Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2597/07-1
Relator: GOUVEIA BARROS
Descritores: ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/14/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: I) O disposto no nº2 do artigo 3º do Decreto-Lei nº164/99, abrange apenas as situações em que a guarda do menor é deferida a algum dos progenitores e não quando é confiado a terceira pessoa.
II) Tendo a menor sido confiada à guarda da avó materna e estando esta a ser sustentada pela filha, emigrada na Suíça, os rendimentos desta têm de ser considerados na capitação do agregado familiar.
No entanto, o valor da capitação tem de ser ponderado em função do padrão económico do país onde o rendimento é gerado e não pela sua expressão quantitativa na ordem económica interna.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

O Ministério Público propôs acção de regulação do poder paternal atinente a Carla F. R. de F., nascida em 27/4/05, na freguesia de Nossa Senhora A..., Póvoa de Lanhoso, contra os progenitores D. F. e S. M. F.
Designada data para a conferência prevista no artigo 175º da OTM, acordaram nela os interessados sobre os termos da regulação, deferindo a guarda da menor à avó materna e obrigando-se cada um dos pais a pagar a título de alimentos a quantia mensal de €100,00, valor a entregar à avó até ao dia 8 de cada mês, acordo que foi homologado por sentença proferida na mesma data, 16 de Maio de 2006.
Em 11 de Setembro de 2006 a avó materna veio aos autos informar que o pai da menor não havia pago qualquer quantia a título de alimentos, solicitando por isso que fossem levadas a efeito as pertinentes diligências com vista à cobrança coerciva dos valores em dívida.
Não se tendo logrado identificar qualquer bem ou rendimento de que seja titular o devedor de alimentos, foram os autos com vista ao MºPº que promoveu a fixação em 120 euros mensais a quantia a pagar pelo F. G. A. D. M., actualizada anualmente de acordo com a evolução do IPC divulgado pelo INE, mas nunca por valor inferior a 5%, em harmonia com o disposto nos artigos 1º a 3º da Lei nº75/98, de 19 de Novembro e dos artigos 1º a 4º do Decreto-Lei nº164/99, de 13 de Maio.
Por despacho de 31/7/07, foi tal promoção indeferida por se ter considerado não estarem verificados in casu os pressupostos da atribuição das prestações de alimentos pelo Fundo de Garantia de Alimentos.
Notificado da decisão, veio o Ministério Público interpor recurso pretendendo a revogação da decisão e a sua substituição por outra que autorize o pagamento da prestação de alimentos pelo Fundo de Garantia de Alimentos a Menores, com base nas seguintes razões que enuncia em extensas conclusões de que se reproduzem as que reputamos com interesse:
(…)
7) No caso sub judice, entendemos que estão verificados todos os pressupostos legais para que o Estado, através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores (doravante, F.G.A.D.M.), assegure o pagamento das prestações alimentares devidas à menor CARLA.
8) Com efeito, a menor reside em território nacional e o montante da prestação de alimentos encontra-se fixada em €100.00 em sentença homologatória, já transitada em julgado.
9) Por outro lado, a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos – no caso, o pai da menor – nunca pagou as prestações alimentícias a que judicialmente se encontra vinculado assim como, ao mesmo, não são conhecidos quaisquer bens ou rendimentos, sendo evidente que não será possível, pelo menos por agora, cobrar coercivamente as quantias em dívida, através das formas previstas no artigo 189°, da O.T.M.
10) Por fim, a menor não tem qualquer rendimento e também não beneficia de rendimentos líquidos da avó materna a cuja guarda se encontra, superiores ao salário mínimo nacional (na verdade consta, a fls.80 e 84, que esta última se encontra desempregada, não recebe qualquer subsídio de desemprego e a casa onde habita está hipotecada, tendo como único rendimento mensal a quantia de cerca de 300 euros que lhe é enviada da Suíça pela mãe da menor CARLA).
