Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
645/06-1
Relator: ROSA TCHING
Descritores: LIVRANÇA
JUROS DE MORA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/26/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1º- Sendo o título executivo uma livrança não pode o exequente pedir o pagamento dos juros acordados na relação subjacente à emissão dessa livrança .

2º- Nas letras e livranças, emitidas e pagáveis em Portugal, é aplicável, aos juros moratórios, a taxa legal fixada para os juros civis e não a taxa fixada para os juros de mora respeitantes aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais nem a taxa de 6% referida nos nºs 2 dos artigos 48° e 49º da LULL.

3º- Tendo o Tribunal recorrido decidido aplicar esta taxa de 6% , fica o Tribunal da Relação impedido de reduzir tal taxa para a de 4% (fixada para os juros civis), pois que o nº4 do art. 684º do C. P. Civil não permite que a posição do recorrente seja agravada por virtude do recurso por ele interposto.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


No processo de execução que a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de Barcelos, instaurou contra Joaquim L... de Sousa e que tem por base uma livrança, foi proferido despacho judicial que indeferiu liminar e parcialmente o requerimento executivo “na parte relativa aos juros convencionais de 12%, atendendo-se apenas à taxa de 6%, referida no artigo 48º, n.º 2, da LULL., relativamente ao período de mora”.

Inconformada com este despacho, dele agravou a exequente, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“1 - A obrigação de juros é acessória de uma obrigação de capital, a obrigação principal, não podendo nascer ou constituir-se sem esta.
2 - O art° 5° da LULL, aplicável por força do art° 77°, refere-se aos juros convencionais e não aos juros de mora, já que a estes refere-se o art° 48, n° 2 da LULL.
3- O princípio da literalidade consiste no entendimento de que o documento (título) só vale pelo que nele está escrito, ou seja, o direito incorporado no título é um direito literal no sentido de que a letra do título é decisiva para a determinação do conteúdo, limites e modalidades do direito.
4 - Atento este princípio e em face do título, a requerente pode reclamar dos executados os juros de mora à taxa de 12%.
5 - Mas mesmo que assim não fosse, a recorrente é uma Instituição de Crédito sob a forma cooperativa, que exerce funções de crédito, bem como a prática dos demais actos inerentes à actividade bancária.
6 - A actividade bancária é, por natureza, uma actividade comercial ou mercantil, nos termos do disposto no art° 362° do Cód. Comercial.
7 - A emissão do título pelos executados destinou-se a garantir o cumprimento do financiamento supra referido, que a exequente lhes efectuou na sua qualidade de instituição de crédito.
8 - Por isso, os juros devidos são os juros comerciais e não juros civis.
9 - Pelo DL n° 263/83, de 16 de Junho, o portador das letras, livranças e cheques, quando o respectivo pagamento estiver em mora, pode exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais.
10- Com a publicação do DL 32/2003, de 17 de Fevereiro, foi dada nova redacção ao 102° do Código Comercial e mais concretamente ao disposto nos parágrafos 2° e 3°, afastando, desta forma, aplicabilidade do art° 559° do CC às dívidas e aos actos de índole comercial e estabelecendo que os juros a pagar são os fixados em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça, em consequência da transposição da Directiva nº 2000/35/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de Junho.
11-No prosseguimento daquele normativo, foi publicada, em relação aos juros comerciais, a Portaria n°s 1105/05/2004, de 16 de Outubro e, em consequência desta portaria, os Avisos da DGT n° 10097/04, n° 310/05, 6923/2005 e n° 240/2006. Pelo que
12 - A taxa de juro a aplicar ao caso em questão sempre seriam, para a hipótese de se concluir pela impossibilidade de estipulação, as fixadas nestes Avisos.
13 - O legislador quis afastar a aplicabilidade dos disposto no art° 559° do CC às dívidas de índole comercial e a interpretação consignada no despacho em recurso, nomeadamente às reclamadas através de títulos de crédito.
14 - Em nosso entender mostram-se violados os preceitos supra referidos”.

A final pede que seja dado provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido.

Os agravados contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.

Foi proferido despacho de sustentação.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir:


FUNDAMENTAÇÃO:

Como é sabido, o âmbito do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente – art. 660º, n.º2, 684º, n.º3 e 690º, n.º1, todos do C. P. Civil - , só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, ainda que outras, eventualmente, tenham sido suscitadas nas alegações propriamente ditas. Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respectivamente.


Assim, a única questão a decidir traduz-se em saber qual a taxa de juros moratórios nas obrigações cambiárias.

