Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1060/08-2
Relator: CRUZ BUCHO
Descritores: PRESIDENTE DA CÂMARA
COMPETÊNCIA
DELEGAÇÃO DE PODERES
LICENÇA DE UTILIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/08/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – Existe lei habilitante que permite a delegação de competência própria do presidente da Câmara no que respeita à concessão de licenças, ou autorizações de utilização de edifícios, embargo, demolições, despejos sumários, isto é às matérias previstas nas acima transcritas alíneas l) a n) do n.º2 do artigo 68º da Lei n.º 169/99 e essa norma é precisamente o artigo 69º, n.º2 do Lei n.º 169/99.
II – O STA já por diversas vezes salientou o Dec.-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, ao referir-se à competência da Câmara Municipal e do seu Presidente quanto à aludida matéria urbanística em nada contende com o regime da delegação e sub delegação de competências daqueles órgãos autárquicos constante dos citados DL 100/84 e 169/99.
III – Simplesmente, no caso dos autos não está em causa a concessão de licenças, ou autorizações de utilização de edifícios, embargos, demolições, ou despejos sumários, mas antes a medida de cessação da utilização prevista no artigo 109º do RJUE, um novo tipo de medida de tutela da legalidade urbanística apenas consagrada em 1999, por via do Dec.- Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, alterado pelo Dec.- Lei n.º 177/2001, de 4 de Junho e quanto a esta medida não existe, efectivamente, lei habilitante.
IV – Com efeito nem o REUJ prevê a possibilidade de o Presidente da Câmara poder delegar num vereador a competência para ordenar a cessação de utilização, nem essa possibilidade lhe é outorgada por qualquer outra lei, nomeadamente a Lei n.º 169/99.
V – Assim, em caso de utilização/ocupação de edifícios ou fracções autónomas, sem a necessária licença ou autorização, ou em desconformidade com os fins nelas previstos, o presidente da câmara municipal tem o poder dever de ordenar que cesse a actividade ou utilização em causa e, caso aquela ordem não seja voluntariamente acatada, no prazo para o efeito fixado, propor à câmara municipal que delibere o despejo administrativo do imóvel (edifício ou sua fracção autónoma).
VI – Conclui-se, deste modo, que por não existir lei habilitante, não comete o crime de desobediência o agente que não acata a ordem contida no despacho de um vereador em quem o Presidente de Câmara havia delegado tal competência, no sentido de cessar a utilização de uma fracção autónoma para fim diverso do previsto no respectivo alvará.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães:
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No 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, no âmbito do Processo Comum Singular nº 2349/06.0TAGMR, por sentença de 22 de Janeiro de 2008, o arguido A, com os demais sinais dos autos, foi absolvido da prática de um crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 348º, nº 1, alínea a), do Código Penal e 100º, nº 1, do Dec.-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, com as alterações introduzidas pelo Dec.-Lei n.º nº 177/2001, de 4 de Junho.
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Inconformado com tal sentença, o Ministério Público dela interpôs recurso, rematando a sua motivação com as seguintes conclusões que se transcrevem:
1 - Vem o presente recurso da sentença proferida nos autos acima referenciados que absolveu o arguido da prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348.°, n.º1, alínea a), do Código Penal, com referência aos artigo 100.° e 109°, ambos do Dec.-lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, adiante designado pela sigla "RJUE";
2 - Na sentença ora posta em crise, a Mm.a Juiz a quo deu como não provado "que a ordem em causa tivesse legalidade substancial e formal; que a autoridade administrativa em causa tivesse competência e poderes para a emissão dessa ordem e fosse regular a sua transmissão ao arguido", na consideração que a entidade que ordenou a cessação de utilização não tinha competência para o efeito, em razão do que não está verificado um dos elementos do tipo;
3 - In casu, não se discute e nem está em causa quer a qualidade em que interveio o arguido, a falta de emissão de alvará de utilização para aquele fim, a concreta ordem de cessação de utilização, a notificação do despacho que determinou a aludida cessação de utilização e a constatação que o arguido, após tal notificação, continuou a utilizar o espaço em apreço como sala de jantar.
4 - Também não se discute, porque inequívoca, a existência de disposição legal que comina a punição da desobediência simples, subsumindo-se assim a priori a conduta do arguido na previsão da norma incriminadora do artigo 348.°, n.º 1, alínea a), do Código Penal, in casu aquele artigo 100.°, n.º 1, do RJUE.
5 - A questão colocada com o presente recurso passa por determinar se a competência para ordenar a cessação de utilização de quaisquer obras, construções ou edificações efectuadas por particulares ou pessoas colectivas, sem licença ou com inobservância das condições dela constantes, dos regulamentos e das posturas, conferida ao Presidente da Câmara e prevista no RJUE, pode ou não ser delegada nos Vereadores.
6 - E salvo o devido respeito, a despeito da delegação de competência atribuída ao Presidente da Câmara Municipal no artigo 109°, n.ºl do RJUE não estar concreta e expressamente prevista nesta particular norma e subsecção em que se insere, é nosso modesto entendimento que tal delegação tem plena consagração quer no próprio RJUE quer ainda na Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro; senão, vejamos:
7 - Na verdade, na integração e interpretação do RJUE, designadamente, com recurso às disposições gerais (subsecção I) que regulam a secção onde se integra a subsecção denominada ‘Medidas de tutela da legalidade urbanística' (subsecção lIl) pode-se desde logo afirmar que a competência estabelecida no artigo 109.°, n.º 1 ao Presidente da Câmara é delegável em qualquer vereador nos termos previstos no artigo 94.°, n.º1;
8 - Pelo que a ordem emanada pelo Vereador da Câmara Municipal de Guimarães e constante do despacho inserto a fls. dos autos, se deverá considerar plenamente válida, do ponto de vista formal e substancial, tendo sido emanada da entidade com competência para o efeito.
