Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1339/08-1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: CULPA
PESSOA COLECTIVA
RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – Dispõe o art. 3 do Dec.-Lei 28/84 de 20-1 que:
1 - “As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo.
2 – A responsabilidade é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito”.
II – Trata-se de um afloramento do princípio válido mesmo no direito penal secundário, de que não existe responsabilidade penal sem culpa.
III – Conforme refere o Prof. Figueiredo Dias, em “Sobre o Fundamento, o Sentido e a Aplicação das Penas em Direito Penal Económico” in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Coimbra Editora, 1998, vol. I, pag.381: é de rejeitar a ideia de que “no direito penal económico a condenação deve ter lugar, sempre ou as mais das vezes, independentemente de culpa, ou em função de uma simples censura objectiva do facto, ao estilo da doutrina dos jus deserts”, valendo isto também para as pessoas colectivas pois, “através dum pensamento analógico pode e deve considerar-se as pessoas colectivas (no direito penal económico e diferentemente no que deve suceder no direito penal geral) como capazes de culpa”,
IV – Aliás, já há muito ensinava o Prof. Manuel de Andrade que “se a noção de culpa é inaplicável às pessoas colectivas, quando tomada ao pé da letra, como culpa dessas próprias pessoas, visto lhes faltar a personalidade real ou natural, já se concebe que possa falar-se de culpa de uma pessoa colectiva no sentido de culpa dos seus órgãos ou agentes” - citado no mesmo volume por Lopes Rocha, pág. 441.
V – Isto é, a pessoa colectiva, sob pena de o seu comportamento poder ser censurado, é obrigada, através dos seus órgãos ou representantes, a organizar as suas actividades económicas (e outras) de modo adequado a, segundo critérios de normalidade, prevenir violações das normas legais, mas não lhe é exigível que monte uma organização que impeça ou neutralize toda e qualquer possibilidade de os seus agentes ou funcionários, actuando ao arrepio de instruções expressas, violarem normas legais, nomeadamente do direito penal económico já que nesses casos, porque nenhuma culpa lhe pode ser assacada, a sua responsabilidade é excluída, sendo este alcance da citada norma do nº 2 do art. 3 do Dec.-Lei 28/84.
VI – Ora, os factos provados que não se mostram impugnados, demonstram que a arguida sociedade teve um comportamento cautelar adequado a, segundo critérios de normalidade, prevenir a ocorrência dos factos, pois para além de, genericamente, ter instruído os gerentes das suas unidades hoteleiras para terem o máximo rigor e exigência relativamente ao funcionamento do sector de cozinha, tendo estabelecido uma cadeia hierárquica que e implementou, sendo certo que se houve falhas no controle, elas talvez pudessem ser imputadas a um dos elos dessa cadeia por não se certificar que o responsável máximo da cozinha cumpria o determinado.
VII - Traduzindo-se a culpa, sempre, num juízo de censura concreto, por alguém ter tido determinado comportamento, quando podia e devia ter agido de modo diverso (Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, pág. 316), perante aquele conjunto de factos, que o tribunal considerou provados, não se vê que outras medidas concretas podiam razoavelmente ser exigidas à sociedade arguida que não contendessem com critérios de racionalidade de gestão económica) para evitar o resultado, pois que numa empresa, o normal é as pessoas cumprirem, devendo naturalmente, ser previstos mecanismo mínimos de controle que se mostravam implementados.
VIII - Tem, assim, sociedade arguida de ser absolvida, porque a sua condenação corresponderia à aceitação da responsabilidade criminal objectiva, quando é certo que, mesmo neste campo do direito penal, “a culpa constitui um dos fundamentos irrenunciáveis da aplicação de qualquer pena” – Figueiredo Dias, obra citada, pago 378.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

No 1º Juízo do Tribunal Judicial de Guimarães, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc. 2/05.0EAPRT), foi proferida sentença que absolveu os arguidos MARIA M..., MANUEL P...E GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A. da prática de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, p. e p. pelo art.º 24º, n.os 1, al. c), 3 e 4, e, no tocante à sociedade, pelos artigos 3º e 7º, todos do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20/01, com referência ao artigo 82º, n.os 1, al. b), e 2, al. c), do mesmo diploma legal.
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Desta sentença interpôs recurso o magistrado do MP junto do tribunal recorrido, visando a condenação dos arguidos MANUEL P...e GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A..

