim pedindo a improcedência da acção com as legais consequências (na contestação de fls 76 e segs. pede-se a absolvição da instância sem que se vislumbre na referida peça o fundamento de tal pedido).
Pretextando inexistentes excepções, apresentaram ainda os autores a peça que constitui fls 94 e segs que designaram de réplica e em que reiteram o pedido antes formulado.
Saneado o processo e seleccionada a matéria de facto com interesse para a decisão da causa, procedeu-se a julgamento após a necessária instrução, vindo a ser proferida sentença a julgar a acção procedente e, consequentemente, a deferir na íntegra o pedido principal deduzido na petição e já atrás enunciado.
Inconformados recorreram os réus (o recurso da 1ª ré viria contudo a ser julgado deserto), pugnando pela revogação da sentença e pela absolvição do pedido, alinhando para tal as seguintes razões com que encerram a alegação oferecida:
Quanto à matéria de direito (art. 690º, nº 2 do CPC):
a) Ao ignorar os colchetes rectos que constam do testamento manuscrito a Meritíssima Juiz fez uma interpretação em violação do disposto no artigo 2187°, n°1 do Código Civil.
b)Também ignorou uma prática notarial habitual em Portugal e no Brasil, nos anos setenta, que consistia em colocar entre parêntesis as palavras cujo efeito se pretendia anular, sem qualquer tipo de ressalva no final da escritura.
c) Pois, deveria ter interpretado a colocação dos referidos colchetes no sentido de uma mudança de vontade expressa e contemporânea do testador.
Quanto à matéria de facto (art. 690°-A):
d) Os depoimentos de Manuel M..., José M... e Maria T... nunca poderiam ser considerados isentos na medida em que os primeiros tinham interesse na compra dos prédios em causa e a última é esposa do Autor Joaquim;
e) Em lado algum foi referido um anúncio, nem a sua forma, nem o seu autor, nem a sua data, pelo que nunca se poderá concluir pela sua existência. Referir apenas que “os Autores deram a conhecer na freguesia” sem nada mais, fazendo apenas fé na palavra dos mesmos e das testemunhas cuja isenção já anteriormente foi posta em causa, consubstancia uma insuficiência da matéria de facto para a decisão.
f) Os valores constantes do relatório pericial impunham uma decisão diversa da recorrida na medida em que não se verificam as diferenças dadas como provadas em 21°, bem pelo contrário.
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Em resposta os recorridos defendem a confirmação da sentença.
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Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir.
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Factos provados:
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
A) No dia 21 de Junho de 1994, faleceu, no Rio de Janeiro — Brasil, para onde emigrara, José B..., natural de Portugal, filho de António de B. e de Luísa da C. S.
B) O José B... faleceu no estado de casado com Benvinda G., em primeiras e únicas núpcias de ambos.
C) O José B... e Benvinda, natural de Portugal, contraíram casamento, no dia 23 de Maio de 1970, no Rio de Janeiro, Brasil, sob o regime de comunhão de bens.
D) O José B... não deixou ascendentes nem descendentes.
E) Por escritura pública de testamento, lavrada no dia 26 de Julho de 1971, em Cartório Notarial, perante Luís R..., tabelião em exercício de cargo do 140 Ofício de Notas da cidade do Rio de Janeiro, Brasil, José B... declarou que “…dispondo dos bens da sua meação para depois da sua morte e tendo livre disposição da sua totalidade inclusive os existentes em Portugal, institui sua herdeira, por meio de fideicomisso, a sua esposa Benvinda G., determinando que, por morte desta, transmitam-se os bens a seus sobrinhos, em partes iguais, filhos de seu irmão Manuel B...…”
F) No instrumento púbIico notarial referido em E, o José B... nomeou testamenteira e inventariante a 1ª Ré, investindo-a “na posse e administração da herança, para o efeito de exercício do cargo de inventariante, assinando-lhe o prazo de 12 meses para a conclusão deste seu testamento”.
G) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima, sob o número 01577/20010525, o prédio urbano, sito em Arribão, freguesia da Facha, composto de casa de rés-do-chão e 1º andar, a confrontar do Norte com Caminho e do Sul, Nascente e Poente com Benvinda G., inscrito na matriz predial respectiva sob o art. 69°.
H) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Ponte de Lima, sob o número 01578/20010525, o prédio rústico, sito em Jorge, freguesia da Facha, composto de leira de cultivo, com 210 m2, a confrontar do Norte com Caminho, do Sul com Maria G..., do Nascente com Manuel P... e do Poente com Manuel L..., inscrito na matriz predial respectiva sob o art. 136º.
I) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte Lima, sob o número 01579/20010525, o prédio rústico, sito em Chouso, freguesia da Facha, composto de leira de cultivo, com ramada s oliveiras, com 1100 m2, a confrontar do Norte e Nascente com Condessa da Carreira, do Sul com José de Abreu Coutinho e do Poente com estrada velha, inscrito na matriz predial respectiva sob o artº 339º.
J) Mostra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima, sob o número 01580/20010525, o prédio rústico, sito em Arribão, Freguesia da Facha,, inscrito na matriz predial respectiva sob o artº 977º.
L) Mostra-se descrito na C.R.P. de Ponte de Lima, sob o número 01581/20010525, o prédio rústico, sito em Arribão, freguesia da Facha, denominado “Leira de Andorinheira”, composto de mato, com 3.050 m2, inscrito na matriz respectiva sob o art. 1114°.
M) Na mesma Conservatória, mostram-se inscritas – inscrições G 1-,desde 25.05.2001 até 22.06.2001, a aquisição dos prédios identificados em G, H e J, a favor de Benvinda B..., por sucessão hereditária de José B....
N) Na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima, mostram-se inscritas – inscrições G 1-, desde 25.05.2001 até 15.06.2001, a aquisição dos prédios identificados em I e L, a favor da mesma ré, por sucessão hereditária de José B....
O) No 2° juízo do Tribunal Judicial de Ponte de Lima, corre termos o processo especial de inventário nº 624/2001, para partilha dos bens deixados por morte de José B....
P) Por escritura pública datada de 12 de Junho de 2001, outorgada no Cartório Notarial de Arcos de Valdevez, a primeira ré declarou vender ao co-réu Aníbal, pelo preço global de dois milhões de escudos, os prédios identificados em G, H e J., tendo este declarado aceitar a referida venda.
Q) Por escritura pública datada de 12 de Junho de 2001, outorgada no mesmo cartório a ré Benvinda declarou vender ao co-réu Manuel, pelo preço de um milhão e quinhentos mil escudos, o prédio descrito em I, tendo este declarado aceitar a referida venda.
R) Por escritura pública datada de 07 de Junho de 2001, outorgada também naquele cartório a Ré declarou vender ao co-réu Agostinho, pelo preço de três milhões de escudos, o prédio identificado em L, tendo este declarado que aceitava a referida venda.
S) Na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima, mostram-se inscritas — inscrições G2-, desde 22.06.2001, as aquisições dos prédios referidos em G, H e J.
T) E mostra-se também inscrita — inscrição G2- a aquisição referida em Q;
U) Na Conservatória do Registo Predial de Ponte de Lima, mostra-se inscrita - inscrição G2-, desde 15.06.2001, a aquisição do prédio identificado em L, por compra, a favor de Agostinho
V) Por escritura pública datada de 19 de Outubro de 1999, outorgada no Cartório Notarial de Arcos de Valdevez, Rosa G..., Severa F... e Américo S... declararam que no dia vinte e um de Junho de mil novecentos e noventa e quatro, na cidade do Rio de Janeiro, Brasil (…), faleceu José B..., (…), no estado de casado (…). Que o falecido não havia feito testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, não deixou descendentes nem ascendentes vivos, deixando por herdeira como única sucessora legítima, seu cônjuge, referida Benvinda G..., que dele se mantém no estado de viúva (…) e declaram que o mencionado cônjuge é o único herdeiro do falecido, não havendo quem lhe prefira ou com ele concorra na sucessão à herança”.