9 - Contudo, mesmo que assim se não entendesse, importa analisar de modo completo a questão abrangendo também o que está estatuído na Lei n.º 169/99, de 18/9, que nos parece essencial para a boa decisão da causa, diploma esse que não foi considerado nas decisões em que se sustentou a sentença ora em crise.
10 - A Lei n.º 169/99, de 18/09 é a lei quadro de competências e regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias que define a base do regime jurídico em causa, sendo que no artigo 68. ° estão previstas as competências do Presidente da Câmara Municipal e no artigo 69°, n.º2 prevê-se expressamente a possibilidade de delegação e subdelegação dos poderes de competência própria ou delegada do Presidente da Câmara Municipal;
11- O legislador na Lei n.º 169/99 pretendeu claramente atribuir ao Presidente da Câmara Municipal a decisão de delegar quaisquer das suas competências, sem impor limites, ao contrário do que sucede com as competências da própria câmara municipal.
12 - Esta lei constitui lei de valor reforçado - cfr. artigo 112.°, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa - ou ainda que assim se não entenda, por ser uma lei que define a base do regime jurídico em causa sempre gozaria da tutela que também é reforçada no n.º2 do citado preceito, pelo que, assim visto, ao RJUE nunca se poderia atribuir (ainda que em tese, pois que entendemos que o mesmo o não faz) características para limitar os poderes de delegação e subdelegação previstos na Lei n.º 169/99.
13 - Estando assim previstas no artigo 68.°, n.º2, al. m) da Lei n.º 169/99, lei quadro de competências e regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias que define a base do regime jurídico em causa, aquelas mesmas competências definidas no RJUE e no artigo 69.°, n.º 2 da Lei n.º 169/99 a possibilidade de delegação, o RJUE não precisa de prever expressamente a delegação de competência;
14 - Nestes termos, a delegação de competência do Presidente da Câmara Municipal de Guimarães a favor do Vereador em causa é juridicamente relevante e produz os seus efeitos legais;
15 - Pelo que é plenamente válida a ordem emitida no despacho proferido pelo vereador da Câmara Municipal de Guimarães no uso das competências que lhe foram delegadas por despacho do Presidente da Câmara Municipal de Guimarães datado de 07/06/2004, que ao abrigo do disposto no artigo 109.°, do RJUE ordenou a cessação da utilização do aludido espaço como sala de jantar;
16 - Ordem essa devida e regularmente comunicada ao arguido, com a advertência de que o desrespeito a tal ordem constitui crime de desobediência, nos termos do artigo 100.° do RJUE e 348.°, n.o 1, alínea a) do Código Penal;
17 - Uma vez que o arguido não cumpriu tal ordem de cessação de utilização, prosseguindo a utilização daquele espaço, tendo conhecimento da legitimidade da ordem, que sabia proveniente da autoridade competente e que agiu de vontade livre e consciente, com o propósito de não acatar a ordem emanada pelo Vereador da Câmara Municipal no exercício das suas funções, bem sabendo que a mesma fora dada por entidade competente, era legal, legítima, a ela devia obediência e que a sua conduta não era permitida, cometeu o crime de desobediência que lhe é imputado nos presentes autos e por isso deve ser condenado.
18 - Ao ter decidido da forma que o fez o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 94.°, n.ºl, 109° e 100° do RJUE, 68.°, n.º2 e 69.° da Lei n.º 169/99, de 18/09, e artigo 348.°, n.ºl, alínea a) do Código Penal.
19 - Deverá, por isso, o arguido ser condenado pela prática do aludido crime; e, atendendo às regras de determinação da medida concreta da pena, tendo em mente a primazia que deve ser dada à pena de multa, em detrimento da pena de prisão, entendemos ser justa e adequada a fixação de uma pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 4, num total de € 240.

Termina pedindo que seja revogada “a sentença recorrida e em consequência ser condenado o arguido pela prática de um crime de desobediência previsto e punível pelo artigo 348º, n.º1, alínea a) do Código Penal, com referência aos artigos 100º e 109º do RJUE, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de €4”
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O arguido não respondeu ao recurso.
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O recurso foi admitido, para o Tribunal da Relação de Guimarães, por despacho constante de fls. 122.
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Nesta Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, pronunciando-se no sentido da procedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artigo 417º, n.º2 do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência pelo que cumpre conhecer.
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II- Fundamentação
1. É a seguinte a factualidade apurada no tribunal a quo:

A) Factos provados (transcrição):
1 - O arguido é proprietário da fracção I do prédio sito na Rua N, nesta comarca, licenciado pelo alvará de utilização nº ---/98 para garagens e arrumos.
1. Desde 14-06-2000 o arguido vem utilizando a referida fracção como sala de jantar, de apoio ao estabelecimento de café que explora na fracção D do aludido prédio, sem que tivesse requerido a respectiva legalização, não obstante ter sido devidamente notificado para o efeito.
2. Em 18-03-2005 e na sequência do despacho proferido pelo Vereador do Pelouro do Urbanismo da Câmara Municipal de Guimarães, foi o arguido pessoalmente notificado para, no prazo de 60 dias, cessar a utilização da fracção "i", conforme certidões de fls. 18 e 19, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática do crime de desobediência.
3. O arguido ficou ciente da obrigação que sobre si impendia de, no prazo que lhe fora estipulado, cessar a utilização da sobredita fracção, bem como das consequências do incumprimento da ordem que lhe fora transmitida.