Invoca a existência do vício do erro notório na apreciação da prova (art. 410 nº 2 al. c) do CPP) e impugna a decisão sobre a matéria de facto. Alterada esta, deverá decidir-se a condenação destes arguidos.

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Respondendo, os arguidos MANUEL P...e GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A defenderam a improcedência do recurso.
Nesta instância o sr. procurador geral adjunto emitiu parecer no sentido do recurso merecer provimento.

Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


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I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição):

1- A arguida “GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A.”, no exercício da sua actividade, explora o estabelecimento de hotelaria denominado Pousada de Santa M... , sito no Largo Domingos Leite de Castro, Guimarães;
2- A arguida Maria C... , por nomeação do Conselho de administração da arguida sociedade, é a directora desta pousada, e, por força destas funções, exerce em nome e representação daquela todos os poderes relacionados com a gestão corrente da mencionada unidade hoteleira, em cujo âmbito se incluem, entre outras coisas, as ordens, distribuição de tarefas, orientações e fiscalização da actividade exercida pelos demais trabalhadores, designadamente e no que ao sector da cozinha respeita, as relacionadas com aquisição, acondicionamento e conservação dos produtos alimentares para confecção das refeições a servir aos respectivos clientes;
3- O arguido Manuel, na qualidade de cozinheiro e enquanto responsável máximo do sector da cozinha, tinha também por função, no cumprimento das ordens e sob a fiscalização da arguida Maria C... , providenciar pela efectiva manutenção em estado de conservação e de salubridade dos géneros alimentícios a confeccionar;
4- No dia 04.01.2005, pelas 12,00 horas, no decurso de uma acção de fiscalização à Pousada de Santa M... , sita no Largo Domingos Leite de Castro, em Guimarães, uma brigada da I.G.A.E. no exercício das suas funções encontrou a e apreendeu 1,250 kg de lombo de porco congelado, 3,600 kg de secretos de porco congelado e 1,300 kg de carne de vitela congelada, que estavam num carrinho de serviço, no interior da cozinha desta unidade hoteleira;
5- Todas estas quantidades de carne, apresentavam-se queimadas pelo frio devido ao longo tempo de congelação e com as gorduras rançosas e, por via disso, anormais e impróprias para o consumo humano por avaria, embora o seu consumo não fosse passível de criar perigo para a vida ou integridade física alheias;
6- As mencionadas quantidades de carne apreendidas, apesar de deterioradas, estavam na altura pousadas no mesmo local que outras carnes em bom estado sanitário;
7- O arguido Manuel P... tinha conhecimento do estado de deterioração em que se encontravam as mencionadas quantidades de carne e da sua impropriedade enquanto bens alimentares para o consumo das pessoas;
8- A arguida Maria C... , enquanto directora da Pousada, exerce as funções de gestão e representação da mesma, nomeadadamente de supervisão e controlo do funcionamento da Pousada, designadamente a gestão do pessoal, o controlo financeiro e administrativo, área comercial e de marketing, entre outras;
9- No âmbito das suas funções, compete-lhe, entre muitas outras tarefas específicas:
- definir a estratégia da unidade hoteleira;
- despachar e/ou responder às solicitações da Administração;
- definir os preços, verificar os custos, as margens e os proveitos;
- analisar a informação produzida pela contabilidade;
- promover as acções necessárias para comercialização do estabelecimento;
- acompanhar a evolução das vendas, propor e avaliar acções de publicidade;
- gerir todo o pessoal, dando execução às políticas do Grupo Pestana, seleccionar admissões, controlar o desempenho dos trabalhadores, determinar níveis remuneratórios, etc.;
- promover as medidas necessárias para formação das chefias de cada departamento;
- controlar pagamentos, celebrar e executar contratos, designadamente nas áreas de segurança, informática, património.