X) Numa cópia certificada, em 06 de Agosto de 1986, no 110 Ofício de Notas — tabelião Salvio Arcoverde, sito no Rio de Janeiro, de um traslado da Escritura Pública de testamento aludido em E consta o seguinte: “…Terceira — que, dispondo dos bens de sua meação para depois de sua morte e tendo livre disposição de sua totalidade, inclusive os existentes em Portugal, institui sua herdeira, por meio de fideicomisso, a sua esposa Benvinda G..., determinando que, por morte desta transmitam-se os bens a seu irmão Manuel B....”
Y) Os prédios identificados no artigo 16º da petição inicial pertenciam, à data do seu óbito, à herança ilíquida e indivisa aberta por José B....
Z) Os autores deram a conhecer na freguesia, que a ré Benvinda não podia vender os prédios identificados em G, H, I, J, e L porque tinha a obrigação de os conservar para, à sua morte, reverterem para os aqui autores.
AA) Os réus tomaram conhecimento do anúncio referido na anterior alínea, quer durante a fase de negociações preliminares que mantiveram com a primeira ré, quer no momento em que formalizaram os contratos de compra e venda titulados pelas escrituras referidas em P, Q, e R.
AB) Os prédios identificados em G), H), J) e L) tinham, à data das escrituras referidas em P, Q e R, um valor superior e nalguns casos pelo menos equivalente ao dobro do preço declarado naquelas escrituras.
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Fundamentação:
Encontra-se delimitado pelas conclusões da alegação o âmbito objectivo do presente recurso, que se desdobra em duas sub-questões: por um lado, vem questionada a decisão da matéria de facto no que tange ao valor dos prédios vendidos pela primeira ré e, por outro, vem posta em causa a interpretação e valoração do teor do testamento de fls 5 e 6 do falecido José B....
Sobre a primeira questão, importa ter presente que as situações em que o tribunal de recurso pode modificar a decisão da matéria de facto são apenas as elencadas nas três alíneas do nº1 do artigo 712º do CPC.
Não estando configurada nenhuma das situações previstas nas alíneas b) e c) teria a modificação pretendida de assentar na aplicação da alínea a), ou seja, numa diversa valoração dos elementos de prova constantes do processo e, especificamente, do laudo pericial de fls 242 a 248.
Com efeito, foi quesitado sob o artigo 21 da B.I. se os cinco prédios vendidos pela primeira ré tinham um valor superior e, nalguns casos pelo menos, equivalente ao dobro do preço declarado nas escrituras.
A Srª juíza respondeu afirmativamente a tal questão relativamente a quatro dos prédios vendidos, louvando-se exclusivamente no referido laudo (fls 446).
Tem efectivamente razão a recorrente quando assinala que o prédio referido na alínea I da Especificação foi vendido por valor superior ao da avaliação (1.500 contos e €6.203, respectivamente) mas precisamente por isso é que a resposta exclui tal prédio.
Quanto aos restantes, verifica-se que a ré vendeu pela quantia global de 2.000 contos três prédios que foram avaliados em €23.573 (€13.450+€420+€6.873) e vendeu por 3.000 contos o prédio que foi avaliado em €19.460.
Sem embargo de entre a venda e a avaliação terem decorrido quatro anos, é manifesto que o preço das vendas foi inferior ao valor estimado pelos peritos e, no que tange à venda feita a Aníbal de M., foi mesmo inferior a metade.
Ou seja, nenhuma censura merece a resposta dada à questão vertida no artigo 21º da base instrutória, pois está em harmonia com a avaliação em que se sustentou.
