Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | FERNANDO MONTERROSO | ||
Descritores: | CULPA PESSOA COLECTIVA RESPONSABILIDADE OBJECTIVA | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 10/27/2008 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Sumário: | I – Dispõe o art. 3 do Dec.-Lei 28/84 de 20-1 que: 1 - “As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo. 2 – A responsabilidade é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito”. II – Trata-se de um afloramento do princípio válido mesmo no direito penal secundário, de que não existe responsabilidade penal sem culpa. III – Conforme refere o Prof. Figueiredo Dias, em “Sobre o Fundamento, o Sentido e a Aplicação das Penas em Direito Penal Económico” in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Coimbra Editora, 1998, vol. I, pag.381: é de rejeitar a ideia de que “no direito penal económico a condenação deve ter lugar, sempre ou as mais das vezes, independentemente de culpa, ou em função de uma simples censura objectiva do facto, ao estilo da doutrina dos jus deserts”, valendo isto também para as pessoas colectivas pois, “através dum pensamento analógico pode e deve considerar-se as pessoas colectivas (no direito penal económico e diferentemente no que deve suceder no direito penal geral) como capazes de culpa”, IV – Aliás, já há muito ensinava o Prof. Manuel de Andrade que “se a noção de culpa é inaplicável às pessoas colectivas, quando tomada ao pé da letra, como culpa dessas próprias pessoas, visto lhes faltar a personalidade real ou natural, já se concebe que possa falar-se de culpa de uma pessoa colectiva no sentido de culpa dos seus órgãos ou agentes” - citado no mesmo volume por Lopes Rocha, pág. 441. V – Isto é, a pessoa colectiva, sob pena de o seu comportamento poder ser censurado, é obrigada, através dos seus órgãos ou representantes, a organizar as suas actividades económicas (e outras) de modo adequado a, segundo critérios de normalidade, prevenir violações das normas legais, mas não lhe é exigível que monte uma organização que impeça ou neutralize toda e qualquer possibilidade de os seus agentes ou funcionários, actuando ao arrepio de instruções expressas, violarem normas legais, nomeadamente do direito penal económico já que nesses casos, porque nenhuma culpa lhe pode ser assacada, a sua responsabilidade é excluída, sendo este alcance da citada norma do nº 2 do art. 3 do Dec.-Lei 28/84. VI – Ora, os factos provados que não se mostram impugnados, demonstram que a arguida sociedade teve um comportamento cautelar adequado a, segundo critérios de normalidade, prevenir a ocorrência dos factos, pois para além de, genericamente, ter instruído os gerentes das suas unidades hoteleiras para terem o máximo rigor e exigência relativamente ao funcionamento do sector de cozinha, tendo estabelecido uma cadeia hierárquica que e implementou, sendo certo que se houve falhas no controle, elas talvez pudessem ser imputadas a um dos elos dessa cadeia por não se certificar que o responsável máximo da cozinha cumpria o determinado. VII - Traduzindo-se a culpa, sempre, num juízo de censura concreto, por alguém ter tido determinado comportamento, quando podia e devia ter agido de modo diverso (Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, pág. 316), perante aquele conjunto de factos, que o tribunal considerou provados, não se vê que outras medidas concretas podiam razoavelmente ser exigidas à sociedade arguida que não contendessem com critérios de racionalidade de gestão económica) para evitar o resultado, pois que numa empresa, o normal é as pessoas cumprirem, devendo naturalmente, ser previstos mecanismo mínimos de controle que se mostravam implementados. VIII - Tem, assim, sociedade arguida de ser absolvida, porque a sua condenação corresponderia à aceitação da responsabilidade criminal objectiva, quando é certo que, mesmo neste campo do direito penal, “a culpa constitui um dos fundamentos irrenunciáveis da aplicação de qualquer pena” – Figueiredo Dias, obra citada, pago 378. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães No 1º Juízo do Tribunal Judicial de Guimarães, em processo comum com intervenção do tribunal singular (Proc. 2/05.0EAPRT), foi proferida sentença que absolveu os arguidos MARIA M..., MANUEL P...E GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A. da prática de um crime contra a genuinidade, qualidade ou composição de géneros alimentícios e aditivos alimentares, p. e p. pelo art.º 24º, n.os 1, al. c), 3 e 4, e, no tocante à sociedade, pelos artigos 3º e 7º, todos do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20/01, com referência ao artigo 82º, n.os 1, al. b), e 2, al. c), do mesmo diploma legal. * Desta sentença interpôs recurso o magistrado do MP junto do tribunal recorrido, visando a condenação dos arguidos MANUEL P...e GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A.. Invoca a existência do vício do erro notório na apreciação da prova (art. 410 nº 2 al. c) do CPP) e impugna a decisão sobre a matéria de facto. Alterada esta, deverá decidir-se a condenação destes arguidos. * Respondendo, os arguidos MANUEL P...e GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A defenderam a improcedência do recurso. Nesta instância o sr. procurador geral adjunto emitiu parecer no sentido do recurso merecer provimento. Cumpriu-se o disposto no art. 417 nº 2 do CPP. Colhidos os vistos, cumpre decidir. * I – Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos (transcrição): 1- A arguida “GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A.”, no exercício da sua actividade, explora o estabelecimento de hotelaria denominado Pousada de Santa M... , sito no Largo Domingos Leite de Castro, Guimarães; * Considerou-se não provado que: - que a carne apreendida não estava por qualquer forma acondicionada ou rotulada; * FUNDAMENTAÇÃO I – A condenação da arguida GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A. O magistrado recorrente pede a condenação desta arguida. Impugna a decisão sobre a matéria de facto, mas, entre os factos que impugna, não se encontram os provados sob os nºs 24, 25 e 26, dos quais consta: 24 – “A arguida GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A instruiu sempre os gerentes das diversas unidades hoteleiras, no sentido da implementação da máxima qualidade, como forma de promoção e consolidação da sua imagem junto dos clientes”; 25 – “No que à confecção de refeições especificamente respeita, sempre transmitiu aos gerentes das unidades hoteleiras para terem o máximo rigor e exigência relativamente ao funcionamento do sector de cozinha, nomeadamente para que os chefes de cozinha procedam sempre a uma rigorosa fiscalização da conservação dos alimentos, retirando de imediato os produtos avariados ou impróprios para consumo, e procedendo à sua inutilização”; 26 – “Ordens e instruções expressas transmitidas pela sociedade arguida, que a arguida Maria C... implementou e o arguido Manuel P... acatou ao proceder regularmente à inventariação e ao controlo dos alimentos que se encontravam na arca frigorífica”. Talvez o magistrado recorrente tenha o entendimento de que no direito penal económico pode existir uma responsabilidade penal objectiva, independente de culpa, por parte das pessoas colectivas. No caso, feita a prova de que a carne deteriorada se destinava ao consumo, então a arguida GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A seria objectivamente responsável por esse facto. É um entendimento que perpassa toda a fase de inquérito, pois nenhum esforço de investigação foi feito para, em concreto, determinar a responsabilidade desta arguida na ocorrência dos factos. Vejamos, porém: Dispõe o art. 3 do Dec.-Lei 28/84 de 20-1: 1 – “As pessoas colectivas, sociedades e meras associações de facto são responsáveis pelas infracções previstas no presente diploma quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes em seu nome e no interesse colectivo. 