11) Pela expressão legal «nem beneficie (o alimentando) nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre», deve entender-se, diz o n° 2 do artigo 3° do D.L. nº164/99, de 13 de Maio, que tal se verificará quando a capitação de rendimentos do respectivo agregado familiar não seja superior ao salário mínimo nacional, o que é o mesmo que dizer-se que o rendimento per capita do agregado familiar não seja superior a esse salário” (neste sentido, vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25 de Maio de 2004, disponível em www.dgsi.pt),
Neste sentido, para se chegar à capitação prevista no artigo 3°, n°2, do D.L n°164/99, de 13 de Maio, dividem-se os rendimentos auferidos pela avó materna, pelo número total dos membros que constituem aquele agregado familiar – ora, transpondo esta regra para o caso em apreço e tendo em conta os pontos 3) , 4) e 5) da matéria de facto provada, dos quais resulta que o agregado familiar no qual se integra a menor é constituído por duas pessoas e que, em conjunto, auferem por ano o quantia total de €3.600,00 (€300,00x12), tal dá uma capitação de €150,00 mensais.
12) Ou seja, um valor muito inferior ao salário mínimo nacional, que no ano de 2007 foi fixado no montante de €403,00;
13) Deste modo, a Meritíssima Juiz ao decidir contrariamente e indeferir o accionamento do F.G.A.D.A.M e, consequentemente, o pagamento pelo Estado da prestação de alimentos à menor, violou claramente o disposto no artigo 3º, nº1, 2 e 3, do D.L n°164/99 de 13 de Maio – neste sentido, em face das razões aduzidas deve o despacho recorrido ser revogado, devendo ser deferido o pagamento da prestação de alimentos pelo F.G.A.D.M. à menor no montante mensal de €100,00.
14) Sem prescindir e caso o tribunal “ad quem” assim não entenda, cumpre também referir que consideramos que o despacho recorrido enferma de vícios que importam a sua nulidade, por força quer da insuficiência da matéria de facto fixada como provada quer da oposição flagrante entre a matéria de facto dada como provada e o teor e sentido da decisão proferida: isto face aos elementos de prova constantes dos autos – os quais, sopesados com verdadeira “iuris prudentia” –impõem decisão diversa.
15) No que concerne à factualidade considerada como provado, entendemos que dos presentes autos fazem parte vários documentos, todos eles solicitados pelo Meritíssima Juiz, que provam factos essenciais para a boa decisão da causa, e que a mesma, por razões que se desconhece, valorou e interpretou sem arrimo a qualquer critério legal expresso para acolher – como provado – facto novo realmente não alegado nem suportado pelos meios de prova carreados para os autos.
16.° a) Destarte o Meritíssima Juiz deu amplamente como provado que «5 – A mãe da menor envia mensalmente para a avó materna cerca de €300.00 para pagamento dos alimentos;)) {cfr.fls. 88) pensamos nós, com base na informação da G.N.R. constante de fls.84 dos autos, porque, de facto, não o diz, nem explica como chega a esse facto novo e adicional de que os €300.00 são – na sua inteireza e totalidade – “para pagamento dos alimentos” ou, explicado por miúdos, para cumprimento simultâneo do obrigação alimentícia do progenitor da menor; esquecendo-se que da informação da G.N.R. constante de fls.84 dos autos apenas consta a informação de que a mãe da menor envia “cerca de 300 euros mensais para a sua mãe”;
b) Nem de tal informação nem de nenhum outro elemento do processo resulta que esta quantia se destina, inteiramente, a prover à alimentação, sustento e custeio da educação da menor,
c) Sendo, até, e segundo as regras da experiência comum mais lícito concluir do teor literal daquela informação da G.N.R. constante de fls.84 (em conjugação com os demais elementos deste processo) que aqueles trezentos euros se destinam, em primeiro lugar, a liquidar a prestação alimentícia o que a mãe do menor se obrigou pelo acordo de R.E.P.P. homologado em sentença de fls.14-15 e, em segundo lugar, para prover a outras inominadas necessidades da própria avó materna ou, até, para simples aforro a utilizar nalguma situação extraordinária ou imprevista não relativa àquela menor (obras de manutenção da casa de habitação da avó, doença da avó, etc).
d) Na verdade a obrigação de alimentos (no caso, do pai para a filha menor) é infungível [i.e. nem muda o obrigado nem muda a obrigação, em sentido mais ou menos amplo), legal (i.e. imposta por lei) e subjectiva (i.e. só uma pessoa singular determinada – no caso este progenitor – está sujeito a tal específica obrigação) sendo o seu cumprimento exigível, em primeira linha, ao obrigado legal: e no caso, não só não se trata de uma obrigação solidária como até ‘’ficou acordado expressamente em que a prestação deve ser feita pelo devedor’’ pai.