Sobre as conclusões constantes das alíneas d) e e) nada há a dizer, pois os recorrentes pretendem pôr em crise a isenção dos depoimentos prestados pelas testemunhas, sem levar em conta que a modificabilidade da decisão de facto em sede de recurso, está confinada às situações previstas no nº 1 do artigo 712º do CPC, onde não cabe a avaliação intencionada pelos recorrentes.
Por conseguinte, improcedem as conclusões elencadas sob as alíneas referidas (d, e e f).
Resta então conferir o teor do testamento em ordem a tentar surpreender a vontade do testador e assim determinar se foram os autores, como alegam, quem foi instituído fideicomissário ou, como defendem os réus, foi seu pai o beneficiário do encargo.
Preliminarmente, diremos que existe alguma imprecisão na afirmação exarada no artigo 5º da petição inicial de que o testador instituiu a sua esposa herdeira dos seus bens, “determinando que, por morte desta, os seus bens se transmitam a seus sobrinhos”.
Compulsado o testamento verifica-se que a disposição se reporta “à meação da totalidade dos bens, direitos e haveres na data da sua sucessão”, o que naturalmente leva a supor que o regime de bens do casamento não fosse o de separação alegado no artigo 2º da mesma peça processual.
O testador refere ser casado em comunhão geral e isso mesmo foi consignado na certidão de fls 67, não sendo evidente a razão por que a Srª Conservadora do Registo Civil de Ponte de Lima, com base em certidão da 7ª Circunscrição do Registo Civil do Rio de Janeiro, fez consignar que o casamento foi celebrado segundo o regime imperativo de separação de bens.
Ora, como refere a ré a fls 425, tendo o casal contraído casamento católico no Brasil em 23 de Maio de 1970 e devendo o regime de bens ser regulado pela Código Civil à data vigente em Portugal (lei pessoal de ambos os cônjuges), se nada tiverem convencionado, ser-lhes-á aplicável o regime supletivo de comunhão de adquiridos (artigo 1717º do CC).
Ressalva-se, naturalmente, a existência de qualquer circunstância (por ex. a falta de processo de publicações) que implique a sua subsunção ao regime imperativo previsto no artigo 1720º do CC.
Em qualquer caso e como se salientou, o testador não dispôs dos seus bens, mas antes da sua meação o que naturalmente inculca a ideia de que o regime de bens seria o da comunhão geral, por assim o terem convencionado ou da comunhão de adquiridos, na ausência de tal estipulação.
A dilucidação do regime não é todavia essencial neste processo, pois apenas releva para o cálculo do património do testador e não para a apreciação da eficácia das vendas efectuadas pela fiduciária: quer a deixa testamentária seja da totalidade dos bens do testador quer seja de apenas metade, a questão da validade (lato sensu) da venda dos bens gravados pelo encargo colocar-se-á nos mesmos termos.
Importa por outro lado assinalar que o testamento foi lavrado em 26/7/71, mas o testador só faleceu em 21 de Junho de 1994, o que implica que deva ser in casu aplicado o direito sucessório vigente nesta última data (data da abertura da sucessão).
Neste contexto, se era exacto que à data do testamento o testador podia proclamar poder dispor da totalidade dos seus bens, tal deixara de ser exacto com a entrada em vigor do Decreto-Lei nº 496/77, de 25 de Novembro, que veio conferir protecção ao cônjuge sobrevivo, incluindo-o no elenco dos herdeiros legítimos (artº 2132º CC) e fixando a sua legítima em metade da herança, quando não concorra com descendentes nem ascendentes (artº2158º do CC).
Neste contexto, a quota disponível do testador ficou limitada a metade da meação e, por isso mesmo, pertence à viúva, por direito próprio, metade do quinhão de que o testador pretendeu dispor.
Ou seja, a superveniência de um sucessível legitimário determina a necessidade de comprimir a designação testamentária colidente, o que vale por dizer que a expectativa dos autores sempre teria de estar confinada a metade da herança propriamente dita de seu falecido tio, pois a outra metade pertence por direito próprio à viúva.