4. O arguido continuou a utilizar aquela fracção como sala de jantar
5. O arguido actuou consciente, livre e voluntariamente, ciente da decisão que determinou a cessação da utilização da fracção "I" para fim diverso daquele para o qual havia sido concedida a licença de utilização nº 1345/98, conforme fora pessoalmente notificado, e da responsabilidade que sobre ele impendia caso não acatasse aquela ordem.
6. O arguido não apresentou qualquer justificação para a sua conduta à data dos factos, apesar de saber que o que tal comportamento era proibido e punido por lei.
7. O arguido encontra-se desempregado e a esposa explora um café, auferindo cerca de € 400,00/mês. Tem 3 filhos: 20, 26 e 27 anos, que trabalham, sendo o mais novo estudante.
8. O arguido vive em casa própria que já está paga
9. O arguido é titular de um veículo automóvel.
10. O arguido não tem antecedentes criminais. –
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B) Matéria de facto não provada (transcrição):
Não ficou provado que:
1. Que a ordem em causa tivesse legalidade substancial e formal.
2. A autoridade administrativa em causa tivesse competência e poderes para a emissão dessa ordem e fosse regular a sua transmissão ao arguido.

C) Motivação da decisão de facto (transcrição):
Quanto aos factos provados, baseou-se o Tribunal na análise dos documentos juntos aos autos e nas declarações do arguido que relatou os factos de forma sincera e credível como vieram a ser dados como provados.
Teve-se ainda em consideração o "print" informático de fls. 56 no que concerne à ausência de antecedentes criminais relativos ao arguido. -
Quanto aos factos não provados cumpre, finalmente, referir que não se produziu em audiência de julgamento qualquer prova que permitisse dar como provados outros factos para lá dos que nessa qualidade se descreveram.
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2. Conforme é sabido, as conclusões do recurso delimitam o âmbito do seu conhecimento e destinam-se a habilitar o tribunal superior a conhecer as razões pessoais de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida (artigos 402º, 403º, 412º, n.º 1, todos do Código de Processo Penal e, v.g., Ac. do STJ de 19-6-1996, BMJ n.º 458, pág. 98)
Neste recurso, a questão a apreciar consiste em saber se o Presidente da Câmara pode delegar num vereador a competência para ordenar a cessação da utilização de edifício ou fracção autónoma, a que alude o artigo 109º do Dec.Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro.
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3. A fundamentação da decisão recorrida
É a seguinte a fundamentação da decisão recorrida :
«O arguido vem acusado da prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artº 348º, nº 1, al. a), do Cód. Penal. -
Em conformidade com o disposto no art. 348º, n.º1 do Cód. Penal, comete o crime de desobediência simples aquele que faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, se na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente comissão. -
Em face da factualidade apurada no decurso da audiência de julgamento, entendemos que o arguido A, não praticou o crime de desobediência de que vem acusado. -
Assim, para que a ordem seja legítima, necessário se torna que seja emitida pela pessoa ou órgão competentes. -
In casu, quem emitiu a ordem foi o Vereador da C.M. de Guimarães, com base na competência que lhe foi delegada pelo Presidente daquela Câmara Municipal. -
Ora, a nosso ver tal competência não poderia ter sido delegada, uma vez que a tal acto não está previsto na Lei. –
Neste sentido, vide o Ac. da Relação do Porto, proc. nº 0415798 de 06/12/2006, in www.dgsi.pt, que refere “O presidente da câmara é competente para ordenar e fixar prazo para a cessação da utilização de edifícios ou de suas fracções autónomas quando sejam ocupados, nomeadamente, sem a necessária licença ou autorização de utilização (cfr. nº 1 do art. 109º). E o desrespeito dos actos administrativos que determinem qualquer das medidas de tutela urbanística previstas no DL nº 559/99 (entre elas a cessação de utilização – cfr. a epígrafe “Medidas de tutela da legalidade urbanística” da subsecção III da secção V do capítulo III, em que o art. 109º está inserido) constitui crime de desobediência, nos termos do art. 348º do C. Penal (cfr. nº 1 do art. 100º). -
Será que o presidente da câmara pode delegar a competência que a lei, no nº 1 do citado art. 109º, lhe atribui?
De acordo com o disposto no nº 1 do art. 35º do C. do Procedimento Administrativo (DL nº 442/91 de 15/11, alterado pelo DL nº 6/96 de 31/1), “os órgãos administrativos normalmente competentes para decidir em determinada matéria podem, sempre que para tal estejam habilitados por lei, permitir, através de um acto de delegação de poderes, que outro órgão ou agente pratique actos administrativos sobre a mesma matéria”. -
A delegação de poderes assenta, pois, em três requisitos: -
1) tem de radicar na lei (lei de habilitação);
2) supõe a existência de dois órgãos ou um órgão e um agente; e
3) depende sempre de um acto de delegação;
No caso de que nos ocupamos, interessa-nos em particular o primeiro desses requisitos, cuja falta de verificação implica a invalidade da delegação de competências.(4)
Ora, no caso inexiste tal lei de habilitação, como facilmente se conclui pela leitura do já referido DL nº 555/99, que, na matéria das medidas de tutela da legalidade urbanística, atribui ao presidente da câmara competência para embargar obras e trabalhos (cfr. art. 102º nº 1), para ordenar a realização de trabalhos de correcção ou alteração da obra (cfr. 105º nº 1), para ordenar a demolição da obra ou a reposição do terreno (art. 106º nº 1), para determinar a posse administrativa e execução coerciva (cfr. art. 107º nº 1) e para ordenar a cessação da utilização (cfr. art. 109º nº 1), sem do mesmo passo prever a possibilidade de delegação ou subdelegação de poderes, quando é certo que a prevê expressamente a respeito de muitas outras (cfr. arts. 5º, 8º, 11º nº 9, 19º nº 12 e 75º). (sublinhado nosso). -
Temos, pois, de concluir que o legislador, ao não fazer idêntica previsão nesta matéria, pretendeu vedar quanto a ela a possibilidade de delegação ou subdelegação de poderes, reservando para a competência exclusiva do presidente da câmara a decisão sobre a aplicação daquelas medidas. O que bem se compreende se tivermos em conta o alcance e a gravidade das medidas em causa.(…) o presidente da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim tenha delegado no vereador que emitiu a ordem transmitida ao recorrente a sua competência originária para ordenar qualquer das medidas urbanísticas previstas nos arts. 102º a 109º, e em concreto para ordenar a cessação da utilização de edifícios ou de suas fracções autónomas, tal acto é inválido. O que implica, também, que aquele vereador não tinha competência para emitir aquela ordem.”