17) Assim, consideramos que o ponto 5) da matéria de facto provada, deverá ser alterado e encurtado nos seguintes termos: «5 – a mãe do menor envia mensalmente para a avó materna cerca de € 300.00”.
18) Tem, destarte, que haver-se como ainda incumprida e subsistente a obrigação alimentícia ao progenitor, atentos os argumentos invocados;
19) Ademais a nossa Lei Fundamental determina no artigo 205.°, n° 1, que ‘’as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas, na forma prevista na lei.
20) Em obediência ao preceito constitucional, o legislador consagrou nos artigos 158°, n°s. 1 e 2, e 659.°, ambos do C.P.C, aquele dever de fundamentação das decisões, exigindo de forma clara não só uma exposição, tanto quanto possível completa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, mas também a enumeração dos factos provados e não provados, sendo obrigatória a indicação do exame crítico das provas que cabe ao Tribunal conhecer.
21) A inobservância dos requisitos do fundamentação constitui uma nulidade, nos termos do disposto no artigo 668°, n° 1, alínea b) e c), do C.P.C,
22) Neste sentido, representando a decisão judicial a vontade do Lei, por subsunção a esta do caso concreto, não se alcança esse escopo sem fundamentação específica bastante e inteligível, como sucede no caso em apreço; nem se permite às partes afectados pela decisão conhecer com segurança o seu acerto ou desacerto, designadamente, para efeito de interposição de recurso sobre o mérito do mesmo.
23 - a) De facto, da leitura da decisão judicial recorrida não se vislumbra qualquer subsunção factual lógica e expressa a qualquer norma ou princípio de Direito, ou a concretos critérios de equidade, oportunidade e justiça material adequados ao caso sub judice, mas, tão-só, uma conclusão que indefere o requerido pagamento da prestação alimentar a favor do menor através do F.G.A.D.M., com base na matéria de facto provado em 2). 4) e 5), sem qualquer fundamento lógico expresso.
b) Aliás, nem sequer chegamos a perceber com que meio probatório concreto é que dá como provada a matéria de facto constante daqueles pontos 2), 4) e 5) ou até dos demais pontos, uma vez que não faz referência em cada ponto aos documentos em que se baseou, ignorando todos os demais factos documentados nos autos e com relevo para a decisão do causa.
c) Ademais a Mª Juíza ignorou – e não podia deixar de ter em conta para a boa decisão da questão – o demais teor do prova documentada a fls.80 e 84, onde consta que a avó materna se encontra desempregada, não recebe qualquer subsídio de desemprego e a casa onde habita está hipotecada, tendo como único rendimento mensal a quantia de €300,00 que lhe é enviada da Suiça pela mãe da menor Carla e a não fixação de tais comprovados factos influiu decisiva e negativamente, também, no boa decisão final: é que tal era essencial para se concluir que a menor não tem qualquer rendimento e também não beneficia de rendimentos líquidos da avó materna a cuja guarda se encontra, superiores ao salário mínimo nacional e que, assim, estava preenchido mais um dos requisitos legais para o pagamento da prestação alimentar a favor do menor através ao F.G.A.D.M.
d) Assim, consideramos que à matéria de facto provada, deverá ser aditado mais um ponto nos seguintes termos: «7 – a avó materna da menor encontra-se desempregada, não recebe qualquer subsídio de desemprego e a casa onde habita está hipotecada, tendo como único rendimento mensal aquela quantia de cerca de € 300.00 que lhe é enviada da Suíça pela mãe da menor CARLA;».
2) Nos processos onde se regula o poder paternal e onde se processam os incidentes de incumprimento da prestação alimentícia e onde [por impossibilidade de se obter a cobrança desta através do mecanismo de incumprimento próprio p. no Art° 189° da O.TM.) se processa o incidente legal e logicamente seguinte p. no Artº1º da Lei 75/98 de 19/XI e no Art° 3° nº1, do D.L 164/99 de 13 de Maio (onde não se visa substituir definitivamente uma obrigação legal de alimentos devida a menor mas, antes, propiciar uma prestação “a forfait”) vigora – por tudo isto ser jurisdição voluntária – o princípio da equidade.