10- Na dependência da arguida trabalhavam no estabelecimento hoteleiro em causa cerca de 30 trabalhadores;
11- No que se refere ao sector da cozinha, a arguida delegou no arguido Manuel P..., enquanto chefe de cozinha, a actividade de aquisição, acondicionamento e conservação dos alimentos, para confecção das refeições;
12- Cabia ao chefe máximo da cozinha a fiscalização do estado de conservação dos produtos alimentares, o controlo dos prazos de validade dos produtos perecíveis, e o adequado acondicionamento dos diversos produtos alimentares;
13- A arguida instruiu expressamente o arguido para inspeccionar diariamente, de forma rigorosa, o estado de conservação, o prazo de validade e o acondicionamento dos produtos alimentares, que o mesmo adquiria e mantinha no sector da cozinha;
14- Instruiu-o também para inutilizar os produtos alimentares que atingissem o termo de validade ou que se encontrassem em mau estado de conservação;
15- Enquanto chefe do sector da cozinha, o arguido encontrava-se em condições para efectuar o referido controlo e fiscalização sobre os produtos alimentares, dado o contacto diário e repetido com os mesmos, e, por outro lado, a maior sensibilidade para os géneros alimentícios;
16- No cumprimento das suas funções, o arguido procedeu, no dia 04.01.2005, à inventariação dos géneros alimentícios acondicionados na câmara frigorífica;
17- Na sequência disso, verificou que se encontravam queimados pelo frio 1,250 kg de lombo de porco congelado, 3,600 kg de secretos de porco congelado e 1,300 kg de carne de vitela congelada;
18- Retirou imediatamente da câmara frigorífica aqueles alimentos para proceder à sua inutilização;
19- Aquando da chegada da brigada de fiscalização da IGAE, já o arguido, na sequência da inventariação realizada aos alimentos existentes na câmara frigorífica, para verificação do seu estado de conservação e acondicionamento, tinha retirado os produtos acima referidos da câmara frigorífica, por se encontrarem em mau estado de conservação, tendo-os colocado em local bem visível, com vista à sua inutilização e/ou destruição;
20- A data aposta nos mesmos, a saber, lombo de porco: 03.10.2003 e secretos de porco: 04.10.2003 correspondia à data de congelação, sendo o prazo de validade para consumo daqueles alimentos de aproximadamente um ano e meio, contado da data de congelação;
21- O arguido retirou as três carnes em questão da câmara frigorífica para as inutilizar de imediato, e não para proceder à confecção de refeições para serem servidas aos clientes da Pousada;
22- Não guardou tais carnes para a preparação de refeições destinadas ao público;
23- A arguida Maria C... desconhecia em absoluto o estado de deterioração em que se encontravam as carnes apreendidas;
24- A arguida GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A instruiu sempre os gerentes das diversas unidades hoteleiras, no sentido da implementação da máxima qualidade, como forma de promoção e consolidação da sua imagem junto dos clientes;
25- No que à confecção de refeições especificamente respeita, sempre transmitiu aos gerentes das unidades hoteleiras para terem o máximo rigor e exigência relativamente ao funcionamento do sector de cozinha, nomeadamente para que os chefes de cozinha procedam sempre a uma rigorosa fiscalização da conservação dos alimentos, retirando de imediato os produtos avariados ou impróprios para consumo, e procedendo à sua inutilização;
26- Ordens e instruções expressas transmitidas pela sociedade arguida, que a arguida Maria C... implementou e o arguido Manuel P... acatou ao proceder regularmente à inventariação e ao controlo dos alimentos que se encontravam na arca frigorífica;
27- Os arguidos não são portadores de antecedentes criminais;
28- A arguida Maria C... é assessora operacional para as Pousadas;
29- É divorciada;
30- Tem um filho a seu cargo, com 16 anos;
31- Não tem encargos com a habitação;
32- O arguido Manuel P... é chefe de cozinha;
33- É viúvo;
34- Tem um filho a seu cargo;
35- Reside em casa arrendada, pagando cerca de 15 € de renda mensal.

