Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
14/05-2
Relator: PEREIRA DA ROCHA
Descritores: CASA DA MORADA DE FAMÍLIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/11/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO
Sumário: 1
1- O art.º 1793.º do Código Civil, introduzido pela reforma operada pelo Decreto Lei n.º 496/77 de 25 de Novembro, visa a protecção da casa de morada de família e do cônjuge ou ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio ou pela separação quanto à estabilidade da habitação familiar, não se destinando, pois, a sancionar o culpado pelo divórcio ou a compensar o inocente, nem a nela manter ou a dela expulsar o cônjuge ou ex-cônjuge que nela está, nem a expulsar um para nela ficar o outro.
2- Nos termos do art.º 1793.º, n.º 1, do Código Civil, os factores primordiais a atender na atribuição da casa de morada de família, bem comum do casal ou bem próprio de um deles, por arrendamento a um dos ex-cônjuges, são a necessidade da casa por parte de cada um deles e o interesse dos filhos, podendo atender-se ainda à culpa dos ex-cônjuges pelo divórcio por os referidos factores não serem taxativos, como resulta da expressão legal "considerando nomeadamente", e por o atendimento do factor culpa estar expressamente previsto no art.º 84.º do RAU para atribuição da casa de morada de família arrendada nos casos de divórcio ou de separação judicial de pessoas e bens.
3-Não se apurando as concretas e actuais necessidades de cada um dos cônjuges, a casa de morada de família não deve ser atribuída, por arrendamento, ao requerente, com único fundamento de o requerido ser o culpado pelo divórcio, por não se saber se o requerente necessita da casa, se é o que mais necessita dela e se pode pagar a renda devida e por a sua atribuição com aquele único fundamento constituir uma sanção para o requerido e uma recompensa para o requerente independentemente da concreta necessidade da casa.
Decisão Texto Integral: 6
Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães. Relator: Des. Pereira da Rocha
Adjuntos: Des. Teresa Albuquerque
Des. Vieira e Cunha e

I – Relatório
Neste recurso de apelação é recorrente ... e é recorrida ....
Vem interposto da sentença proferida, em 01/10/2004, pelo Tribunal de Família e Menores de Braga, no processo de atribuição da casa de morada de família n.º 24-A/2002 da 1.ª Secção, instaurado por A... contra F..., que decidiu julgar procedente o pedido e, em consequência, atribuiu à ora Recorrida o arrendamento da casa de morada de família, composta por um rés-do-chão, destinado exclusivamente a habitação, com a área coberta de 52 m2, logradouro com a área de 118 m2, sita em ..., freguesia de ..., a confrontar do norte e nascente com terrenos de ..., do sul com caminho público e do poente com ..., inscrito na matriz sob o artigo 237, com o valor tributável de 10789$00, fazendo parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 29.090, mediante a renda mensal de € 250,00, devendo a ora Recorrida pagar ao ora Recorrente metade daquele valor até ao dia 8 do mês anterior a que disser respeito, e que o contrato de arrendamento se manteria até à partilha dos bens do casal, regulando-se o contrato no demais pelas disposições gerais do RAU.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata e com efeito suspensivo.
O Apelante finalizou as alegações do recurso com as seguintes conclusões:
a) A Recorrida não logrou provar os factos em que fundamentava a sua pretensão de atribuição da casa de morada de família.
b) Uma interpretação correcta do art.º 1793.º do Código Civil, não permite atribuir a casa de morada de família com base na culpa do cônjuge na decretação do divórcio.
c) Não foi acidental, antes foi propositada a não inclusão da culpa, como factor de atribuição da casa de morada de família, no artigo 1793.º do Código Civil, contrariamente ao indicado no art.º 84, n° 2, do RAU.
d) A douta sentença proferida, atribuindo a casa de morada da família à recorrida com base na culpa do recorrente na decretação do divórcio, é manifestamente ilegítima e sem fundamento legal.
e) Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença proferida, não se atribuindo a casa de morada da família à recorrida.
A Apelada contra-alegou, concluindo pelo improvimento do recurso e pela consequente manutenção da sentença impugnada.
Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir, em conferência.