26) Não seguiu, no entanto, o Tribunal recorrido nenhum juízo de equidade que levasse a postergar ou ultrapassar a legalidade estrita, não o expressou, não o demonstrou, não o integrou no silogismo judiciário que culminou no dispositivo decisório ora recorrido.
27) Assim, face à errada matéria de facto dado como provado – bem como à insuficiência desta última – e evidente falta de fundamentação constante do decisão recorrida, o qual viola os imperativos, constitucional do artigo 205°, da C.R.P. e legais dos artigos 659.°, n°3; 712°, n°1, alínea b); 659°, n°2 e 668°, n°1, alíneas b) e c), todos do Código de Processo Civil, entendemos que a mesma é nula.
28) A não se entender assim, deverá, no entanto, ter-se por surpreendido um flagrante erro de julgamento na aplicação do Direito vigente aos factos provados, devendo, assim, o presente recurso proceder e a decisão recorrida revogada e, consequentemente, substituída por uma outra que autorize o pagamento da prestação alimentar pelo F.G.A.D.M./ I.G.F.S.S. à menor no montante mensal de €100,00.
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Factos provados:
No despacho sob recurso foram relevados os seguintes factos que o tribunal considerou provados:
1 – Em 27-5-2005 nasceu Carla F., filha de D. F. e S. F;
2 – Por acordo de 16-5-2006, homologado por sentença, transitada em julgado e constante destes autos, a menor ficou à guarda da avó materna, ficando cada um dos progenitores obrigado a pagar à avó materna a quantia mensal de 100.00 Euros a título de alimentos devido ao menor;
3 - A menor reside com a sua avó materna em casa própria;
4 – A mãe do menor é emigrante na Suiça, onde trabalha e aufere por mês cerca de 2.700.00 francos;
5 – A mãe do menor envia mensalmente para a avó materna cerca de € 300.00 para pagamento dos alimentos;
6 – O pai do menor vive em casa de sua irmã, está desempregado e não lhe são conhecidos bens nem rendimentos.
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Fundamentação:
O recorrente pugna em primeira linha pela revogação do despacho que indeferiu o accionamento do F.G.A.D.M. e, em consequência, pede que imponha ao aludido Fundo o pagamento da prestação a que se obrigara o progenitor inadimplente (conclusão 13ª).
Todavia, a titulo subsidiário (conclusão 14ª) reclama a nulidade do próprio despacho, vício que emerge “quer da insuficiência da matéria de facto fixada como provada quer da oposição flagrante entre a matéria de facto dada como provada e o teor e sentido da decisão proferida (…).”
Pensamos não ser compaginável tal sequência de pedidos, pois se a matéria de facto for insuficiente ou se estiver em contradição com o teor e sentido da decisão e tais vícios implicarem a nulidade da sentença, isso só pode significar que nunca poderia proceder o pedido principal, ou seja, a procedência da pretensão intencionada pelo recorrente.
Quer isto significar que, no plano lógico-formal, o recorrente pode arguir a nulidade da sentença (ou despacho) e, desatendida tal arguição, pugnar pela sua revogação, mas não fazer depender a apreciação daquele vício da circunstância de não ter obtido acolhimento a alteração visada para a decisão de fundo.
Por isso mesmo começaremos a nossa análise pela avaliação dos alegados vícios pretensamente geradores da nulidade invocada, cuja confirmação nesta sede determinará a reiteração da decisão pela primeira instância, agora expurgada da parte viciada.
Lembraremos que as causas de nulidade da sentença estão taxativamente previstas no artigo 668º do CPC, sendo intuitivo que a sua extensão aos despachos não é absoluta, muito embora ao tribunal cumpra fundamentar todas as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido. (artigo 158, nº1 do CPC).
Todavia, do teor das conclusões resulta evidente que a pretensa nulidade se ancora no facto de o tribunal a quo ter considerado que os €300,00 que a mãe da menor envia mensalmente à sua própria mãe se destinam ao pagamento dos alimentos de sua filha.
Ora, com o devido respeito, confunde o recorrente o que configura como erro de julgamento da matéria de facto com uma assinalada oposição entre tal factualidade e o sentido da decisão.