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Considerou-se não provado que:

- que a carne apreendida não estava por qualquer forma acondicionada ou rotulada;
- que a data limite de consumo da carne de porco apreendida fosse de 03/10/2003 e 04/10/2003;
- que estavam sobejamente ultrapassados os prazos para o consumo do lombo e secretos de porco;
- que a arguida Maria C... tinha perfeito conhecimento do estado de deterioração em que se encontravam as mencionadas quantidades de carne e da sua impropriedade enquanto bens alimentares para o consumo das pessoas e não se coibiu de as guardar para a preparação de refeições destinadas ao público;
- que o arguido Manuel P... não se coibiu de as guardar para a preparação de refeições destinadas ao público;
- que a carne apreendida se destinava a ser utilizada pelos arguidos na confecção de refeições que iriam ser servidas aos clientes da Pousada Santa M... e por estes consumidas, o que só não aconteceu devido à intervenção da brigada da I.G.A.E.;
- que os arguidos, nos termos referidos, agiram de vontade livre e consciente, bem sabendo que esta conduta não era permitida.

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FUNDAMENTAÇÃO
I – A condenação da arguida GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A.
O magistrado recorrente pede a condenação desta arguida.
Impugna a decisão sobre a matéria de facto, mas, entre os factos que impugna, não se encontram os provados sob os nºs 24, 25 e 26, dos quais consta:
24 – “A arguida GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A instruiu sempre os gerentes das diversas unidades hoteleiras, no sentido da implementação da máxima qualidade, como forma de promoção e consolidação da sua imagem junto dos clientes”;
25 – “No que à confecção de refeições especificamente respeita, sempre transmitiu aos gerentes das unidades hoteleiras para terem o máximo rigor e exigência relativamente ao funcionamento do sector de cozinha, nomeadamente para que os chefes de cozinha procedam sempre a uma rigorosa fiscalização da conservação dos alimentos, retirando de imediato os produtos avariados ou impróprios para consumo, e procedendo à sua inutilização”;
26 – “Ordens e instruções expressas transmitidas pela sociedade arguida, que a arguida Maria C... implementou e o arguido Manuel P... acatou ao proceder regularmente à inventariação e ao controlo dos alimentos que se encontravam na arca frigorífica”.
Talvez o magistrado recorrente tenha o entendimento de que no direito penal económico pode existir uma responsabilidade penal objectiva, independente de culpa, por parte das pessoas colectivas. No caso, feita a prova de que a carne deteriorada se destinava ao consumo, então a arguida GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A seria objectivamente responsável por esse facto. É um entendimento que perpassa toda a fase de inquérito, pois nenhum esforço de investigação foi feito para, em concreto, determinar a responsabilidade desta arguida na ocorrência dos factos.
Vejamos, porém:
Dispõe o art. 3 do Dec.-Lei 28/84 de 20-1:
1 – “As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo.
2 – A responsabilidade é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito”.
Trata-se de um afloramento do princípio, válido mesmo no direito penal secundário, de que não existe responsabilidade penal sem culpa.
É de rejeitar a ideia de que “no direito penal económico a condenação deve ter lugar, sempre ou as mais das vezes, independentemente de culpa, ou em função de uma simples censura objectiva do facto, ao estilo da doutrina dos jus deserts”, valendo isto também para as pessoas colectivas pois, “através dum pensamento analógico pode e deve considerar-se as pessoas colectivas (no direito penal económico e diferentemente no que deve suceder no direito penal geral) como capazes de culpa” – Prof. Figueiredo Dias, Sobre o Fundamento, o Sentido e a Aplicação das Penas em Direito Penal Económico in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Coimbra Editora, 1998, vol. I, pag.381.
Aliás, já há muito ensinava o Prof. Manuel de Andrade que “se a noção de culpa é inaplicável às pessoas colectivas, quando tomada ao pé da letra, como culpa dessas próprias pessoas, visto lhes faltar a personalidade real ou natural, já se concebe que possa falar-se de culpa de uma pessoa colectiva no sentido de culpa dos seus órgãos ou agentes” – citado no mesmo volume por Lopes Rocha, pag. 441.
Isto é, a pessoa colectiva, sob pena de o seu comportamento poder ser censurado, é obrigada, através dos seus órgãos ou representantes, a organizar as suas actividades económicas (e outras) de modo adequado a, segundo critérios de normalidade, prevenir violações das normas legais. Mas não lhe é exigível que monte uma organização que impeça ou neutralize toda e qualquer possibilidade de os seus agentes ou funcionários, actuando ao arrepio de instruções expressas, violarem normas legais, nomeadamente do direito penal económico. Nesses casos, porque nenhuma culpa lhe pode ser assacada, a sua responsabilidade é excluída. É este o alcance da citada norma do nº 2 do art. 3 do Dec.-Lei 28/84.
Ora, os factos provados acima transcritos, que o magistrado recorrente não impugna, demonstram que a arguida GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A teve um comportamento cautelar adequado a, segundo critérios de normalidade, prevenir a ocorrência dos factos. Para além de, genericamente, ter instruído os gerentes das suas unidades hoteleiras para terem o máximo rigor e exigência relativamente ao funcionamento do sector de cozinha, no caso estabeleceu uma cadeia hierárquica, que a directora da Pousada de Santa M... (a arguida Maria C... ) implementou. Se houve falhas no controle, elas talvez pudessem ser imputadas à Maria C... , por não se certificar que o responsável máximo da cozinha cumpria o determinado.