Destarte e sem mais explanações, não restam dúvidas de que com a sua conduta o arguido não preencheu os elementos objectivos do tipo de crime previsto nos arts. 100º, nº 1 e 102º, do D.L. nº 555/99 de 16 de Dezembro, com a redacção introduzida pelo D.L. nº 177/2001, de 04/06, e 348º, n.ºs 1, al. a) do Código Penal, o qual alterou o D.L. 445/91 de 20/2000 e 250/94 de 15/10.
Assim sendo, deverá ser o mesmo absolvido do crime em causa nos autos.»
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Concorda-se com o decidido, mas diverge-se da respectiva fundamentação.

4. O crime de desobediência
§1. O arguido vinha acusado da prática de um crime de desobediência p. e p. pelo n° 1 do art. 348° do C. Penal, o qual dispõe que "Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.".
São, pois, elementos objectivos do crime de desobediência:
- a ordem ou mandado;
- a legalidade substancial e formal da ordem ou mandado;
- a competência da autoridade ou funcionário para a emissão da ordem ou mandado; e
- a regularidade da sua transmissão ao destinatário.
A ordem ou mandado têm de se revestir de legalidade substancial (têm de se basear numa disposição legal que autorize a sua emissão ou decorrer dos poderes discricionários do funcionário ou autoridade emitente) e formal (a sua emissão deve conformar-se com as formalidades estipuladas pela lei para o efeito).
É ainda indispensável que a autoridade ou funcionário emitente da ordem ou mandado tenham competência para o fazer, ou seja, que aquilo que pretendem impor esteja compreendido na esfera das suas atribuições.
Por fim, exige-se que a ordem ou mandado sejam transmitidas aos seus destinatários de uma forma que lhes permita tomar efectivo conhecimento daquilo que lhes é imposto ou exigido.
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§2. Resulta da decisão recorrida ter sido o arguido notificado, na qualidade de proprietário da fracção I do prédio sito na Rua N, licenciada para garagens e arrumos, do despacho que ordenava a cessação da utilização daquele fracção como sala de jantar de apoio ao estabelecimento de café que explora na fracção D do mesmo prédio, despacho esse proferido pelo vereador do pelouro do urbanismo da Câmara Municipal de Guimarães.
Nos termos da alínea d) do n.º1 do artigo 98º do do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação aprovado pelo Dec.-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro (RJUE), “Sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal ou disciplinar, são puníveis como contra-ordenação: d) A ocupação de edifícios ou suas fracções autónomas sem autorização de utilização ou em desacordo com o uso fixado no respectivo alvará ou na admissão de comunicação prévia, salvo se estes não tiverem sido emitidos no prazo legal por razões exclusivamente imputáveis à câmara municipal”
De acordo com o n.º1 do artigo 109º do citado RJUE, o Presidente da Câmara Municipal é competente para ordenar e fixar prazo para a cessação da utilização de edifícios ou de suas fracções autónomas quando sejam ocupadas sem a necessária autorização ou quando estejam afectos a fim diverso do previsto no respectivo alvará.
Finalmente, segundo o artigo 100º, nº 1 do RJUE o desrespeito dos actos administrativos que determinem qualquer das medidas de tutela urbanística previstas no DL n° 559/99 (entre elas a cessação de utilização - cfr. a epígrafe "Medidas de tutela da legalidade urbanística" da subsecção III da secção V do capítulo III, em que o art. 109° está inserido) constitui crime de desobediência, nos termos do artigo 348° do Código Penal.
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§3. O recorrente não discute a existência da ordem nem tão-pouco que ela tenha sido transmitida de forma regular, como foi, aliás, dado como assente na sentença recorrida.
Como o próprio recorrente se apresta a esclarecer, não discute “quer a qualidade em que interveio o arguido, a falta de emissão de alvará de utilização para aquele fim, a concreta ordem de cessação de utilização, a notificação do despacho que determinou a aludida cessação de utilização e a constatação que o arguido, após tal notificação, continuou a utilizar o espaço em apreço como sala de jantar. Também não se discute, porque inequívoca, a existência de disposição legal que comina a punição da desobediência simples, subsumindo-se assim a priori a conduta do arguido na previsão da norma incriminadora do artigo 348.°, n.º 1, alínea a), do Código Penal, in casu aquele artigo 100.°, n.º 1, do RJUE.”
O que o recorrente questiona, é que a autoridade que emitiu a ordem não tivesse competência para o efeito, o que de seguida vamos indagar.
