Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1720/13.5TBGMR.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DIREITO DE REGRESSO
CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Na vigência do artigo 27.º, n.º 1, alínea c) do DL n.º 291/2007, de 21/08, deve continuar a entender-se que, para a procedência do direito de regresso da seguradora contra o condutor por ter agido sob a influência do álcool, exige-se a alegação e prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre o estado de etilizado e o acidente de que resultaram os danos do terceiro por ela indemnizados.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
“..– Companhia de Seguros, SA” deduziu ação declarativa contra B.. pedindo que o réu seja condenado a pagar à autora a quantia de € 10.810,07, acrescida dos juros de mora à taxa ou taxas legais supletivas e aplicáveis aos créditos de natureza comercial, sobre a quantia de € 9637,00, até efetivo e integral pagamento, sustentando-se no seu direito de regresso por haver pago indemnização a terceiro em virtude de acidente de viação provocado pelo seu segurado/réu que conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida.
Contestou o réu, por impugnação, imputando a culpa do acidente à condutora do veículo terceiro.
Após julgamento foi proferida sentença que julgou a ação procedente, condenando o réu no pagamento à autora da quantia de € 9637,00, sobre a qual incidem juros moratórios desde 08.11.2011 até integral pagamento, à taxa legal dos juros civis de 4%, sem prejuízo de posterior alteração legislativa.
Discordando da sentença, dela interpôs recurso o réu, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
1ª O Tribunal não deveria ter dado como provado os factos constantes das alíneas d., f. e o. da sentença por ausência de prova.
2ª Não deveria ter sido dado como provado que a viatura conduzida pela E.. circulava a velocidade não superior a 40 km/hora.
3ª Não se fez prova de que o Recorrente circulava a velocidade entre 50 km/hora a 60 km/hora e quanto a este facto o depoimento da testemunha E.. é contraditório.
4ª O Tribunal não valorizou o depoimento de Recorrente.
5ª Não deveria ter sido dado como provado que a “taxa de alcoolemia existente no corpo do Réu foi a causa do seu comportamento na condução, que determinou o embate, nomeadamente, a taxa de alcoolemia, acima referida” – de 0,54g/l – “fez com o réu não lograsse manter o veículo por si conduzido dentro da metade da faixa de rodagem destinada à sua circulação, passando assim a invadir a hemifaixa de rodagem contrária.”.
6ª A sentença recorrida desvaloriza o mau estado do piso, quando, quer o Réu, quer as testemunhas ouvidas falam do mau estado em que se encontrava o piso.
7ª A testemunha J.., militar da GNR, referiu no seu depoimento que a causa do acidente poderia ter sido o estado do piso, ao ter feito com que a carrinha conduzida pelo Recorrente lhe fugisse na curva.
8ª Nenhum facto permite afirmar, em concreto, a interferência da alcoolemia no processo causal do sinistro.
9ª Nenhumas das testemunhas ouvidas disseram ao Tribunal que o Réu aparentava estar alcoolizado ou que qualquer comportamento seu estivesse fora dos parâmetros normais.
10ª A TAS do Recorrente era de 0,54g/l, tão próxima do mínimo legal, que é praticamente impossível que tenha tido influência na produção do acidente.
11ª A testemunha J.. (militar da GNR) admite que o acidente se tenha ficado a dever às ”pedrinhas” existentes nas bermas da estrada, ou até a qualquer outra causa. Desvalorizando até o grau de alcoolemia do Recorrente.
12ª Perante a factualidade dada como provada pelo Tribunal a quo, não resulta preenchida a exigência legal da relação de causalidade adequada entre a ingestão de álcool e a produção do acidente.
13ª Resultando das regras da experiência científica e comum que a condução sob uma TAS de 0,54 g/l, o facto de a carrinha ter fugido numa curva, o facto de o piso estar em mau estado, com buracos e pedras nas bermas e não havendo qualquer outro facto relevante, não preenche o conceito de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente, não só em concreto, como também em abstracto.
