Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1843/07-1
Relator: ANTÓNIO GONÇALVES
Descritores: COLIGAÇÃO PASSIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/11/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: 1. A invocada actividade ilícita imputada ao Município de Braga, isto é, a construção de uma garagem em desrespeito pelo Alvará de Loteamento n.º 5/93 que foi aprovado para legitimar a edificabilidade circunscrita ao “Loteamento de Galinhela”, e as requeridas consequências jurídico-positivas que os autores avançam com vista ao levantamento desta ilegalidade - a sua demolição - porque imputadas a um órgão da administração pública no exercício de um poder público e para a prossecução de interesses postos pela lei a seu cargo, tendo por objecto a produção de efeitos jurídicos neste caso concreto constitui um acto administrativo.
2. Estando atribuída aos Tribunais Administrativos o conhecimento das acções em que se discute a responsabilidade do Estado e demais entes públicos - entre eles as autarquias - por pedidos que se incluem em actos decorrentes da gestão pública, Acórdão do T. Conflitos de 4 de Julho de 2006; www. dgsi.pt. neste denunciado pormenor é o Tribunal Administrativo o materialmente competente para conhecer deste litígio e que contrapõe os autores ao Município de Braga.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

Os autores Carlos P... e mulher Maria F..., residentes no lugar de G..., freguesia de P..., Braga, intentaram a presente acção declarativa de condenação, com processo comum e forma sumária, contra os réus Domingos P... e mulher Lucinda C... residentes no lugar de G..., freguesia de P..., Braga e Município de Braga, Praça do Município, 4700 Braga, formulando os seguintes pedidos:
- a condenação dos primeiros Réus a reconhecerem que a parede norte da garagem foi construída, em parte, por cima do murete que, pertence ao prédio dos Autores e divide os quintais dos prédios de ambas as partes, assim ofendendo o direito de propriedade destes;
- a condenação dos primeiros Réus e da segunda Ré a reconhecer que a garagem construída pelos primeiros Réus foi edificada sem respeitar as prescrições legais do alvará de Loteamento nº 5/93, por não ter obtido acordo expresso dos proprietários dos prédios confinantes, caso dos Autores e ainda por desrespeitar o embargo camarário;
- a condenação dos primeiros Réus a demolir a mencionada garagem, repondo o local no estado anterior à tal construção, por violação dos referidos preceitos legais e ainda por desrespeito do direito de personalidade e de propriedade dos Autores e ainda por abuso de direito;
- a condenação da segunda Ré a reconhecer a ilegalidade da construção da dita garagem e a promover a sua demolição, repondo a legalidade e as prescrições do alvará 5/93 por si aprovado e concedido para o Loteamento da Galinhela;
- a condenação dos primeiros Réus a pagar aos Autores uma indemnização pelos danos morais por ele sofridos e que vão continuar a sofrer, enquanto se mantiver em pé a garagem edificada por eles, a liquidar em execução de sentença, por se desconhecer até quando se vai manter a situação criada pelos Réus.

A fundamentar estes pedidos alegam o demandantes que, sendo proprietários de uma casa de habitação construída num lote de terreno integrado, tal como mais 11 lotes, o dos 1.ºs réus incluído, no chamado “Loteamento de Galinhela”, freguesia de Arentim, Braga, constataram os factos seguintes:
a) Os 1.ºs Réus construíram parte da dita garagem por sobre um muro pertencente ao prédio dos AA/Recorrentes, ofendendo o seu direito de propriedade.
b) O volume de construção atenta contra o direito de personalidade e de propriedade dos AA/Recorrentes e na sua construção os 1°s reus abusaram do direito que a lei lhes confere.
c) A Ré/recorrida Câmara Municipal de Braga embargou expressamente as obras de construção da garagem em causa, exactamente por causa de a mesma não respeitar os preceitos legais.

Os Réus contestaram o pedido que contra eles lhes é deduzido.

No despacho saneador a Ex.ma Juíza, com o fundamento em que se não verificam os pressupostos para admissibilidade da coligação dos réus, nos termos das disposições conjugadas dos art. 31.º e 288.º do C.P.Civil, absolveu os réus da instância.

Inconformados com esta decisão dela recorreram os autores Carlos P... e mulher Maria F..., que alegaram e concluíram do modo seguinte:
A. Os pedidos formulados pelos AA/Recorrentes situam-se no âmbito dos seus direitos de propriedade e de personalidade.
B. Os factos alegados consubstanciam matéria a dirimir no campo do Direito Civil.
C. A Ré Câmara Municipal de Braga pode ser demandada no âmbito do presente processo, uma vez que os factos donde emergem os alegados direitos dos Autores/Recorrentes se situam no âmbito do direito civil.
D. Mesmo a entender-se que a Câmara, no caso sub judice, terá de ser demandada nos Tribunais Administrativos, o mesmo não sucede com os 1° s Réus, contra quem foram formulados pedidos distintos relativamente aos formulados contra aquela.
E. A sentença recorrido violou o disposto nos art.° s 30°, 31°, 101° e 105° e 288° do CPC
Terminam pedindo que seja concedido provimento ao recurso, ordenando-se o prosseguimento dos autos com o reconhecimento da admissibilidade da coligação dos réus, ou, caso assim se não entenda, reconhecer-se apenas a absolvição da Ré Câmara Municipal de Braga, mantendo-se os 1° s réus na posição processual competente,

Os recorridos não apresentaram contra-alegações e a Ex.ma Juíza manteve a decisão recorrida.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

Passemos agora à análise das censuras feitas à sentença recorrida nas conclusões do recurso, considerando que é por aquelas que se afere da delimitação objectiva deste (artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.º 1, do C.P.C.).