Chegamos assim à questão nuclear deste processo, qual seja o de interpretar e valorar o conteúdo do testamento de José B... na parte em que se escreveu:
“Terceira: que, dispondo dos bens de sua meação para depois da sua morte e tendo livre disposição de sua totalidade, incluindo os existentes em Portugal, institui sua herdeira, por meio de fideicomisso, a sua esposa Benvinda G... determinando que, por morte desta, transmitam-se os bens a [seus sobrinhos, em partes iguais, filhos de] seu irmão Manoel João de Barros, digo Barros [que existirem à data de sua sucessão]”.
Na tese dos autores seriam eles, enquanto filhos de Manuel B..., os fideicomissários instituídos pelo testador, ao passo que os réus defendem que foi o pai dos autores que foi beneficiado com tal disposição testamentária, tornada ineficaz pela sua morte, entretanto ocorrida.
Como se sabe e, em harmonia com o disposto no artigo 2187º do CC, a fixação do sentido e alcance das disposições testamentárias deve fazer-se de acordo com a vontade real ou psicológica do testador, tendo-se em conta não apenas o texto da disposição testamentária mas todo o contexto em que foi produzida e as circunstâncias de facto susceptíveis de reconstituir o sentido da vontade real do declarante.
Nada alegam os autores que ajude a compreender por que seu tio os instituiu beneficiários da disposição testamentária em que fundam o seu direito.
Na contestação a ré Benvinda explica a leitura que faz do testamento, dizendo que seu marido nem sequer conhecia os sobrinhos, ora autores, pois emigrara para o Brasil com 20 anos e nunca mais regressara a Portugal, mas nutria grande afecto por seu irmão e foi este que quis contemplar com o fideicomisso, na eventualidade de ele sobreviver a sua esposa (fiduciária).
Tais factos não sofreram qualquer reparo aos autores, os quais na réplica (artº10º) se limitaram a impugnar “tudo quanto consta dos artigos 1ºa 34º da contestação e que esteja em contradição com o alegado na petição inicial” (reserva que manifestamente não abrange as circunstâncias invocadas pela ré contestante para complementar a interpretação da disposição testamentária em análise).
Mas a divergência entre as partes nem sequer se prende com o contexto do testamento mas antes com o seu próprio texto, uma vez que se trata de saber se os parêntesis colocados têm ou não a virtualidade de inutilizar as expressões intercaladas, dado que não se mostram ressalvadas a final.
Compulsada a sentença verifica-se que a opção que a norteou se funda nesta expedita fundamentação:
Da factualidade apurada em julgamento veio a ser dada resposta negativa ao teor do quesito 22º e, resulta ainda em evidência que, o testador não pretendeu eliminar ou afastar, como se chegou a pretender realçar, os aqui autores.”
Ora em tal quesito indagava-se se “o tabelião colocou entre parêntesis rectos as partes do testamento referido em E onde consta seus sobrinhos, em partes iguais, filhos de e que existirem à data da sua sucessão” questão que obteria resposta negativa, sem que se explicite a razão do assim decidido.
Assim, sem que nenhuma das partes a tivesse invocado, a Srª juíza concluiu pela falsidade da escritura de fls 6 e 7 onde teriam sido apostos parêntesis a intercalar expressões, mas não pelo oficial público que a elaborou.
É evidente que tal resposta não pode ser mantida por conflituar com o conteúdo de documento autêntico que, por não ter sido impugnado, não pode - nem deve - ser submetido a demonstração, devendo por isso ter-se por não escrita.
Aliás, os próprios autores fizeram juntar ao processo dois pareceres de peritos (fls 365 a 375) que assentam precisamente na avaliação do texto manuscrito que relevam naturalmente a presença dos parêntesis e concluem que a intenção do testador seria de que, por morte da esposa (fiduciária) os bens se transmitam a seu irmão Manuel B... ou, no caso de este não lhe sobreviver, em partes iguais, a seus sobrinhos, filhos desse mesmo Manuel, que existirem à data da sucessão.