14ª No que se refere ao direito de regresso da seguradora contra o condutor, estabelecia o art.º 19º, al. c) do D.L. n.º 522/85, de 31/12, que “satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso contra o condutor, se … tiver agido sob a influência do álcool …”.
15ª O art.º 27º, n.º1, al. c), do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21/8, que veio revogar aquele D.L., veio dispor que a seguradora tem direito de regresso contra o condutor “quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.
16ª Por sua vez, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 81º do Código da Estrada, por referência à proibição do n.º 1 do mesmo normativo, e relativa à condução sob a influência do álcool, “considera-se sob a influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após o exame realizado nos termos previstos no presente código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico”.
17ª Para a efectivação do seu direito de regresso tem de resultar, no entanto, face ao que ora dispõe a al. c) do n.º1 do art.º 27º do D.L. n.º 291/2007, que o acidente em causa tenha ocorrido por responsabilidade do segurado e, no caso, em consequência de o mesmo se encontrar sob o efeito do álcool.
18ª Esta mudança legislativa alterou, em nosso entender – agravando-a -, de forma substancial, o funcionamento do direito de regresso da seguradora.
19ª Anteriormente exigia-se apenas que a alcoolemia fosse causal do acidente; agora, a exigência legal é maior: exige-se a culpa do condutor na ocorrência do acidente, por qualquer violação das regras estradais e, cumulativamente, que conduza com taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida - TAS superior a 0,5g/l.
20ª Sem a exigência do nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia e o acidente, pode cair-se no extremo de um sinistro em que interveio um condutor alcoolizado, mas cujo estado não foi a causa do acidente, que ocorreu meramente por violação de uma qualquer norma estradal, implicar sempre o direito de regresso, com a desvalorização inerente do contrato de seguro.
21ª Por isso consideramos exigível a alegação e prova pela seguradora que exerce o direito de regresso, do nexo de causalidade entre o estado de etilização e o acidente - a que o condutor demandado deu causa, por violação de qualquer regra estradal -, de que resultaram os danos de terceiro indemnizados por ela, isto é, que o álcool foi causa real, efectiva e adequada ao desencadear do acidente.
22ª No fundo, a redacção da al. c) do n.º 1 do art.º 27º do D.L. n.º 291/2007, de 21/08, veio alterar, na tese que defendemos, de modo significativo, a redacção do art.º 19º, al. c) do D.L. n.º 522/85, de 31 de Dezembro, no sentido de exigir à seguradora não só a prova da responsabilização do condutor pelo acidente como ainda do nexo de causalidade entre o acidente e o estado etilizado do mesmo.
23ª Face à interpretação da al. c), do n.º1 do art.º 27º do citado D.L. n.º 291/2007, de 21/08, (à semelhança da interpretação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2002, de 28/05/02) cabe à seguradora demonstrar aquela relação causal; que o acidente foi causado pelo facto de o condutor se encontrar sob o efeito do álcool.
24ª A conduta contravencional do condutor deve ser determinante, em termos de causa adequada, do evento (causa concretamente apurada, não baseada em qualquer presunção) para que se deva considerar estabelecido e provado o nexo causal entre a condução sob a influência do álcool e o acidente de que advieram os danos.
25ª No caso em apreço, o nexo causal exigível na disposição legal citada, entre a condução do Réu sob o efeito do álcool e a acção do mesmo, não ficou demonstrada nos autos.
26ª No entender do Recorrente, a questão estava em saber se o acidente ocorreu por culpa do dele, designadamente por violação das regras estradais; se a conduta violadora das regras estradais se deveu ao facto de o condutor, antes disso, ter ingerido bebidas alcoólicas; e aos eventuais efeitos de tal ingestão nas suas capacidades de condução, daí extraindo as necessárias consequências no que toca ao invocado direito da Recorrida reaver o valor peticionado.