O tribunal recorrido, depois de elencar os factos que reputou provados, concluiu que não se verificavam in casu os pressupostos para o pagamento de alimentos pela Segurança Social, dado que a pensão de alimentos se encontra a ser paga.
Das diligências realizadas, recolheu-se a informação prestada às autoridades pela avó materna da menor (fls. 84) que sua filha aufere cerca de 2700 francos mensais e lhe envia “cerca de 300 euros mensais”.
O tribunal recorrido considerou o envio deste valor de €300,00 como pagamento de alimentos e em face disso reputou injustificado o accionamento da garantia.
Concede-se que a informação recolhida não consente a imputação feita pela Srª juíza, sendo legítima a especulação feita pelo recorrente de que aquele valor se destinará ao pagamento da pensão (€100,00) e o remanescente será “para prover a outras inominadas necessidades da própria avó materna Isaura ou, até, para simples aforro a utilizar nalguma situação imprevista não relativa à menor (obras de manutenção da casa de habitação da avó, doença da avó, etc)”.
Digamos que à míngua de mais cabal esclarecimento sobre a afectação do valor recebido da filha, tão legítima é a especulação a que o recorrente se entregou, como o juízo subjacente à decisão do tribunal, não sendo de pôr de lado a hipótese mais prosaica de se tratar de uma modesta compensação pelo facto de a avó materna se dedicar por inteiro a cuidar da neta.
Naturalmente, o documento em que o tribunal se fundou não permite concluir que a quantia remetida pela mãe da menor se destina ao pagamento dos alimentos de sua filha e por isso se tem de considerar não escrita a finalidade assinalada na parte final do nº5 de “factos provados”, modificação que nos é consentida pelo disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 712º do CPC.
Qual é então a incidência da alteração assim introduzida?
Nesse contexto, diz o recorrente, estão verificados os pressupostos legais para que o Estado assegure o pagamento das prestações a cargo do FGA, pois a capitação do agregado familiar da avó da menor é inferior ao salário mínimo nacional.
Dispõe o artigo 3º do Decreto-Lei nº164/99, de 13 de Maio o seguinte:
1 — O Fundo assegura o pagamento das prestações de alimentos referidas no artigo anterior até ao início do efectivo cumprimento da obrigação quando:
a) A pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos não satisfizer as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189° do Decreto-Lei n°314/78, de 27de Outubro; e
b) O menor não tenha rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre.
2 — Entende-se que o alimentado não beneficia de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre, superiores ao salário mínimo nacional, quando a capitação de rendimentos do respectivo agregado familiar não seja superior àquele salário.”
Das diligências realizadas pode considerar-se adquirido que o pai da menor não paga os alimentos a que se obrigou, tendo abandonado o trabalho em 20/11/06, sendo por isso despedido (cfr fls 50).
O inquérito social elaborado segundo declarações do próprio (as autoridades policiais, como se sabe, optam normalmente pelas fontes mais idóneas…) dá-nos conta que ele continua a trabalhar esporadicamente e com o que ganha, contribui com cerca de 100 euros para as despesas do seu próprio alojamento em casa de uma irmã.
Assente que se verifica o pressuposto previsto na alínea a), isso só por si não é bastante para a assunção pelo FGA das obrigações decorrentes do diploma referido, pois o Estado não se substitui automaticamente ao devedor de alimentos, assumindo antes uma obrigação autónoma, ainda que subsidiária, pois é gerada pelo incumprimento e pela impossibilidade de realização coactiva da prestação fixada.
Assim “a intervenção do Fundo reveste natureza subsidiária (…) pelo que a sua prestação não pode exceder a fixada para o devedor de alimentos, que funciona como limite máximo para a prestação a cargo do F.G.A.D.M.” (Ac. R. C. de 25/5/04, rel. António Piçarra).
Mas, para além disso, tal intervenção depende ainda de outros requisitos, pois pressupõe que o menor não tem rendimento líquido superior ao SMN, nem beneficie de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre.
Julgamos ser vicioso discutir se no caso concreto se verifica a primeira situação, mas parece-nos pertinente avaliar se não se verificará a segunda.
Na tese do recorrente a avó está desempregada e apenas recebe os €200,00 que sua filha lhe manda mensalmente, pelo que tem por adquirida a verificação deste último requisito.