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5. A delegação de poderes.
§1. O artigo 29°, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo dispõe que a «competência é definida por lei ou por regulamento, e é irrenunciável e inalienável, sem prejuízo do disposto quanto à delegação de poderes (...)”.
As regras da irrenunciabilidade e da inalienabilidade reportam-se, pois, exclusivamente à titularidade da competência, nada obstando a que, em certos casos, a competência possa ser delegada.

A matéria vem regulada na SECÇÃO IV sob a epígrafe “Da delegação de poderes e da substituição”, nos seguintes termos:
Artigo 35.º
Da delegação de poderes
1 - Os órgãos administrativos normalmente competentes para decidir em determinada matéria podem, sempre que para tal estejam habilitados por lei, permitir, através de um acto de delegação de poderes, que outro órgão ou agente pratique actos administrativos sobre a mesma matéria.
2 - Mediante um acto de delegação de poderes, os órgãos competentes para decidir em determinada matéria podem sempre permitir que o seu imediato inferior hierárquico, adjunto ou substituto pratiquem actos de administração ordinária nessa matéria.
3 - O disposto no número anterior vale igualmente para a delegação de poderes dos órgãos colegiais nos respectivos presidentes, salvo havendo lei de habilitação específica que estabeleça uma particular repartição de competências entre os diversos órgãos.
Artigo36.º
Da subdelegação de poderes
1 - Salvo disposição legal em contrário, o delegante pode autorizar o delegado a subdelegar.
2 - O subdelegado pode subdelegar as competências que lhe tenham sido subdelegadas, salvo disposição legal em contrário ou reserva expressa do delegante ou subdelegante.
Artigo 37.º
Requisitos do acto de delegação
1 - No acto de delegação ou subdelegação, deve o órgão delegante ou subdelegante especificar os poderes que são delegados ou subdelegados ou quais os actos que o delegado ou subdelegado pode praticar.
2 - Os actos de delegação e subdelegação de poderes estão sujeitos a publicação no Diário da República ou, tratando-se da administração local, no boletim da autarquia, e devem ser afixados nos lugares do estilo quando tal boletim não exista.
Artigo 38.º
Menção da qualidade de delegado ou subdelegado
O órgão delegado ou subdelegado deve mencionar essa qualidade no uso da delegação ou subdelegação.
Artigo 39.º
Poderes do delegante ou subdelegante
1 - O órgão delegante ou subdelegante pode emitir directivas ou instruções vinculativas para o delegado ou subdelegado sobre o modo como devem ser exercidos os poderes delegados ou subdelegados.
2 - O órgão delegante ou subdelegante tem o poder de avocar, bem como o poder de revogar os actos praticados pelo delegado ou subdelegado ao abrigo da delegação ou subdelegação.
Artigo 40.º
Extinção da delegação ou subdelegação
A delegação e a subdelegação de poderes extinguem-se:
Por revogação do acto de delegação ou subdelegação;
Por caducidade, resultante de se terem esgotado os seus efeitos ou da mudança dos titulares dos órgãos delegante ou delegado, subdelegante ou subdelegado.
Artigo 41.º
Substituição
1 - Nos casos de ausência, falta ou impedimento do titular do cargo, a sua substituição cabe ao substituto designado na lei.
2 - Na falta de designação pela lei, a substituição cabe ao inferior hierárquico imediato, mais antigo, do titular a substituir.
3 - O exercício de funções em substituição abrange os poderes delegados ou subdelegados no substituído.
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§2. O Código do Procedimento Administrativo é largamente tributário da lição do Prof. Freitas do Amaral.
Segundo Freitas do Amaral “a "delegação de poderes" (ou "delegação de competência") é o acto pelo qual um órgão da administração, normalmente competente para decidir em determinada matéria, permite, de acordo com a lei, que outro órgão ou agente pratiquem actos administrativos sobre a mesma matéria”.
Ainda segundo o mesmo autor, são três os requisitos da delegação de poderes:
«a) Em primeiro lugar, é necessário uma lei que preveja expressamente a faculdade de um órgão delegar poderes noutro: é a chamada lei de habilitação.
«Porque a competência é irrenunciável e inalienável, só pode haver delegação de poderes com base na lei: por isso, a própria Constituição declara que nenhum "órgão de soberania, de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos e nos termos expressamente previstos na Constituição e na lei" (CRP, art. 114°, n.º 2). Mas o artigo 29° do Código do Procedimento Administrativo acentua bem que os princípios da irrenunciabilidade e da inalienabilidade da competência não impedem a figura da delegação de poderes (n.ºs 1 e 2);
b) Em segundo lugar, é necessária a existência de dois órgãos, ou de um órgão e um agente, da mesma pessoa colectiva pública, ou de dois órgãos de pessoas colectivas públicas distintas, dos quais um seja o órgão normalmente competente (o delegante) e outro, o órgão eventualmente competente (o delegado);
c) por último, é necessária a prática do acto de delegação propriamente dito, isto é, o acto pelo qual o delegante concretiza a delegação dos seus poderes no delegado, permitindo-lhe a prática de certos actos na matéria sobre a qual é normalmente competente» (Curso de Direito Administrativo, vol. 1, 2ª ed., Coimbra, 2003, págs. 661-664. No mesmo sentido, cfr., v.g. os Acs do STA de 10-10-2000, proc.º n.º 045589, rel. Pires Esteves e de 22-09-1998, proc.º n.º 043105, rel. Pires Esteves, ambos in www.dgsi.pt. Sobre o instituto da delegação de poderes é já muito vasta a bibliografia disponível, como pode ver-se em António Furtado dos Santos, “Acto administrativo” do Dicionário jurídico da Administração, vol. I, Lisboa, 2ªed., 1990, págs. 136-138, e Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, vol. I, Coimbra, 1980, págs. 268-278, Paulo Otero, A competência delegada no direito administrativo português: conceito, natureza e regime, Lisboa, 1987, João Caupers, Direito Administrativo, Lisboa, 1995, págs. 74-81, Marcelo Rebelo de Sousa, Lições de Direito Administrativo, vol. I, Lisboa, 1999, págs. 193- 210).