27ª No caso dos autos nada se provou relativamente à respetiva dinâmica do acidente no sentido de se poder concluir que o acidente se deveu ao facto de o Recorrente ter ingerido bebidas alcoólicas.
28ª Apesar de o ter alegado, a Recorrida não logrou demonstrar, como lhe incumbia, qualquer nexo de causalidade adequada entre o exercício da condução no estado etilizado do Recorrente e a ocorrência do sinistro.
Termos em que, pelo que vem de expor-se e pelo que V. Exas. suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, assim se fazendo uma vez mais JUSTIÇA!

A autora contra alegou, pugnando pela confirmação da decisão recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com a impugnação da decisão da matéria de facto, com as consequências jurídicas da sua eventual alteração e com a questão de saber se basta a condução sobre o efeito do álcool e o facto de o condutor ter dado causa ao acidente – ainda que sem estabelecimento da relação causal entre uma realidade e a outra – para integrar o direito de regresso em benefício da seguradora.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença foram considerados os seguintes factos:
1. Factos provados
§ Oriundos da Petição Inicial:
a. No dia 30.07.2011, pelas 20 horas e 30 minutos, na rua de Oleiros, freguesia de Serzedo, Guimarães, ocorreu um embate.
b. Foram intervenientes em tal embate: - O veículo ligeiro com a matrícula ..-UE (doravante UE), marca Citroen, modelo Berlingo, conduzido pelo Réu; e, - O veículo ligeiro com a matrícula ..-DQ-.. (doravante DQ), marca Toyota, modelo Yaris, conduzido por E.. e a esta pertecente.
c. A viatura conduzida pelo Réu circulava na dita rua de Oleiros, no sentido Serzedo/Calvos.
d. E a viatura conduzida pela referida E.. circulava no sentido contrário, ou seja, Calvos/Serzedo, na sua mão de trânsito, ou seja, dentro da metade da faixa de rodagem atento o sentido que tomava, a velocidade não superior a 40 km/hora. (parte a negrito eliminada na reapreciação da matéria de facto)
e. O veículo UE, conduzido pelo Réu, circulava no sentido contrário ao anterior referido veículo, ou seja, no sentido Serzedo/Calvos.
f. O Réu circulava à velocidade entre 50km/hora a 60 km/hora. (eliminado na reapreciação da matéria de facto)
g. Ao desfazer uma curva que existe antes do local do embate, curva esta para a direita, atento o sentido Serzedo/Calvos, o Réu não conseguiu manter o veículo por si conduzido dentro da metade da faixa de rodagem destinada à sua circulação, e passou a circular, em parte, na metade da faixa rodagem contrária ao seu sentido de trânsito, a qual, assim, invadiu, pelo que veio a embater no veículo DQ.
h. O embate deu-se entre ambas as frentes dos dois veículos, tendo ainda o veículo DQ, mercê do choque, recuado e embatido num muro de uma residência situado à sua direita e atento o sentido de marcha Calvos/Serzedo.
i. Com o acidente, os dois veículos ficaram imobilizados.
j. O embate entre os dois veículos ocorreu na metade da faixa de rodagem, atento o sentido Calvos/Serzedo.
k. A largura da via no local onde se deu o embate tem a medida de 6,20 metros.
l. O local do embate verificou-se a sensivelmente 2,30 metros do limite direito dessa mesma via atento o sentido Calvos/Serzedo, e a cerca de 3,90 metros do limite direito dessa mesma via, mas agora atento o sentido de marcha do veículo conduzido pelo réu (Serzedo/Calvos).
m. Na altura do acidente, ainda havia luz solar quase completa e o piso encontrava-se seco.
n. Imediatamente após o acidente, o Réu foi pela Guarda Nacional Republicana (GNR) submetido ao teste de alcoolémia, por colheita de sangue, tendo acusado uma taxa de álcool no sangue de 0,54 g/l.