Dos elementos constantes dos autos resulta que:

1º- O requerimento executivo deu entrada no Tribunal Judicial da Comarca de Barcelos em 15 de Novembro de 2005;
2º- Do título dada à execução consta que o mesmo é uma livrança, datada de 26.04.2005, com vencimento em 04.10.2005, subscrita por Joaquim L... e Maria F..., a favor de CCAM Barcelos, CRL, na importância de € 26.381,96, valor de “financiamento nº. 56031951585”, e que “vence juros à taxa de 12%”.

Sustenta a exequente/agravante que a taxa de juros moratórios aplicável é de 12%, por ser esta a taxa de juro convencionada em conformidade com o teor da livrança exequenda.
Cremos, porém, não lhe assistir qualquer razão.
Senão vejamos.
A livrança é um título de crédito, pelo qual uma pessoa (subscritor) se compromete, para com outra, a pagar-lhe determinada importância em certa data.
O documento que titula a livrança não é um mero documento probatório, ou seja, um simples meio de prova.
Tem uma função constitutiva e dispositiva. É um requisito necessário para o exercício e transmissão do direito nele mencionado Cfr. Ferrer Correia, in obra citada, pág. 5..
E tem também uma função de legitimação, isto é, dispensa quaisquer outros comprovativos da existência do direito Cfr. António Pereira de Almeida, in, “Direito Comercial”, 3º vol. , pág. 17..
Assim se explica a característica da livrança denominada incorporação do direito no título.
Existe, pois, uma especial relação entre o documento e o direito por força do qual o possuidor do título – e só ele – pode exercer o direito nele mencionado.
Mas, para além da incorporação, a livrança caracteriza-se ainda pelos princípios da literalidade, abstracção e autonomia.
A autonomia tanto pode reportar-se ao direito cartular relativamente ao negócio subjacente como ao direito sobre o título.
Do princípio da abstracção resulta a possibilidade de o negócio cambiário poder preencher uma multiplicidade de funções, não tendo causa própria.
E do princípio da literalidade decorre que o conteúdo, a extensão e modalidade do direito nela incorporado vale exclusivamente em conformidade com o teor do próprio título Neste sentido, vide, Ferrer Correia, in, “Lições De Direito Comercial”, Vol. III, 1966, pág. 40..
Por força deste último princípio, o que releva é apenas e tão só o que está exarado no título e não o que foi convencionado.
Aspectos que não constem do título ou que este directa e imediatamente não define nem objectiva, não podem ser considerados.
Neste sentido, ensina C. Gavalda e J. Stoufflet In, “Droit Commercial, 2- Cheques et Effets de Commerce”, PUF, 1978, pág. 43, citado no Acórdão da Relação de Évora, de 11.04.2000, CJ, ano XXV, tomo II, pág. 278. , que “o título representa-se e configura-se como unidade material escrita que não só exclui outros meios de prova, mas também impede a possibilidade de completar as respectivas enunciações através do recurso ou por remessa para as enunciações de outros escritos, ainda que estes sejam conhecidos do portador”.
E refere Gomes Leo In, “Manual De Derecho Cambiário”; Buenos Aires, 1994, pág. 55, também citado no dito Acórdão da Relação de Évora. , que “o título cambiário basta-se (deve bastar-se) a si mesmo; é completo no sentido de que tanto o direito do credor como do devedor ficam circunscritos, exclusivamente, pelos termos da declaração cambiária, sem se admitir remissão alguma para documentos estranhos a ela e se, por hipótese, se fizer tal menção no texto, a mesma é cambiariamente irrelevante”.
Mas se assim é, então, nenhuma dúvida temos em afirmar que a referência feita, na livrança dada à execução, ao “financiamento nº. 56031951585”, de nada vale, porquanto remete para elemento que lhe é estranho – documento que titula o referido contrato de financiamento e que nem sequer se mostra junto à livrança como seu anexo ou prolongamento.
Acresce que, de harmonia com o disposto no art. 5º da LULL, aplicável às livranças por força do art. 77º do mesmo diploma a LULL, estando-se perante livrança pagável em época determinada, ou seja, na data do seu vencimento, a estipulação de juros convencionais tem de ser considerada como não escrita.
E afastada que fica, pelas razões acabadas de expor, a possibilidade de se aplicar, aos juros moratórios da livrança dada à execução, a taxa de 12% convencionada no contrato de financiamento subjacente ou causal da emissão da referida livrança, importa, agora, indagar, qual a taxa de juros moratórios nas obrigações cambiárias.
A este respeito, defende ainda a exequente/agravante que, sendo uma Instituição de Crédito sob a forma cooperativa que exerce actividade bancária, de natureza comercial nos termos do disposto no art° 362° do Cód. Comercial, a taxa aplicável é a relativa aos juros comerciais e fixada, nos termos do art. 102°, § 2 e 3 do Código Comercial, na redacção dada pelo DL nº. 32/2003, de 17.02, com referência à Portaria n° 1105/05/2004, de 16 de Outubro e aos Avisos da DGT n° 10097/04, n° 310/05, 6923/2005 e n° 240/2006.