Não sufragamos de modo algum a imaginativa conclusão de tais pareceres que, com o devido respeito, não tiveram em devida conta o texto da declaração e que não comporta entendimento tão arrevesado.
Tal como assinalam os insignes linguistas invocados no parecer de fls 365 os parêntesis empregam-se para intercalar num texto qualquer indicação acessória, como seja uma explicação dada ou uma circunstância mencionada incidentalmente, uma reflexão, um comentário à margem do que se afirma ou uma nota emocional.
E os colchetes são uma variedade de parêntesis, de uso restrito, que se empregam quando numa transcrição de texto alheio, se intercalam observações próprias, ou quando se quer isolar uma construção já isolada por parêntesis (autores e obra citada, fls 660 e 662).
É inquestionável que os colchetes que constam do testamento foram usados com impropriedade, do mesmo modo que é exacta a afirmação constante do parecer de fls 366 de que se “o testador quisesse eliminar a expressão seus sobrinhos, em partes iguais, filhos de teria escrito as palavras digo bens a logo a seguir à expressão filhos de”.
Sem dúvida que a redacção do testamento não é modelar, mas com o devido respeito, se o fosse, tais pareceres seriam inúteis por desnecessários, como redundante e inútil seria todo o labor interpretativo e, em derradeira análise, o próprio processo.
A tarefa interpretativa cometida ao tribunal não se destina a surpreender e evidenciar as deficiências linguísticas do texto da disposição testamentária, mas antes a concatenar todos os elementos envolventes da declaração em ordem a apurar a vontade psicológica do declarante.
Assim sendo, a questão que se deve colocar não tem a ver com a análise linguística do testamento em ordem a surpreender nele imperfeições nesse plano, mas antes em dilucidar a justificação e alcance da aposição dos colchetes.
Cumpre referir que a execução material do testamento não é da responsabilidade do testador, mas antes do tabelião, não fazendo por isso qualquer sentido especular – como se faz no parecer de fls 366 - sobre se o declarante podia ter riscado e ressalvado as expressões objecto da controvérsia.
Ora a tarefa do intérprete não pode confinar-se a apontar as deficiências do texto e apontar dele uma versão optimizada, mas antes a indagar por que foram colocados os mencionados parêntesis.
Já dissemos que tal colocação não se coaduna com nenhuma das funções que lhes são destinadas pela linguística, importando então saber qual a função intencionada pelo oficial público que os inseriu na assentada.
Manifestamente não se tratou de qualquer lapso, pois as expressões entre parêntesis estão interligadas entre si, deixando assim transparecer a intencionalidade que lhe presidiu.
Não há na declaração o menor vestígio de instituição de um fideicomisso condicional a favor dos autores nas circunstâncias defendidas nos pareceres já aludidos.
Neste contexto, a aposição dos colchetes só pode significar a intenção de excluir as expressões intercaladas, por forma a que o beneficiário do fideicomisso não sejam os “seus sobrinhos, filhos de” seu irmão M. Barros que existirem à data da sua sucessão” , mas antes o próprio irmão.
Ou seja, não podendo presumir-se que a aposição dos colchetes foi acidental, então a única leitura possível do conteúdo do testamento deve ser no sentido de que, seja porque a assentada não recolhera correctamente a vontade inicialmente manifestada pelo testador, seja porque este a alterou posteriormente, o tabelião colocou entre parêntesis os trechos que não se harmonizavam com tal intenção, sem todavia ressalvar como lhe cumpria a alteração (prática que como se vê da certidão de fls 385 e segs. não era exclusiva dos notários brasileiros).
Procedem por conseguinte as conclusões a), b) e c) e, com elas, procede igualmente a própria apelação.
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DECISÃO:
Face ao exposto, julga-se a apelação procedente e, consequentemente, revoga-se a sentença e declara-se a acção improcedente.
Custas em ambas as instâncias a cargo dos autores.

Guimarães, 25 de Fevereiro de 2008