o. A taxa de alcoolemia existente no corpo do Réu foi a causa do seu comportamento na condução, que determinou o embate, nomeadamente, a taxa de alcoolemia, acima referida, fez com o réu não lograsse manter o veículo por si conduzido dentro da metade da faixa de rodagem destinada à sua circulação, passando assim a invadir a hemifaixa de rodagem contrária (eliminado na reapreciação da matéria de facto).
p. Por acordo de seguro celebrado inicialmente entre Réu e a .. – Companhia de Seguros, S.A., e titulado pela apólice nº .., esta última assumiu a responsabilidade civil contra terceiros emergente de acidentes de viação em que fosse interveniente o veículo do Réu UE.
q. A sociedade ..- Companhia de Seguros, S.A., incorporou-se, por fusão, na sociedade Companhia de Seguros .., S.A., a qual passou a designar-se por .. – Companhia de Seguros, S.A., operação esta que ocorreu em 31 de Maio de 2012.
r. Com consequência do acima descrito embate, ambos os veículos sofreram danos, o que aconteceu, no que diz respeito ao veículo DQ, na parte da frente deste, motor, suspensão, direção, travões, rodados, etc, e bem assim, na respetiva traseira.
s. Para reparação de todos esses danos seria necessário despender, no mínimo, a importância de € 14.915,67 (catorze mil novecentos e quinze euros e sessenta e sete cêntimos.
t. Dado que o valor venal ou comercial da referida viatura DQ era o de € 8.662,00 (oito mil seiscentos e sessenta e dois euros), pelo que a aqui Autora considerou ocorrer, no caso, perda total do veículo sinistrado.
u. Por carta de 18.08.2011, a Autora (então .., Companhia de Seguros, SA) comunicou a E.., que considerava o veículo sinistrado em perda total, indicando ainda como valor do respetivo salvado o de € 1.713,00 (mil setecentos e treze euros).
v. Por acordo entre a Autora e a proprietária de tal veículo sinistrado, a Autora aceitou pagar a esta, igualmente aceitou, a quantia de € 8.287,00, valor este que compreendia também indemnização pela paralisação ou privação de uso do mesmo veículo, ficando ainda o salvado na posse da proprietária.
w. A Autora pagou à referida E.. a quantia de € 8.287,00, relativamente aos danos por esta sofridos e relacionados com o seu veículo sinistrado.
x. Em consequência do embate, a E.. sofreu lesões corporais, lesões essas que lhe acarretaram uma incapacidade temporária e total para o trabalho pelo período de 12 dias.
y. E que consistiram essencialmente em nevralgias intercostais, hematoma na mama direita, dor no tórax, ferida no joelho esquerdo, hematomas no pescoço.
z. Para ressarcimento desses danos e por acordo entre a aqui autora e a dita E.., a Autora pagou a esta a quantia global de € 1.350,00 (mil trezentos e cinquenta euros).
aa. A Autora, por carta datada de 08.11.2011, interpelou o Réu no sentido de lhe ser por este paga a quantia de € 9.637,00 (nove mil seiscentos e trinta e sete euros).
2. Factos não provados
§ Oriundos da Petição Inicial:
bb. O condutor do DQ conduzia a velocidade superior a 50 km/h-60km/h.
§ Oriundos da Contestação:
cc. A condutora do UE conduzia a velocidade superior a 40 km/h.
dd. Na via onde circulava o DQ existia um buraco imediatamente antes do local onde se produziu o embate.

Discorda o apelante da decisão da matéria de facto, designadamente no que diz respeito às alíneas d), f) (estas no que respeita à velocidade dos veículos intervenientes no acidente) e o) dos factos provados.
E tem razão o apelante.
Vejamos.
Relativamente ás velocidades a que seguiam os veículos, nenhuma prova consistente foi efetuada, tendo-se socorrido o tribunal recorrido do depoimento da testemunha E.. (que conduzia um dos veículos intervenientes) e da violência do embate que decorre dos danos que os veículos apresentavam.