São as conclusões das alegações do recorrente que fixam e delimitam o objecto do recurso e, por conseguinte, as questões a decidir, sem prejuízo da ampliação pelo recorrido do âmbito do recurso nos termos do art.º 684.º-A do CPC e de conhecimento de questões oficiosas(cfr. art.º 684.º, n.º 3, e 690.º e 660.º, n.º 2, este por remissão do art.º 713.º, n.º 2, do CPC).
Não se vislumbra a existência de qualquer questão de conhecimento oficioso e, atentas as conclusões das alegações do Recorrente, as questões a decidir consistem em saber se a Recorrida não logrou provar os factos em que fundamentava a sua pretensão de atribuição da casa de morada de família e se esta não deveria ter sido atribuída à Recorrida com fundamento no factor culpa do Recorrente pela decretação do divórcio litigioso entre ambos e se em consequência deve ser revogada a sentença recorrida.
II - Fundamentação
1 - Factos a considerar
a) - A sentença recorrida, proferida em 01/10/2004, considerou assente a seguinte factualidade, que não foi impugnada:
1. Requerente e requerido contraíram casamento canónico, sem precedência de convenção antenupcial, no dia 18 de Março de 1979;
2. Na constância do matrimónio nasceram os filhos F... e G...;
3. Por sentença datada de 18 de Março de 2003 foi decretado o divórcio entre as partes, com a consequente dissolução do casamento, com culpa exclusiva do aqui requerido;
4. Requerente e requerido continuam a viver na casa de morada de família, que foi por ambos adquirida, através de escritura de compra e venda outorgada no 20.º Cartório Notarial de Braga em 24 de Janeiro de 1992;
5. Tal casa é composta por um rés-do-chão, destinado exclusivamente a habitação, com a área coberta de 52 m2, logradouro com a área de 118 m2, sita em ..., freguesia de ..., a confrontar do norte e nascente com terrenos de ... do sul com caminho público e do poente com ..., inscrito na matriz sob o artigo 237, com o valor tributável de 10789$00, fazendo parte do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 29.090;
6. Actualmente, o requerido continua a perturbar a requerida, nomeadamente impedindo-a de dormir devido ao barulho que faz;
7. Em virtude dessa situação, não se torna viável que requerente e requerido continuem a habitar a mesma casa;
8. Dos filhos do casal, o F... trabalha na PSP por forma a obter rendimentos para custear o seu curso universitário, sendo que apenas a mãe o auxiliava economicamente;
9. O G.... continua a residir permanentemente na casa de morada de família, sendo que o F... pernoita na mesma nos dias de folga;
10. Após o divórcio o comportamento do pai melhorou, sendo que compra comida para si que também é utilizada pelos filhos;
11. As despesas com água e luz são suportadas pelo requerido;
12. O requerido sofreu um acidente de trabalho, tendo já recebido uma indemnização da companhia de seguros e aguardando uma outra indemnização, tendo estado de baixa médica;
13. Em caso de arrendamento a casa de morada de família teria uma renda de cerca de 250 €.
2 - Análise das questões e sua solução
Para atribuição da casa de morada de família, a ora Recorrida alegou, fundamentalmente: ser a casa de morada de família bem comum dos ex-cônjuges; manter-se como habitação de ambos e dos seus dois filhos comuns; um dos filhos ser de maioridade e o outro menor de 16 anos; aquele estudar na Universidade, este na escola secundária, estando ambos a seu exclusivo encargo; o ora Recorrente não contribuir para o sustento deles nem para o seu; ter uma condição económica muito modesta e encontrar-se actualmente desempregada; o ora Recorrido viver desafogadamente, não ter qualquer necessidade da casa de morada de família, e nela perturbar o seu sossego e o dos filhos de ambos.
Comparando estes factos com os considerados provados pela decisão recorrida, verifica-se não se haver provado a alegada dependência económica dos filhos do casal, agora ambos de maioridade, relativamente à ora Recorrida, nem a situação económica dela nem a do ora Recorrente, nem deste não ter qualquer necessidade da casa de morada de família.
No entanto, a providência de atribuição da casa de morada de família a um dos ex-cônjuges pode ser decidida com matéria de facto não alegada pelo requerente ou pelo requerido.
Na verdade, tal providência, embora sujeita ao princípio do pedido(cfr. art.º 1793.º, n.º 1, do CC e 3.º, n.º 1, do CPC), tem a natureza de jurisdição voluntária, pelo que o tribunal pode investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar inquéritos e recolher as informações convenientes(cfr. art.ºs 1409.º, n.º 2, e 1413.º do CPC), em consequência do que o ónus de alegação pelos interessados dos factos necessários à decisão da providência, bem como a sua prova, possam ser oficiosamente supridos.