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6. O Presidente da Câmara e a Lei das Autarquias Locais.
A Constituição da República Portuguesa dispõe no seu artigo 235°, sob a epígrafe «Autarquias locais», que a organização democrática do Estado compreende a existência de autarquias locais (n.º 1) e que as autarquias locais são pessoas colectivas territoriais dotadas de órgãos representativos, que visam a prossecução de interesses próprios das populações respectivas (n.º 2).
Por sua vez, o artigo 236°, sob a epígrafe «Categorias de autarquias locais e divisão administrativa», dispõe no seu n.º1 que no continente as autarquias locais são as freguesias, os municípios e as regiões administrativas.
Finalmente, o artigo 237°, sob a epígrafe «Descentralização administrativa», estatui no seu n.º1 que as atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos seus órgãos, serão reguladas por lei, de harmonia com o princípio da descentralização administrativa.
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira “ a descentralização administrativa postula a difusão das tarefas públicas, mediante a devolução de atribuições e de poderes a entidades públicas autónomas situadas abaixo do Estado. Ela consiste essencialmente numa divisão vertical de poderes entre o Estado e entes públicos autónomos infraestaduais, nomeadamente os de carácter territorial, justamente as autarquias locais” Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ªed. Coimbra, 1992, pág. 886).
Acresce que «[a] descentralização administrativa implica a autonomia administrativa, em sentido estrito, isto é, a competência para a prática de actos administrativos definitivos e executórios e a não sujeição das autarquias e dos seus órgãos a uma dependência hierárquica, em relação ao Estado ou autarquias de grau superior, sem prejuízo da tutela (art. 243°)
O artigo 237° da Constituição remete para a lei (reserva de lei) a matéria das competências dos órgãos autárquicos, embora esta assuma a natureza de reserva relativa de competência legislativa, já que a própria Lei Fundamental, no n.º1 do artigo 165°, dispõe que é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre diversas matérias, salvo autorização ao Governo, v. g., quanto ao «estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais», de harmonia com a sua alínea q).
Na vertente da densificação infra-constitucional, enquanto corolário da descentralização administrativa, foi publicada a Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, que estabeleceu o quadro de transferência de atribuições e competências para as autarquias locais e, logo em seguida, numa primeira fase dessa transferência, a Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, que estabeleceu o quadro de competências, assim como o regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias.
Por sua vez, a Lei n.º 169/99, dispõe no n.º 2 do artigo 2° que os órgãos representativos do município são a assembleia municipal e a câmara municipal.
De harmonia com o artigo 41° da Lei n.º 169/99, que tem por epígrafe «Natureza», a assembleia municipal é o órgão deliberativo do município, funcionando «como um autêntico parlamento municipal», não desempenhando funções executivas, nem funções de gestão.
Por sua vez, o artigo 56° da mesma Lei, sob a epígrafe «Natureza e constituição», diz-nos que «1 - A câmara municipal é constituída por um presidente e por vereadores, um dos quais designado vice-presidente, e é o órgão executivo colegial do município, eleito pelos cidadãos recenseados na sua área».
À câmara municipal chama-se corpo administrativo, sendo que «no direito português, esta expressão designa todo o órgão colegial executivo encarregado da gestão permanente dos assuntos de uma autarquia local», sendo, por isso, «o corpo administrativo do município».
Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, «[o] órgão executivo do município é a câmara e não o seu presidente. Embora a Constituição tenha expressamente previsto a figura do presidente da câmara, ele não é um órgão autónomo da administração municipal. O órgão executivo do município é a câmara como órgão colegial (v. também, art. 241 ° - 1). Não é, portanto possível conferir ao presidente, por via legal, competência originária para o exercício de atribuições municipais, podendo contudo a câmara delegar-lhe uma parte das suas competências, nos casos previstos na lei. Por isso, a atribuição directa de poderes ao presidente - ainda que sob a figura de «delegação tácita», operada directamente pela lei, independentemente de qualquer acto de delegação da CM (Decreto-Lei n.º 100/84, art. 52°) - não tem fundamento constitucional, mesmo quando se admite que a CM possa fazer cessar a delegação, ou reapreciar as decisões do presidente, em via de recurso. A abertura legal veio permitir, na prática, transições silenciosas de um regime de colegial idade para um regime de presidencialismo municipal, com violação do «princípio da conformidade funcional», relativamente aos órgãos autárquicos. A composição pluripartidária do executivo impõe a colegialidade municipal na tomada de decisões, pelo que a «presidencialização» se traduz na monopolização e na expropriação monopartidária das decisões”(Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ªed. Coimbra, 1992, págs. 907-908).
No entanto, hoje em dia, a doutrina vem-se inclinando maioritariamente em sentido contrário, na linha do que Freitas do Amaral tem defendido. Segundo este autor, “não é pelo facto de a Constituição ou as leis qualificarem o Presidente da Câmara como órgão, ou não, que ele efectivamente é ou deixa de ser órgão do município: ele será órgão ou não, conforme os poderes que a lei lhe atribuir no quadro do estatuto jurídico do município”.