Ora, quanto ao depoimento da testemunha E.., pensamos que o mesmo não pode ser valorizado com o sentido de atribuir uma velocidade concreta ao veículo do réu, uma vez que a própria testemunha salientou que a viatura do réu lhe apareceu inopinadamente, após uma curva, ou seja, sem visibilidade para o seu trajeto anterior e, portanto, sem capacidade para medir a velocidade a que seguiria. Nenhuma das outras testemunhas - o réu e o agente da GNR que tomou conta da ocorrência, mas que chegou ao local já depois do acidente – acrescenta qualquer facto com relevância sobre este assunto. Quanto aos danos nos veículos, por si só e desacompanhados de outros elementos, não serão suficientes para fixar uma velocidade concreta, não só do veículo do réu, como também do da testemunha E...
Deve, aliás, dizer-se que, se é certo que o réu tem um particular interesse na questão e, por isso, foi ouvido em depoimento de parte, a verdade é que não pode dizer-se, como se diz na sentença, que a testemunha E.. não tem qualquer interesse na questão, uma vez que já foi indemnizada, pois foi de igual modo interveniente no acidente, conduzia um dos carros que chocou de frente com o outro e terá sempre o interesse de sustentar a sua versão dos acontecimentos, imputando a culpa ao outro interveniente.
Isto posto, deve também dizer-se que, no caso presente, a velocidade a que seguiam os veículos não é um dado de grande relevância, tendo em conta a forma como o embate se deu, resultando da contravenção estradal prevista no artigo 13.º, n.º 1 do Código da Estrada – “o trânsito de veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem e o mais próximo possível das bermas ou passeios, conservando destes uma distância que permita evitar acidentes” -, o que não sucedeu, uma vez que o “Réu não conseguiu manter o veículo por si conduzido dentro da metade da faixa de rodagem destinada à sua circulação, e passou a circular, em parte, na metade da faixa rodagem contrária ao seu sentido de trânsito, a qual, assim, invadiu, pelo que veio a embater no veículo DQ” (facto da alínea g) dos factos provados).
Assim, qualquer que fosse a velocidade a que seguia o réu, resulta que ela era excessiva, no sentido em que ele não foi capaz de a regular para, em segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever – artigo 24.º, n.º 1 do C. da Estrada.
Procede, assim, nesta parte o recurso do apelante, pelo que se decide eliminar dos factos provados a alínea f) e a parte da alínea d) que se refere à velocidade a que seguia a condutora Elsa.

E o mesmo se dirá relativamente à alínea o) dos factos provados.
Em primeiro lugar, a redação de tal alínea é conclusiva. Aí se diz que “a taxa de alcoolemia existente no corpo do réu foi a causa do seu comportamento na condução, que determinou o embate…”. Trata-se de um juízo de causalidade, perfeitamente conclusivo e que, como tal, não deveria constar da enumeração dos factos. O juízo de provado ou não provado só pode recair sobre factos – cfr. artigo 607.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Civil – estando por consequência excluídos da tarefa instrutória quaisquer meros “juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios e valorações de factos, pois que todos eles importam uma atividade que é de todo estranha e superior à simples atividade instrutória” – cfr. Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil, vol. III, 3.ª edição, 1981, pág. 212.
Apesar de o atual CPC não conter disposição legal com o conteúdo do anterior artigo 646.º, n.º 4 (o qual considerava não escritas as respostas sobre matéria de direito, que a jurisprudência vinha considerando, analogicamente, para expressões conclusivas), tal não permite concluir que o juiz pode agora incluir no elenco dos factos provados meros conceitos de direito e/ou conclusões, as quais, a priori e antecipada e comodamente, acabam por condicionar e traçar desde logo o desfecho da ação ou incidente, resolvendo de imediato o thema decidendum – neste sentido Ac. desta Relação, subscrito pela aqui relatora, enquanto adjunta, n.º 62/14.3TBPTL-B.G1, in www.dgsi.pt.