Além disso, o tribunal pode decidir o mérito da mesma por critérios de oportunidade e de conveniência e não por critérios de legalidade estrita(cfr. art.º 1410.º do CPC).
O predomínio, nos processos de jurisdição voluntária, dos referidos princípios do inquisitório sobre o dispositivo e da equidade sobre a legalidade decorre dos mesmos se caracterizarem, em geral, pela inexistência de um conflito de interesses a compor e pela existência de um só interesse a regular, embora podendo haver um conflito de opiniões ou representações acerca do mesmo interesse(cfr. Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1993, pág. 72).
Flui do antedito não ser decisivo, para a aferição da procedência ou da improcedência da requerida atribuição da casa de morada de família, o facto da ora Recorrida não haver logrado provar os factos em que fundamentou a sua pretensão, sendo, para o efeito, decisiva a matéria de facto dada por provada pelo tribunal «a quo», ainda que por indagação oficiosa.
Passemos, pois, à análise da subsequente questão suscitada pelo Recorrente, consistente em saber se a sentença recorrida não deveria ter atribuído a casa de morada de família à Recorrida com fundamento no factor culpa exclusiva do Recorrente pela decretação do divórcio litigioso entre ambos e se em consequência deve ser revogada.
Como fundamentação jurídica, a sentença recorrida, consignou, essencialmente, o seguinte:
«O artigo 1793°, n.º 1 do C. Civil- aplicável às situações em que a casa de morada de família é bem comum ou próprio de um dos cônjuges - determina que "pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer essa seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal. "
Tratando-se a casa aqui em discussão um bem comum dos cônjuges - foi adquirida por ambos na constância do matrimónio -(artigo 1724°, b) do C. Civil- é este o preceito aqui aplicável.
Segundo a lição dos Profs. Guilherme de Oliveira e Pereira Coelho, em "Curso de Direito de Família", VoI. I, 3.ª edição, pág. 721, os critérios do artigo 84°, n.º 2 do RAU devem ser também levados em conta nesta situação.
Desses critérios destacamos "a situação patrimonial dos cônjuges", "as circunstâncias de facto relativas à ocupação da casa"; "a culpa imputada ao arrendatário na separação ou divórcio", adaptando-se este critério ao caso em que as partes são proprietários da casa.
Resumindo estes critérios aqueles ilustres professores concluem que o critério geral na atribuição da casa deve ser o seguinte: qual o cônjuge que mais precisa da casa sendo que, em caso de igualdade, deve atender-se à culpa na separação ou divórcio págs. 726 e 727.
No caso dos autos não ficou definido, com rigor, qual dos cônjuges terá uma situação melhor, economicamente, do que o outro sendo que, quanto aos filhos, ambos maiores, apenas podemos concluir que continuam a habitar a casa mas já com alguma [in]dependência - principalmente o mais velho.
Ora, neste caso, não podendo definir com certeza qual o cônjuge que mais precisa dela, utilizaremos o critério do desempate, ou seja o critério da relevância da culpa no divórcio que, neste caso, foi atribuída ao réu.
Assim sendo, e sem necessidade de mais delongas, o arrendamento da casa de morada de família será atribuído à requerida.»
Vejamos.
Conforme extracto supra, a sentença recorrida, por a matéria de facto provada lhe não permitir afirmar qual dos ex-cônjuges mais precisava da casa de morada de família por indefinição da sua situação económica e por os filhos comuns serem maiores, utilizou o facto do ora Recorrente haver sido declarado o exclusivo culpado pelo divórcio, previsto, para o efeito no art.º 84.º, n.º 2, do RAU, para decidir a providência a favor da ora Recorrida, dizendo seguir o ensinamento dos Profs. Guilherme de Oliveira e Pereira Coelho, em "Curso de Direito de Família", VoI. I, 3.ª edição, pág. 721, para adoptar esta solução jurídica.