Traduzindo-se a culpa, sempre, num juízo de censura concreto, por alguém ter tido determinado comportamento, quando podia e devia ter agido de modo diverso (Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, pag. 316), perante aquele conjunto de factos, que o tribunal considerou provados, não se vê que outras medidas concretas podiam razoavelmente ser exigidas ao GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A (que não contendessem com critérios de racionalidade de gestão económica) para evitar o resultado. Numa empresa, o normal é as pessoas cumprirem. Devem, naturalmente, ser previstos mecanismos mínimos de controle, mas estes resultavam da implementação por parte da arguida Maria C... das instruções recebidas.

Tem, assim, esta arguida que ser absolvida, porque a sua condenação corresponderia à aceitação da responsabilidade criminal objectiva. Mesmo neste campo do direito penal, “a culpa constitui um dos fundamentos irrenunciáveis da aplicação de qualquer pena” – Figueiredo Dias, obra citada, pag. 378.

Improcede, pois o recurso quanto a esta arguida.
II – A condenação do arguido Manuel P...
a) O vício do erro notório na apreciação da prova – art. 410 nº 2 al. c) do CPP
Este vício, como aliás, todos os do art. 410 nº 2 do CPP, tem forçosamente que resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum. “Trata-se de um erro de que o homem médio, suposto pelo legislador, facilmente se dá conta mediante a leitura da decisão recorrida e não com recurso a elementos a ela estranhos”. (...) “O erro notório só existe quando determinado facto provado é incompatível, ou irremediavelmente contraditório, com outro facto contido no texto da decisão, em termos de as conclusões desta surgirem como intoleravelmente ilógicas” - , por todos v. ac. STJ de 29-2-96, Revista de Ciência Criminal ano 6 pag. 55 e ss.
Nesta parte, verdadeiramente, o magistrado recorrente não aponta qualquer incoerência lógica à sentença. A contradição não estaria na sentença, mas na defesa do arguido Manuel P.... As declarações deste seriam contraditórias ao, por um lado, manifestar dúvidas sobre o facto da carne estar imprópria para consumo e, por outro, declarar que a mesma estava destinada ao lixo. Cita-se: “Como se pode compreender que alguém destinaria uma carne para ser inutilizada porque imprópria para consumo, quando vem contrariar o resultado pericial que afirma precisamente que tal carne está imprópria para consumo?”.
Pouco há a dizer sobre esta argumentação, que extravasa o âmbito do vício invocado. Talvez apenas referir que não há princípio do processo penal que imponha a condenação do arguido no caso de este invocar factos fantasiosos, ou for incoerente ou desajeitado na sua defesa. Mesmo nesses casos, o juiz pode (e deve) valorar aquilo que ele disser que seja pertinente. Como ensinava o prof. Enrico Altavilla “o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras” – Psicologia Judiciária, vol. II, 3ª ed. pag. 12.

Ainda assim, diga-se que não existe contradição insuperável na postura deste arguido. Ele pode ter destinado a carne para o lixo por ter dúvidas quanto à sua qualidade. Confrontado, porém, com a acusação da carne ser imprópria para consumo, pode querer questionar a consistência da prova quanto a tal facto.
b) A impugnação da decisão sobre a matéria de facto
O essencial do recurso centra-se na impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
A questão está em saber se as três peças de carne se destinavam ao lixo ou a serem confeccionadas e consumidas na Pousada de Santa M... .
A Relação nunca faz um novo julgamento da matéria de facto, decidindo, através da consulta do registo da prova e dos elementos dos autos, quais os factos que considera «provados» e «não provados». Como escreveu o Prof. Germano Marques da Silva, talvez o principal responsável pelas alterações introduzidas no CPP pela Lei 59/98 de 25-8, “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância” – Forum Justitiae, Maio/99. É que “o julgamento a efectuar em 2ª instância está condicionado pela natureza própria do meio de impugnação em causa, isto é, o recurso… Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…” – ac. TC de 18-1-06, DR, iiª série de 13-4-06.
Por isso é que as als. a) e b) do nº 3 do art. 412 do CPP dispõem que a impugnação da matéria de facto implica a especificação dos «concretos» pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados e das «concretas» provas que impõem decisão diversa (é mesmo este o verbo - «impor» - utilizado pelo legislador). É que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução.