Ainda que assim não fosse, não vemos que pudesse extrair-se tal conclusão da restante matéria de facto.
Na fundamentação da sua decisão, a Mma juíza apela a um “ponto de vista naturalístico” para concluir que a “imponderação do trajeto da via – curva – bem como a invasão da via de rodagem contrária são factos que levam a inferir que, na base da inconsideração das regras estradais esteve a ingestão do álcool, perturbadora da capacidade de avaliação das circunstâncias e de reação”. Mais acrescenta que o réu não logrou provar que o facto de a carrinha lhe ter fugido se terá ficado a dever ao mau estado do piso.Ora, o que é certo é que era à autora que cabia fazer prova dos factos constitutivos do direito que alegou – artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil.
E, analisados todos os factos provados, de entre os quais sobressai o facto de a taxa de alcoolemia que o réu apresentava na altura do acidente ser superior à permitida em apenas 0,04g/l, desacompanhado de qualquer outra circunstância, nomeadamente quanto ao comportamento do condutor, anterior ou posterior ao evento danoso, não é possível concluir-se, sem mais, que o acidente se ficou a dever àquela taxa de alcoolemia, só porque, ao descrever uma curva, o condutor tenha entrado fora de mão, indo assim embater na viatura que seguia em sentido contrário. Veja-se que o militar da GNR que foi ouvido como testemunha e que elaborou a participação do acidente, referiu que o estado do piso e a existência de umas “pedrinhas” nas bermas, podem fazer com que o carro fuja e que “já não é a primeira vez, pelo menos a mim, que às vezes foge” e que “na minha opinião pessoal, admito a possibilidade de a carrinha ter fugido por causa do estado em que se encontrava a estrada” (não se provou a existência de um buraco na estrada imediatamente antes do local do embate, mas tal não quer dizer que a estrada estivesse em boas condições – seja como for, trata-se de matéria da alegação do réu e não da autora, a quem, como vimos, competia provar aquela relação de causalidade entre a ingestão do álcool e a produção do acidente). Neste caso, seria ir longe de mais admitir aquela causalidade por presunção judicial, nos termos do disposto nos artigos 349.º e 351.º do CC. Seria admitir a desnecessidade da prova de factos dos quais se pudesse concluir pelo nexo causal, por se admitir a presunção de que, sempre que a TAS é superior a certo limite, o condutor deixa de ponderar corretamente o exercício da condução automóvel, representando perigo para os demais utentes da via, o que, tendo por base juízos de natureza científica, não dispensa a prova concreta daquele nexo em função do concreto acidente em análise.
Pelo que importa concluir pela procedência da apelação, também nesta parte, eliminando-se dos factos provados a alínea o).

A questão seguinte está relacionada com a última que acabámos de analisar. Indagaremos se basta que o condutor etilizado tenha dado causa ao acidente ou se é necessário que esta causa tenha emergido da própria etilização.
Tanto na sentença recorrida como nas alegações de recurso se faz um historial da legislação e da interpretação jurisprudencial que da mesma vem sendo feita ao longo dos anos, concluindo-se, contudo, de forma oposta, pois enquanto na sentença recorrida se conclui que o direito de regresso se basta com uma TAS superior à legalmente permitida, estando a influência danosa do álcool pressuposta no artigo 81.º, n.º 2 do Código da Estrada (a acrescer, claro, à imputação subjetiva do acidente), nas alegações de recurso conclui-se pela exigibilidade da alegação e prova pela seguradora que exerce o direito de regresso, do nexo de causalidade entre o estado de etilização e o acidente, a que o condutor demandado deu causa, por violação de qualquer regra estradal, de que resultaram os danos de terceiro indemnizados por ela, ou seja, que o álcool foi causa real, efetiva e adequada ao desencadear do acidente.
Aderimos à tese explanada nas alegações de recurso.