Contrapõe o Recorrente que a solução jurídica deve ser a oposta, com a improcedência da providência, seguindo o ensinamento dos Prof.s Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª edição, Coimbra Editora, em comentário ao art.º 1793.º, onde afirmam: confrontando esta referência reduzida a dois factores com o rol das circunstâncias atendíveis contido no lugar paralelo do art.º 84.º, n.º 2, do Regime de Arrendamento Urbano, forçoso é concluir que não foi puramente acidental a omissão, no n.º 1 do artigo 1793.º, da chamada da culpa dos cônjuges na decretação do divórcio à galeria das circunstâncias atendíveis na resolução da contenda.
Conforme se verificou pela consulta das Obras citadas, há efectivamente uma divergência doutrinária entre os referidos Autores, quanto ao atendimento ou não atendimento da culpa pelo divórcio na atribuição da casa de morada de família, quando esta seja bem comum dos ex-cônjuges ou bem próprio de um deles.
O art.º 1793.º, n.º 1, do CC, como decorre da expressão considerando nomeadamente, refere as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos como factores não taxativos a atender para a atribuição da casa de morada de família, pelo que se nos afigura legalmente viável o recurso ao factor culpa no divórcio expressamente previsto no art.º 84.º do RAU para transmissão do contrato de arrendamento nos casos de divórcio e de separação judicial de pessoas e bens.
No entanto, por expressa designação do legislador no n.º 1 do art.º 1793.º do CC, os factores primordiais a atender são as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos.
Segundo o ensinamento dos Prof.s Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, em pág. 726/727 da Obra citada pela sentença recorrida, o tribunal deve atribuir o direito de arrendamento da casa de morada de família ao cônjuge que mais precise dela, necessidade esta a inferir, por exemplo, da sua situação económica líquida, do interesse dos filhos, da idade e do estado de saúde dos cônjuges ou ex-cônjuges, da localização da casa em relação aos seus locais de trabalho, da possibilidade de disporem doutra casa para residência, e que só quando as necessidades de ambos os cônjuges ou ex-cônjuges forem iguais ou sensivelmente iguais haverá lugar para considerar a culpa que possa ser ou tenha sido efectivamente imputada a um ou a outro na sentença de divórcio ou separação judicial de pessoas e bens.
O art.º 1793.º do CC, introduzido pela reforma operada pelo DL 496/77 de 25/11, visa a protecção da casa de morada de família e do cônjuge ou ex-cônjuge que mais seria atingido pelo divórcio ou pela separação quanto à estabilidade da habitação familiar, não se destinando, pois, a sancionar o culpado pelo divórcio ou a compensar o inocente, nem a nela manter ou dela expulsar o cônjuge ou ex-cônjuge que nela está, nem a expulsar um para nela ficar o outro(cfr. Guilherme de Oliveira e Pereira Coelho, em "Curso de Direito de Família", VoI. I, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2003, pág. 720, 725 e 726, e Pires de Lima e Antunes Varela, em Código Civil Anotado, vol. IV, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 569/571, em comentário ao art.º 1793.º, ac. R.E: de 24/02/94, em CJ XIX, 1, 286, e ac. do STJ de 16/12/99 em www.dgsi.pt).
No caso em apreço, atenta a factualidade provada, os ex-cônjuges e os dois filhos maiores de ambos permanecem a habitar na casa de morada de família, bem comum do dissolvido casal, não se tendo apurado a situação económica de cada um dos ex-cônjuges, nem a sua possibilidade para obtenção doutra residência, o que se traduz na falta de prova das necessidades habitacionais de cada um dos ex-cônjuges.
Perante esta falta de prova, o Tribunal «a quo», com fundamento na culpa exclusiva do ora Recorrente no divórcio, decidiu atribuir à ora Recorrida a casa de morada de família, mediante contrato de arrendamento pela retribuição mensal ao Recorrente de €125.
Ora, não se apurando as concretas e actuais necessidades de cada um dos ex-cônjuges, torna-se inviável a atribuição da casa de morada de família à Recorrida, por não se saber ser ela a mais necessitada dela, de poder pagar a renda que lhe foi fixada e da sua atribuição com o único fundamento na culpa pelo divórcio se traduzir numa sanção para o Recorrente e numa recompensa para a Recorrida independentemente da concreta necessidade de cada um da casa de morada de família, donde proceder o recurso.
III - Decisão
Pelo exposto decide-se julgar procedente o recurso e revoga-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrida.
Guimarães, 11/07/2005.
Pereira da Rocha
Teresa Albuquerque
Vieira e Cunha