E prossegue o mesmo autor:
“Hoje isso é ainda mais patente à luz da nova redacção dada pela Lei n.º 18/91, de 12 de Junho, aos artigos 52° e 53° da LAL: com esta alteração, não só aumentaram substancialmente os casos de competência própria como foi eliminada a figura fictícia da delegação tácita, transformando a maior parte dos casos em que essa figura se aplicava em casos de pura e simples competência própria.
O Presidente da Câmara é hoje um órgão de vasta competência executiva, a figura emblemática do município, e o verdadeiro chefe da administração municipal: pretender negá-lo é contraditório com o sistema de eleição directa do Presidente da Câmara estabelecido na legislação portuguesa” (Curso de Direito Administrativo, vol. 1, cit. págs 496-497).
E se assim era à luz da Lei n.º 100/84, de 29 de Março, presentemente o artigo 68° da Lei n.º 169/99 consagra um leque ainda mais alargado de competências próprias do presidente da câmara (cfr. neste sentido o Parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 107/2003, relatado pelo Exmo Sr. Dr. Barreto Nunes, actual PGA coordenador junto desta Relação, aqui seguido de muito perto e Fernando Alves Correia, Manual de Direito do Urbanismo, vol. I, Coimbra, 2001, págs. 181-182).
Na Lei n.º 169/99, no leque de competências do presidente da câmara, previsto no artigo 68°, merecem destaque as seguintes

«I) Conceder, nos casos e nos termos previstos na lei, licenças ou autorizações de utilização de edifícios;
m) Embargar e ordenar a demolição de quaisquer obras, construções ou edificações efectuadas por particulares ou pessoas colectivas, sem licença ou com inobservância das condições dela constantes, dos regulamentos, das posturas municipais ou de medidas preventivas, de normas provisórias, de áreas de construção prioritária, de áreas de desenvolvimento urbano prioritário e de planos municipais de ordenamento do território plenamente eficazes;
n) Ordenar o despejo sumário dos prédios cuja expropriação por utilidade pública tenha sido declarada ou cuja demolição ou beneficiação tenha sido deliberada, nos termos da alínea anterior e da alínea c) do n.º 5 do artigo 64.°, mas, nesta última hipótese, só quando na vistoria se verificar a existência de risco eminente de desmoronamento ou a impossibilidade de realização das obras sem grave prejuízo para os moradores dos prédios;»

A mesma lei regulamenta pormenorizadamente a matéria da distribuição de funções (artigo 69º) e da delegação de competências no pessoal dirigente (artigo 70º).
È o seguinte o teor da primeira daquelas normas:
Artigo 69.º
Distribuição de funções
1 - O presidente da câmara é coadjuvado pelos vereadores no exercício da sua competência e no da própria câmara, podendo incumbi-los de tarefas específicas.
2 - O presidente da câmara pode delegar ou subdelegar nos vereadores o exercício da sua competência própria ou delegada.
3 - Nos casos previstos nos números anteriores os vereadores dão ao presidente informação detalhada sobre o desempenho das tarefas de que tenham sido incumbidos ou sobre o exercício da competência que neles tenha sido delegada ou subdelegada.
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7. A delegação de competências em sede de concessão de licenças, ou autorizações de utilização de edifícios, embargo, demolições, despejos sumários.
Pode pois concluir-se que existe lei habilitante que permite a delegação de competência própria do presidente da Câmara no que respeita à concessão de licenças, ou autorizações de utilização de edifícios, embargo, demolições, despejos sumários, isto é às matérias previstas nas acima transcritas alíneas l) a n) do n.º2 do artigo 68º da Lei n.º 169/99.
Essa norma é precisamente o artigo 69º, n.º2 do Lei n.º 169/99.
Neste sentido:
- Ac. do STA de 13-1-2004, proc.º n.º 05404/03, rel. Fernanda Xavier in www.dgsi.pt;
- Ac. do STA de 20-11-2002, proc.º n.º 0787/02, rel. João Cordeiro, in www.dgsi.pt; (ambos a propósito do poder do Presidente da Câmara ordenar a demolição e o despejo sumário de construção efectuada por particulares sem prévio licenciamento municipal)
- Ac. do STA de 26-9-2002, proc.º n.º 0485/02, rel. João Belchior, in www.dgsi.pt
- Ac. da Rel. de Coimbra de 19-9-2007, proc.º n.º 726/05, rel. Jorge Dias, in www.dgsi.pt a propósito da competência para embargar obras
- Ac. da Rel. de Guimarães de 23 -6-2008, proc.º n.º 815/08-1, rel. Estelita de Mendonça, a propósito da demolição dois anexos sem alvará de licença de construção.
A este respeito importa salientar que como o STA já por diversas vezes salientou o Dec.-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, ao referir-se à competência da Câmara Municipal e do seu Presidente quanto à aludida matéria urbanística em nada contende com o regime da delegação e sub delegação de competências daqueles órgãos autárquicos constante dos citados DL 100/84 e 169/99,
Neste sentido, podem ver-se, entre outros, os seguintes acórdãos do STA: de 04/02/1997 (rec. 39021), de 29/09/1998 (rec. 43429) de 30/10/2001 (rec. 47319), de 12/12/2001 (rec.45493), de 26-9-2002, proc.º n.º 0485/02, rel. João Belchior, in www.dgsi.pt onde se lê: “Efectivamente, relativamente à matéria (urbanística) que regula, o DL 445/91 (ou o RGEU, embora o recorrente apenas refira aquele DL), prevendo competências da câmara e do seu presidente, nada estatuíram quanto à matéria de delegação de competências. Mas isso não pode interpretar-se como afastamento das normas que a regulam, ou, se se preferir, que constituam lei especial, quer relativamente ao CPA ou à LAL. Efectivamente, o DL 445/91 de 20 de Novembro (ou o RGEU), ao referirem­-se à competência da Câmara Municipal e do seu Presidente quanto à aludida matéria urbanística, em nada contenderam com o regime da delegação e subdelegação de competências daqueles órgãos autárquicos, constantes do DL 100/84, depois alterado pela Lei 18/91 de 12 de Junho.”