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A sentença analisou de forma de forma exaustiva os diversos depoimentos, apontando escrupulosamente as razões que levaram o sr. juiz a um estado de dúvida sobre o real destino das peças de carne.
Refere os fundamentos que poderiam levar à condenação: “há indícios fortes de que a carne poderia destinar-se ao consumo público. Encontrava-se no interior da cozinha, juntamente com outra carne em bom estado de conservação, apresentando sinais de estar em descongelação há aproximadamente, 3 horas”.
Mas indica também os elementos que apontam em sentido contrário, que são:
1) A data em que ocorreu a inspecção – início do ano. Nesse dia estava a ser feita a inventariação dos géneros alimentícios acondicionados na câmara frigorífica (facto nº 16), o que explica que a carne estivesse fora daquela câmara. “É no início do ano civil que é feito um inventário mais rigoroso das existências das empresas, pelo que é natural que a retirada da carne apreendida da câmara frigorífica tenha coincidido com a inspecção realizada pela IGAE”.
2) O momento em que ocorreu a inspecção – quando se confeccionava o almoço. “É natural que a preocupação das pessoas que estavam a trabalhar na cozinha estivesse dirigida para outro tipo de acções, mais do que em eliminar produtos”.
3) A carne de porco apreendida não constar das ementas. Se não ia ser servida, então, uma razão plausível para a carne estar fora da arca frigorífica era ter a inutilização como destino; e
4) Não terem sido encontrados outros produtos em mau estado de conservação, para além dos apreendidos. Se houvesse a intenção de aproveitar a carne avariada, o normal seria distribuí-la por diversas refeições, dessa forma disfarçando melhor a falta de qualidade.
Na motivação do recurso não se contesta a existência destes elementos. Entende-se é que, apesar deles, o senhor juiz não devia ter tido dúvidas quanto à condenação. Porém, o relevante é a existência de dúvidas no espírito do julgador e não no do MP, do assistente, ou do arguido, sujeitos condicionados pelas suas específicas posições processuais.
Não significa isto que não seja possível contestar o estado de dúvida do juiz em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto. O art. 127 do CPP indica dois pilares a considerar na ponderação da prova: as «regras da experiência» e a livre convicção do julgador. A convicção do julgador não pode colidir com as regras da experiência. Mas nenhuma regra da experiência comum foi violada, por exemplo, na ponderação de que os produtos podiam não ter o destino do consumo porque a carne de porco não constava das ementas.
Talvez a prova também fosse suficiente para fundamentar a condenação. Esse, porém, é o campo por excelência da livre convicção do julgador. No caso, confrontado com elementos de prova de sentido divergente, o sr. juiz, que recebeu a prova com oralidade e imediação, ficou com dúvidas. Não tinha outro caminho senão manifestá-las na sentença e absolver. Como já acima se disse, a Relação nunca faz um novo julgamento da matéria de facto, pois o recurso em matéria de facto constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância. Um desses vícios poderá ser a não ponderação das «regras da experiência» pelo tribunal a quo. Pelas razões apontadas, não se demonstrou terem sido violadas tais regras.
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Decidiu-se no acórdão do STJ de 12-10-2000, Proc. 2003/00, 5ª Secção Dinis Alves:
I – (…)
II – A paráfrase in dubio pro reo não é actualmente um simples brocado, adágio ou aforismo, mas um princípio básico do direito processual probatório: existindo um laivo de dúvida, por mínimo que seja, sobre a veracidade de um facto em que se alicerça uma imputação delituosa, ninguém pode ser condenado com base nesse facto.
III - Quando existir uma réstia de dúvida, não pode haver punição: isto é, a punição somente pode verificar-se, quando o julgador adquirir ou formar a convicção da certeza da imputação feita ao acusado, com base nas provas produzidas.
IV – Se essa convicção de certeza não corresponder à realidade, não se afronta, ipso facto, o referido princípio, mas incorre-se em erro judiciário”.
Ora, o julgador foi confrontado com uma dúvida intransponível quanto à prática dos factos criminosos. Como se disse, laboriosamente deixou expresso o porquê das suas dúvidas, todos ficando a saber porque é que, efectivamente, uma certeza quanto à imputação não se verificou.
Os princípios vigentes em processo penal são para serem aplicados quando as situações os reclamam.
Nenhuma censura merece a aplicação do in dubio pro reo.

DECISÃO
Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso confirmando a sentença recorrida.

Sem custas nesta instância.