Sem necessidade de introduzir aqui o historial de preceitos e interpretações que foram tendo lugar acerca desta matéria, cabe apenas recordar o Acórdão Uniformizador n.º 6/2002, publicado na I Série do Diário da República de 18.7.2002, com o seguinte teor: “A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob a influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.”
Após a publicação em 21/08/2007 do DL n.º 291/2007, estatuindo, na parte que agora interessa do artigo 27.º, que: Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida… foi retomada a divergência jurisprudencial, baseada nas duas interpretações: uma no sentido de que, circulando o condutor com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, se der causa a um acidente, relacionado ou não com a etilização, a seguradora tem direito de regresso; outra com o entendimento de que não basta o condutor etilizado ter dado causa ao acidente, sendo necessário que esta causa tenha emergido da própria etilização.
Veja-se, a este propósito o exemplo sugerido no Acórdão do STJ de 06/07/2011, relatado pelo Conselheiro João Bernardo e disponível em www.dgsi.pt: “O condutor etilizado que vê uma pessoa conhecida no passeio ao lado e se distrai a olhar para ela, não reparando que está a entrar numa passadeira por onde passa um peão, que atropela, sem que o seu comportamento tenha algo a ver com a alcoolização, teria contra si o direito da seguradora na primeira das interpretações e não o teria na segunda”
Como bem se diz no Acórdão do STJ citado “estando firmado o entendimento de que tinha que haver uma relação de causalidade entre a etilização e o evento, se se pretendesse romper com ela, a redacção havia de ser muito mais categórica. A referência “quando tenha dado causa” não encerra um alargar da previsão a todos os casos em que o condutor tenha dado causa ao acidente, mas antes o consagrar, em texto legal, do que faltara ao texto anterior e já vinha sendo entendimento constante. Perfilhamos, assim, a segunda interpretação”
Sufragando a primeira das interpretações veja-se, entre outros, o Acs. do STJ de 8.01.2009, da Relação de Coimbra de 8.05.2012 e da Relação do Porto de 13.12.2011 enquanto outros defendem a segunda interpretação – cfr., entre outros, o já citado Ac. do STJ de 06/07/2011, da Relação de Lisboa de 17.05.2012 e da Relação do Porto de 19.01.2012, de 20.09.2012 e de 16/05/2013, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Também alguma doutrina tem defendido esta segunda interpretação, cfr. Luís Filipe Pires de Sousa, in “Prova por Presunção no Direito Civil”, pág. 273: “É verdade que a redacção anterior do art.º 19.º e a actual do art.º 27.º são diferentes, numa postulava-se “…tiver agido sob a influência do álcool… “ e agora dispõe-se “…tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida…”, todavia e como se sabe, segundo o disposto no art.º 9.º do C.Civil -“A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”. Logo é necessário para uma correta interpretação do actual texto da lei ter-se em consideração todos os elementos hermenêuticos de interpretação da lei e não dar apenas relevância ao elemento literal, descurando os restantes elementos histórico, sistemático e racional. A doutrina e a jurisprudência que têm defendido a segunda interpretação, ou seja, a de que se exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida a prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução com essa taxa e o acidente, com os seguintes argumentos: em primeiro lugar, um argumento de índole histórica, porquanto a redacção de 2007 vem na sequência do entendimento prevalecente anteriormente e plasmado no acórdão uniformizador de jurisprudência 6/2000, de 28.05, no sentido de que tinha de haver uma relação de causalidade entre a etilização e o evento. Dai que, se fosse propósito do legislador romper com tal estado de coisas, teria utilizado uma técnica legislativa mais assertiva. A referência a “tenha dado causa” visará, precisamente, consagrar a relação de causalidade entre a etilização e o acidente. Em segundo lugar, a desconsideração do nexo de causalidade levaria a uma objectivação das consequências da condução sob a influência do álcool em benefício da seguradora, imputando responsabilidades ao condutor que nada têm a ver com a conduta culposa consistente no estado etílico.