Por isso mesmo não pode aceitar-se a argumentação genérica constante da sentença recorrida e recolhida do citado Ac. da Rel. do Porto de 6-12-2006, segundo a qual em matéria de medidas de tutela da legalidade urbanística inexiste lei de habilitação por virtude de o RGEU a não prever “a possibilidade de delegação ou subdelegação de poderes, quando é certo que a prevê expressamente a respeito de muitas outras (cfr. arts. 5º, 8º, 11º nº 9, 19º nº 12 e 75º).”
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8. A cessação de utilização
§1. Simplesmente, no caso dos autos não está em causa a concessão de licenças, ou autorizações de utilização de edifícios, embargos, demolições, ou despejos sumários, mas antes a medida de cessação da utilização prevista no artigo 109º do RJUE.
Trata-se de um novo tipo de medida de tutela da legalidade urbanística apenas consagrada em 1999, por via do Dec.- Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro, alterado pelo Dec.- Lei n.º 177/2001, de 4 de Junho.
Em caso de utilização/ocupação de edifícios ou fracções autónomas, sem a necessária licença ou autorização, ou em desconformidade com os fins nelas previstos, o presidente da câmara municipal tem o poder dever de ordenar que cesse a actividade ou utilização em causa e, caso aquela ordem não seja voluntariamente acatada, no prazo para o efeito fixado, propor à câmara municipal que delibere o despejo administrativo do imóvel (edifício ou sua fracção autónoma) - sobre esta medida cfr., v.g., João Pereira Reis e Margarida Loureiro, Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação, Anotado, Coimbra, 2002, págs. 246-247 e André Folque, Curso de Direito da Urbanização e da Edificação, Coimbra, 2007, págs. 282-284.
Quanto a esta medida não existe, efectivamente, lei habilitante.
Com efeito nem o REUJ prevê a possibilidade de o Presidente da Câmara poder delegar num vereador a competência para ordenar a cessação de utilização, nem essa possibilidade lhe é outorgada por qualquer outra lei, nomeadamente a Lei n.º 169/99.
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§2. Salvo o devido respeito, para o efeito não faz qualquer sentido fazer apelo às transcritas normas dos artigos da LAL (Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro) uma vez que estas apenas aludem às medidas de embargo, demolição, ou despejo sumário.
Por outro lado, o RJEU nada prevê a respeito desta medida de cessação de utilização.
A construção do Ministério Público recorrente, embora laboriosa, incorre numa erro flagrante: o artigo 69º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro não contém um cheque em branco permitindo que qualquer competência que em legislação avulsa viesse a ser atribuída ao Presidente da Câmara pudesse, sem mais, ser delegada nos vereadores.
O que aquele artigo 69º permite é tão somente que a competência própria do Presidente da Câmara, isto é, aquela que lhe é atribuída pelo citada Lei n.º 169/99, e que a competência delegada, isto é a competência prevista no mesmo diploma para outro órgão autárquico delegada no Presidente da Câmara, possa por este ser delegada e subdelegada nos vereadores.
Poderá questionar-se da bondade da solução legislativa, tanto mais que a tendência verificada na legislação aponta claramente para a possibilidade de delegação de competências e que se prevê expressamente essa possibilidade em matérias bem mais gravosas do que a simples cessação de utilização.
Essa é, porém, uma opção do poder legislativo que aos tribunais nada mais resta do que acatar.
Como impressivamente sintetizava o nosso maior administrativista, A competência vem sempre da lei (Marcello Caetano, Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, 1ªreimp.port., Coimbra, 1996, pág. 116).
Relembra-se que de acordo com a lei a competência não se presume, resulta sempre da lei, salvo em relação à competência implícita, e que a delegação tem de estar expressamente prevista na lei (artigo 111º, n.º2 da Constituição da República e 35º, n.º1 do Código de procedimento Administrativo).
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§3. Por outro lado, a norma constante 94º, n.º1 do RJUE não tem, manifestamente, o alcance que o recorrente lhe pretende atribuir, uma vez que a possibilidade ali prevista de o Presidente da Câmara poder delegar em qualquer dos seus vereadores se reporta exclusivamente à fiscalização administrativa da realização de operações urbanísticas “prevista no artigo anterior” isto é, no artigo 93º, e concretizada nos artigos 95º (inspecções), 96º (vistorias) e 97º (livro de obra).
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§4. Conclui-se, deste modo, que por não existir lei habilitante não comete o crime de desobediência o agente que não acata a ordem contida no despacho de um vereador em quem o Presidente de Câmara havia delegado tal competência, no sentido de cessar a utilização de uma fracção autónoma para fim diverso do previsto no respectivo alvará (neste sentido, cfr. Ac da Rel. do Porto de 6-12-2006, Col de Jur. ano XXXI, tomo 5, pág. 221, Acs da Rel. de Guimarães de 9-7-2007, proc.º n.º 1211/07, rel. Tomé Branco e de 30-6-2008, proc.º n.º 741/08, rel. Estelita de Mendonça).
A decisão recorrida deve, pois, manter-se.
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III- Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida, embora com diversa fundamentação.
Sem custas.