2 – A responsabilidade é excluída quando o agente tiver actuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito”. Trata-se de um afloramento do princípio, válido mesmo no direito penal secundário, de que não existe responsabilidade penal sem culpa. É de rejeitar a ideia de que “no direito penal económico a condenação deve ter lugar, sempre ou as mais das vezes, independentemente de culpa, ou em função de uma simples censura objectiva do facto, ao estilo da doutrina dos jus deserts”, valendo isto também para as pessoas colectivas pois, “através dum pensamento analógico pode e deve considerar-se as pessoas colectivas (no direito penal económico e diferentemente no que deve suceder no direito penal geral) como capazes de culpa” – Prof. Figueiredo Dias, Sobre o Fundamento, o Sentido e a Aplicação das Penas em Direito Penal Económico in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Coimbra Editora, 1998, vol. I, pag.381. Aliás, já há muito ensinava o Prof. Manuel de Andrade que “se a noção de culpa é inaplicável às pessoas colectivas, quando tomada ao pé da letra, como culpa dessas próprias pessoas, visto lhes faltar a personalidade real ou natural, já se concebe que possa falar-se de culpa de uma pessoa colectiva no sentido de culpa dos seus órgãos ou agentes” – citado no mesmo volume por Lopes Rocha, pag. 441. Isto é, a pessoa colectiva, sob pena de o seu comportamento poder ser censurado, é obrigada, através dos seus órgãos ou representantes, a organizar as suas actividades económicas (e outras) de modo adequado a, segundo critérios de normalidade, prevenir violações das normas legais. Mas não lhe é exigível que monte uma organização que impeça ou neutralize toda e qualquer possibilidade de os seus agentes ou funcionários, actuando ao arrepio de instruções expressas, violarem normas legais, nomeadamente do direito penal económico. Nesses casos, porque nenhuma culpa lhe pode ser assacada, a sua responsabilidade é excluída. É este o alcance da citada norma do nº 2 do art. 3 do Dec.-Lei 28/84. Ora, os factos provados acima transcritos, que o magistrado recorrente não impugna, demonstram que a arguida GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A teve um comportamento cautelar adequado a, segundo critérios de normalidade, prevenir a ocorrência dos factos. Para além de, genericamente, ter instruído os gerentes das suas unidades hoteleiras para terem o máximo rigor e exigência relativamente ao funcionamento do sector de cozinha, no caso estabeleceu uma cadeia hierárquica, que a directora da Pousada de Santa M... (a arguida Maria C... ) implementou. Se houve falhas no controle, elas talvez pudessem ser imputadas à Maria C... , por não se certificar que o responsável máximo da cozinha cumpria o determinado. Traduzindo-se a culpa, sempre, num juízo de censura concreto, por alguém ter tido determinado comportamento, quando podia e devia ter agido de modo diverso (Eduardo Correia, Direito Criminal, vol. I, pag. 316), perante aquele conjunto de factos, que o tribunal considerou provados, não se vê que outras medidas concretas podiam razoavelmente ser exigidas ao GRUPO I... TURÍSTICOS, S.A (que não contendessem com critérios de racionalidade de gestão económica) para evitar o resultado. Numa empresa, o normal é as pessoas cumprirem. Devem, naturalmente, ser previstos mecanismos mínimos de controle, mas estes resultavam da implementação por parte da arguida Maria C... das instruções recebidas. Tem, assim, esta arguida que ser absolvida, porque a sua condenação corresponderia à aceitação da responsabilidade criminal objectiva. Mesmo neste campo do direito penal, “a culpa constitui um dos fundamentos irrenunciáveis da aplicação de qualquer pena” – Figueiredo Dias, obra citada, pag. 378. Improcede, pois o recurso quanto a esta arguida. Ainda assim, diga-se que não existe contradição insuperável na postura deste arguido. Ele pode ter destinado a carne para o lixo por ter dúvidas quanto à sua qualidade. Confrontado, porém, com a acusação da carne ser imprópria para consumo, pode querer questionar a consistência da prova quanto a tal facto. * A sentença analisou de forma de forma exaustiva os diversos depoimentos, apontando escrupulosamente as razões que levaram o sr. juiz a um estado de dúvida sobre o real destino das peças de carne.Refere os fundamentos que poderiam levar à condenação: “há indícios fortes de que a carne poderia destinar-se ao consumo público. Encontrava-se no interior da cozinha, juntamente com outra carne em bom estado de conservação, apresentando sinais de estar em descongelação há aproximadamente, 3 horas”. Mas indica também os elementos que apontam em sentido contrário, que são: 1) A data em que ocorreu a inspecção – início do ano. Nesse dia estava a ser feita a inventariação dos géneros alimentícios acondicionados na câmara frigorífica (facto nº 16), o que explica que a carne estivesse fora daquela câmara. “É no início do ano civil que é feito um inventário mais rigoroso das existências das empresas, pelo que é natural que a retirada da carne apreendida da câmara frigorífica tenha coincidido com a inspecção realizada pela IGAE”. 