Adiantamos já que não sufragamos o entendimento subjacente a tal afirmação!
Dispõe o artigo 1918º do CC que “quando a segurança, a saúde, a formação moral ou educação de um menor se encontrem em perigo e não seja caso de inibição do exercício do poder paternal, pode o tribunal, a requerimento do M.° P.°, ou de qualquer das pessoas indicadas no n°1 do art°1915°, decretar as providências adequadas, designadamente confiá-lo a terceira pessoa ou estabelecimento de reeducação ou assistência”.
Daqui decorre, sem dúvida, que só excepcionalmente, e perante situações sérias devidamente comprovadas, do tipo das referidas, é que o tribunal não deve entregar o filho aos pais, mas a terceira pessoa — neste sentido, Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício do Poder Paternal nos Casos de Divórcio, 2ª edição pág. 31.
A prioridade vai sempre para os pais do menor, a menos que haja razões sérias que o desaconselhem.
No caso vertente a menor não foi confiado nem ao pai que residia em Portugal nem à mãe, esta a residir na Suiça, sendo a sua guarda e o poder paternal deferido à avó materna (artigo 1º do acordo de fls14).
Neste contexto – sustenta o recorrente – a menor não beneficia de rendimentos da pessoa a cuja guarda se encontra de valor superior ao SMN, pois a capitação do respectivo agregado familiar não é superior àquele salário, porquanto a avó e a menor apenas recebem os €300,00 que a progenitora lhes envia.
Será esta interpretação do texto legal plausível?
Se em vez da avó materna a menor tivesse sido confiada a uma ama ou uma vizinha no contexto excepcional já referido e se um ou ambos os progenitores deixassem de cumprir a obrigação de alimentos que sobre eles impendia, faria algum sentido condicionar o apoio do Fundo à capitação do agregado familiar de tal pessoa? Poderá na situação configurada dizer-se que a menor “beneficia do rendimento” da terceira pessoa que assumiu a sua guarda?
E como se fará se a guarda tiver sido deferida a estabelecimento de educação ou assistência?
Devendo presumir-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9º, nº3 do CC), somos forçados a interpretar restritivamente o número 2 do transcrito artigo 3º do Decreto-Lei nº164/99, de modo a abranger apenas as situações em que a guarda é deferida aos progenitores, pois só nesse caso o alimentado beneficia dos rendimentos do agregado familiar que o tem à guarda e só nesse quadro tem sentido condicionar a intervenção do Fundo às situações em que a capitação do agregado é inferior ao SMN.
Inscreveu-se a criação do FGADM num assumido propósito de solidariedade social, visando assegurar às crianças uma vivência minimamente condigna, dando assim corpo ao desiderato constitucional vertido no artigo 69º da CRP, mas sem todavia substituir os progenitores aos quais cabe, em primeira linha, tal dever.
Não parece razoável – o que naturalmente se afirma sob ressalva do devido respeito por opinião contrária – excluir a mãe da menor do agregado familiar a que se reporta o nº 2 do artigo 3º do DL nº164/99, o que conduziria a que, nos casos em que a guarda fosse deferida a terceira pessoa (como sucede no caso vertente) se cometesse ao Fundo a responsabilidade de velar por tal dignidade mínima (por mais desafogada que seja a situação económica da progenitora da menor) com base na exiguidade dos rendimentos de quem não tem o dever de prestar alimentos.
O que acaba de expor-se quer significar que o entendimento que surpreendemos no texto legal é de que o legislador, na consideração da normalidade das situações (id quod plerumque accidit) em que o menor é entregue aos cuidados de um dos progenitores, condiciona a intervenção do Estado destinada a assegurar a dignidade da criança ao facto de a capitação do agregado familiar desse mesmo progenitor ser inferior ao SMN.
Em acórdão desta Relação de 20/11/02 (rel. Espinheira Baltar) realça-se a excepcionalidade da intervenção do Estado, ao abrigo do disposto na Lei nº75/98 e DL nº164/99, porquanto “quando o menor tem assegurada a sua subsistência no agregado familiar em que está inserido, pelo facto deste ter um rendimento superior ao salário mínimo nacional, por cabeça, nos termos do artigo 3°, n° 2 do Decreto-Lei n°164/99, o Estado não deverá intervir com esta prestação, apesar de haver incumprimento do devedor de alimentos e isto porque, primeiramente, deve intervir a família, por força dos vínculos familiares que criam deveres de alimentos.