Nós acompanhamos e também defendemos este entendimento. Na verdade, o direito de regresso é no dizer de Antunes Varela, in “Obrigações em Geral”, vol. II, pág.334 “um direito nascido ex novo na titularidade daquele que extinguiu a relação creditória anterior ou daquele à custa de quem a relação foi considerada extinta”, ou seja, este direito das seguradoras não poderá ultrapassar a amplitude do direito em que se fundamenta, in casu na responsabilidade civil do segurado. Daí que considerar-se que o segurado que provoca um acidente com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, por si só, é condição para legitimar o direito de regresso da seguradora, estar-se-ia a sancionar (civilmente) o agente (segurado) pela taxa de álcool no sangue de que é portador, sem a necessidade de se estabelecer um nexo causal entre esse mesmo estado de alcoolemia e os danos resultantes do acidente, e consequentemente a alterar a natureza reparadora do direito civil (ao invés de sancionadora), pois que se sancionar-se-ia o agente em função da sua culpa e não da causalidade entre a sua acção e os danos casuísticos da mesma. Assim entendemos que para que o direito de regresso, da seguradora que satisfez a indemnização seja reconhecido tem a mesma, para além de provar a culpa do condutor na produção do evento danoso, alegar e provar, ainda, factos de onde resulte o nexo de causalidade entre a condução com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida e o evento dele resultante” – Acórdão da Relação do Porto de 15/01/2013, disponível em www.dgsi.pt (onde se analisa um caso semelhante ao nosso de invasão da hemi-faixa contrária, mas com excesso de velocidade e taxa de álcool superior).
Veja-se o acórdão do Supremo de 09-06.2009, proferido no processo 1582/04.3TVLSB.S1, citando o do mesmo Tribunal de 08.04.2003, que refere que “determinada taxa de álcool (a menos que seja tão elevada que não ofereça quaisquer dúvidas sobre os efeitos, o que não será manifestamente o caso da taxa de 0,63 detectada no réu) não permitiria nunca – com base em meras presunções judiciais – concluir pela necessária influência no comportamento ou forma de agir do respectivo portador, em termos de poder ter-se como certo que o acidente em que teve intervenção resultou do seu estado de alcoolemia”.
No nosso caso, o apelante apresentava uma taxa de álcool no sangue de 0,54 g/l.
O n.º 2 do art. 81.º do Cód. Est. considera sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa igual ou superior a 0,5 g/l. Não estamos, pois, perante uma etilização a justificar, numa pessoa normal, a perda da noção de que deve cumprir as regras estradais, nem isso resulta dos factos provados, por forma a permitir concluir que o acidente foi determinado pelo álcool apresentado pelo responsável pelo acidente. O facto de o acidente se ter dado na hemifaixa esquerda atento o sentido de marcha do segurado da autora, conjugado com a taxa de alcoolémia a que ele seguia, sem que esteja provada qualquer relação causal entre um facto e outro, é insuficiente para se considerar integrado o pretendido direito de regresso.
Temos, pois, como inverificado o ónus que impendia sobre a A. de alegação e prova do nexo de causalidade entre a taxa de alcoolemia e o acidente.
Procede, assim, a apelação, com a consequente revogação da sentença recorrida.

Sumário:
Na vigência do artigo 27.º, n.º 1, alínea c) do DL n.º 291/2007, de 21/08, deve continuar a entender-se que, para a procedência do direito de regresso da seguradora contra o condutor por ter agido sob a influência do álcool, exige-se a alegação e prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre o estado de etilizado e o acidente de que resultaram os danos do terceiro por ela indemnizados.

III. DECISÃO
Face ao exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e julgando-se a ação improcedente com a consequente absolvição do réu do pedido.
Custas em ambas as instâncias pela A.
Guimarães, 12 de novembro de 2015
Ana Cristina Duarte
Francisco Cunha Xavier
Francisca Mendes