Mas, a nosso ver, continua a carecer de razão.
É que o DL n.º 262/83, de 16 de Junho, criou um regime específico de juros moratórios para as obrigações cambiárias ao estabelecer no seu art. 4º que “O portador de letras , livranças ou cheques, quando o respectivo pagamento estiver em mora, pode exigir que a indemnização correspondente a esta consista nos juros legais”.
Estes são os juros civis a que alude o art. 559º do C. Civil, na redacção que lhe foi dada pelo DL 200-C/80, de 24 de Junho.
E se é verdade que o referido DL 262/83, alterando o art. 102º do C. Comercial, estabeleceu no seu § 3 que pode ser fixada por portaria uma taxa supletiva de juros moratórios relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais singulares ou colectivas, também não é menos verdade que isso só pode querer significar que foi intenção do legislador estabelecer, no que respeita aos juros moratórios, um regime distinto para as obrigações cambiárias - o do citado art. 4º.
E bem se compreende que seja assim, quer pela natureza dos títulos de crédito que consubstanciam tais obrigações e os princípios da abstracção e da literalidade que os enformam, quer pelo facto de a aplicação da referida taxa supletiva ser determinada pela natureza da actividade desenvolvida pelo credor e estar, por isso, intimamente ligada à relação jurídica causal ou subjacente à emissão do título de crédito cambiário.
De resto, sempre se dirá que esta orientação tornou-se pacífica com a publicação do Assento n.º 4/92, de 17 de Fevereiro In, DR. I-A série, nº. 290 , o qual fixou a seguinte doutrina. “ Nas letras e livranças, emitidas e pagáveis em Portugal, é aplicável, em cada momento, aos juros moratórios a taxa que decorre do disposto no artigo 4º do Decreto-Lei nº. 262/83, de 16 de Junho, e não a prevista nos nºs. 2 dos artigos 48º e 49º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças”.
Isto porque considerou-se que, com a entrada em vigor do citado DL n.º 262/83, estes últimos preceitos legais, deixaram de vincular jure gentium o Estado Português, estando excluídos da nossa ordem interna por força da cláusula de recepção geral do direito internacional pactício na nossa ordem interna, consagrada no art. 8º da CRP.
E, a nosso ver, tal doutrina contínua válida e é de manter, em nada colidindo com a nova redacção dada ao §3 do art. 102º do C. Comercial pelo referido DL. n.º32/2003 Segundo o qual “os juros moratórios legais (...). relativamente aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, singulares ou colectivas, são os fixados em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça. .
Assim, estando em causa a execução de título cambiário, o direito de acção da exequente/agravante, portadora da livrança, apenas permite, no que concerne aos juros de mora, a exigência do seu pagamento à taxa legal fixada para os juros civis, à data do seu vencimento (4.10.2005), ou seja, 4% ao ano, nos termos do art. 559º do C. Civil, na redacção que lhe foi dada pelo DL 200-C/80, de 24 de Junho, com referência à Portaria nº. 291/2003, de 8.04.
Não foi, porém, este o entendimento seguido pela Mmª Juíza a quo que, não obstante considerar não haver lugar à aplicação da taxa fixada para os juros de mora respeitantes aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais, decidiu-se pela aplicação da taxa legal de 6% referida no artigo 48°, 2° da LULL.
Todavia e apesar de não ser esta a nossa posição, julgamos estar esta Relação, no caso dos autos, impedida de alterar a taxa devida para 4%, por a tal se opor o disposto no nº. 4 do art. 684º do C. P. Civil, que consagra a proibição da chamada reformatio in pejus.

Daí que, improcedendo todas as conclusões da exequente/agravante, se decida manter a decisão recorrida.


CONCLUSÃO:

Do exposto, poderá extrair-se que:

1º- Sendo o título executivo uma livrança não pode o exequente pedir o pagamento dos juros acordados na relação subjacente à emissão dessa livrança .

2º- Nas letras e livranças, emitidas e pagáveis em Portugal, é aplicável, aos juros moratórios, a taxa legal fixada para os juros civis e não a taxa fixada para os juros de mora respeitantes aos créditos de que sejam titulares empresas comerciais nem a taxa de 6% referida nos nºs 2 dos artigos 48° e 49º da LULL.

3º- Tendo o Tribunal recorrido decidido aplicar esta taxa de 6% , fica o Tribunal da Relação impedido de reduzir tal taxa para a de 4% (fixada para os juros civis), pois que o nº4 do art. 684º do C. P. Civil não permite que a posição do recorrente seja agravada por virtude do recurso por ele interposto.


DECISÃO:


Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo e, consequentemente, mantém-se o despacho recorrido.


Custas pela exequente/agravante.

Guimarães, 26/04/2006