No caso em apreço, a menor vive com os avós e a mãe, na casa destes, em economia comum, em que estes suportam as despesas, fazendo parte do mesmo agregado familiar. Daí que se tenha de ter em conta o rendimento global do agregado familiar, que se expressa no resultado da soma de todos os rendimentos, sendo que, no caso, o valor do rendimento por cabeça é superior ao salário mínimo nacional.”
Claro que no caso vertente a progenitora do menor não vive com sua mãe, pois trabalha na Suiça mas isso não opera o desmembramento do agregado familiar e, por isso o tribunal não pode deixar de relevar o rendimento de todos os seus membros.
Simplesmente, também não pode deixar de sopesar as circunstâncias concretas em que são produzidos tais rendimentos, sendo óbvio que não é igual o conforto económico de um agregado familiar que vive no país e dispõe de cerca de €1600,00 mensais (mais ou menos o valor convertido do salário da progenitora) e o da menor, cujos membros são obrigados a vivências autónomas que inviabilizam o proveito comum de despesas domésticas essenciais e a economia de escala que a vida em comum tem inerente.
Como se infere do texto legal, foi propósito do legislador condicionar a implementação da intervenção do Estado apenas às situações em que a capitação do agregado familiar a cuja guarda o menor se encontra não ultrapasse o salário mínimo nacional, limiar que por certo reputou essencial dever preservar para assegurar a dignidade dos seus membros.
Com efeito, não pareceria razoável que ao procurar garantir a dignidade existencial da criança, o Estado descurasse a do seu progenitor e irmãos (ou de quaisquer outros que integrem o agregado).
A mãe da menor aufere cerca de 1600 euros mensais (2700 francos suíços), valor que na comunidade em que está integrada equivale a uma realidade económica próxima do nosso salário mínimo, pois embora na Suiça não exista tal figura jurídica, o movimento sindical vem reclamando a sua consagração legal em 3.000 francos.
Vale isto por dizer que, cabendo-nos sopesar a capitação do agregado familiar e sendo este constituído por elementos integrados em mais de uma ordem jurídica, têm de ser ponderados os valores do salário mínimo, efectivo ou simplesmente virtual, “implicados” no respectivo rendimento.
Ora, se o salário auferido pela mãe da menor se situa ele próprio no limite do salário mínimo implícito na ordem jurídica em que presta a actividade, forçoso se torna concluir que se torna insuficiente se tem de ser partilhado, como no caso vertente, por outros elementos do agregado que não auferem qualquer rendimento.
A esta luz, o recurso tem de merecer provimento, fixando-se então a prestação a cargo do FGADM no montante de €100,00, valor que se reputa estritamente necessário à prossecução da finalidade intencionada pelo legislador e que será devido a partir do mês imediato à notificação do Fundo do teor desta decisão.
Com efeito e pese embora todo o labor jurisprudencial sobre a matéria, pensamos que tendo corrido este incidente à margem do Fundo (que até agora não foi visto nem achado sobre o encargo que sobre ele vai impender, porventura ao arrepio do que prescreve o artigo 3º do CPC), falta decisivamente um pressuposto para a aplicação analógica do disposto no artigo 2006º do CC, pois ao contrário da parte devedora de alimentos, o Fundo só por força do agora decidido ficou constituído na obrigação autónoma decretada, razão por que a prestação apenas deverá ser paga a partir do mês seguinte àquele em que lhe seja notificada esta decisão.
***
Decisão:
Face ao exposto, concede-se provimento ao agravo e fixa-se em €100,00 (cem euros) mensais a prestação a pagar pelo FGADM a Isaura Vieira Rodrigues enquanto se mantiver o incumprimento do progenitor e sem prejuízo de em Dezembro de cada ano comprovar nos autos que se mantêm os pressupostos da atribuição deste benefício e bem assim de dar a conhecer de imediato qualquer alteração da situação de incumprimento ou da situação do menor, susceptíveis de se repercutir na manutenção da prestação ou no seu quantitativo.
Sem custas.
Guimarães, 14 de Janeiro de 2008