2) O momento em que ocorreu a inspecção – quando se confeccionava o almoço. “É natural que a preocupação das pessoas que estavam a trabalhar na cozinha estivesse dirigida para outro tipo de acções, mais do que em eliminar produtos”. 3) A carne de porco apreendida não constar das ementas. Se não ia ser servida, então, uma razão plausível para a carne estar fora da arca frigorífica era ter a inutilização como destino; e 4) Não terem sido encontrados outros produtos em mau estado de conservação, para além dos apreendidos. Se houvesse a intenção de aproveitar a carne avariada, o normal seria distribuí-la por diversas refeições, dessa forma disfarçando melhor a falta de qualidade. Na motivação do recurso não se contesta a existência destes elementos. Entende-se é que, apesar deles, o senhor juiz não devia ter tido dúvidas quanto à condenação. Porém, o relevante é a existência de dúvidas no espírito do julgador e não no do MP, do assistente, ou do arguido, sujeitos condicionados pelas suas específicas posições processuais. Não significa isto que não seja possível contestar o estado de dúvida do juiz em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto. O art. 127 do CPP indica dois pilares a considerar na ponderação da prova: as «regras da experiência» e a livre convicção do julgador. A convicção do julgador não pode colidir com as regras da experiência. Mas nenhuma regra da experiência comum foi violada, por exemplo, na ponderação de que os produtos podiam não ter o destino do consumo porque a carne de porco não constava das ementas. Talvez a prova também fosse suficiente para fundamentar a condenação. Esse, porém, é o campo por excelência da livre convicção do julgador. No caso, confrontado com elementos de prova de sentido divergente, o sr. juiz, que recebeu a prova com oralidade e imediação, ficou com dúvidas. Não tinha outro caminho senão manifestá-las na sentença e absolver. Como já acima se disse, a Relação nunca faz um novo julgamento da matéria de facto, pois o recurso em matéria de facto constitui apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância. Um desses vícios poderá ser a não ponderação das «regras da experiência» pelo tribunal a quo. Pelas razões apontadas, não se demonstrou terem sido violadas tais regras. * Decidiu-se no acórdão do STJ de 12-10-2000, Proc. 2003/00, 5ª Secção Dinis Alves:“I – (…) II – A paráfrase in dubio pro reo não é actualmente um simples brocado, adágio ou aforismo, mas um princípio básico do direito processual probatório: existindo um laivo de dúvida, por mínimo que seja, sobre a veracidade de um facto em que se alicerça uma imputação delituosa, ninguém pode ser condenado com base nesse facto. III - Quando existir uma réstia de dúvida, não pode haver punição: isto é, a punição somente pode verificar-se, quando o julgador adquirir ou formar a convicção da certeza da imputação feita ao acusado, com base nas provas produzidas. IV – Se essa convicção de certeza não corresponder à realidade, não se afronta, ipso facto, o referido princípio, mas incorre-se em erro judiciário”. Ora, o julgador foi confrontado com uma dúvida intransponível quanto à prática dos factos criminosos. Como se disse, laboriosamente deixou expresso o porquê das suas dúvidas, todos ficando a saber porque é que, efectivamente, uma certeza quanto à imputação não se verificou. Os princípios vigentes em processo penal são para serem aplicados quando as situações os reclamam. Nenhuma censura merece a aplicação do in dubio pro reo. DECISÃO Os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães negam provimento ao recurso confirmando a sentença recorrida. Sem custas nesta instância. |