A questão posta no recurso é a de saber se existe obstáculo ao prosseguimento da lide em virtude de se não verificarem os requisitos da coligação de réus que ocorre na acção.


I. O princípio contido no artigo 66.º do Cód. Proc. Civil e também consignado no artigo 18.º, n.º 1 e 2, da L.O.T.J. (Lei 3/99, de 13.01) é o de que são da competência do tribunal comum as causas não atribuídas por lei a alguma jurisdição especial.
Teremos, assim, que indagar se a acção envolve matéria cuja apreciação seja da competência dos tribunais do contencioso administrativo, por aplicação do disposto no art.º 220.º da Lei n.º 235/86, de 18/08.
Em princípio, pertence aos tribunais judiciais a competência jurisdicional para conhecer dos pleitos suscitados pela actividade que a Administração desenvolve nos termos e pelas formas próprias do direito privado. Se se estiver perante um acto administrativo, definitivo e executório, a regra é a impugnação nos tribunais administrativos; a excepção, a insusceptibilidade de recurso e a necessidade de propor acções nos tribunais civis. Prof. Marcello Caetano; Manual do Direito Administrativo, vol. II, pág. 1344/1345.

Estatui o n.º 3 do art.º 212.º da nossa Lei Fundamental que compete aos tribunais administrativos o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, ou seja, no âmbito da administração pública globalmente considerada.
No seguimento deste princípio constitucional havemos de ter presente o que prescreve o art. 3.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - ETAF - (aprovado pelo Dec.Lei n.º 129/84 de 27/04), isto é, que incumbe aos tribunais administrativos, na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas
Quer isto dizer que, para sabermos se é competente para a acção o Tribunal Administrativo e Fiscal ou o Tribunal Comum o que importa averiguar é se nela se discute uma relação integrada no âmbito de uma relação jurídica administrativa Mas a "pedra de toque" para efeitos de determinação da competência material dos tribunais administrativos não reside propriamente na dicotomia "actos de gestão pública - actos de gestão privada", mas sim no critério constitucional plasmado no art.º 212º, nº 3 da Lei Fundamental (Ac. STJ de 7/10/ 2004; www.dgsi.pt)., mais precisamente se está incluída numa gestão privada ou se nela se discute uma relação incluída numa gestão pública, ou seja, se as circunstâncias factuais nela abordadas se enquadram numa actividade regulada por normas de direito privado (civil ou comercial) ou, antes, numa actividade disciplinada por normas de direito público administrativo.
Se é assim, na avaliação desta problemática vai ser preciso que tenhamos de recorrer ao significado do conceito clássico de actos de gestão pública e actos de gestão privada, que os tratadistas se têm esforçado para determinar e caracterizar, tudo com vista a podermos alcançar o que distingue cada um destas acepções.
Para sabermos se a recorrida usou a via judicial adequada para fazer valer o direito que alega ter, necessário se torna saber qual a natureza do acto que pretende ver acautelado com a providência que vem requerer: - acto de gestão pública ou acto de gestão privada; o primeiro é da competência dos tribunais administrativos e o segundo dos tribunais comuns.
São actos de gestão privada, de modo geral, aqueles que, embora praticados pelos órgãos, agentes ou representantes do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, estão sujeitas às mesmas regras que vigorariam para a hipótese de serem praticados por simples particulares; são actos em que o Estado ou pessoa pública intervém como simples particular, despido do seu poder público". Prof. Antunes Varela; Obrigações; I Volume; pág. 540.
São actos de gestão pública os praticados pelos órgãos ou agentes da Administração no exercício de um poder público integrado na realização de uma função pública, compreendida nas atribuições de que dispõem e regulados por normas de direito público. Ac. STA de 24/01/2002, proc. nº. 048274 e Ac. do Tribunal de Conflitos no proc. nº. 11/2003.
O direito privado regula as relações jurídicas estabelecidas entre particulares ou entre particulares e o Estado ou outros entes públicos, mas intervindo o Estado ou esses entes públicos em veste de particular, isto é, despidos de "imperium" ou poder soberano. Prof. Mota Pinto; Teoria Geral; pág. 16.
Nem sempre a Administração surge com a mesma roupagem perante os particulares: umas vezes aparece em posição de desigualdade e outras vezes de igual para igual.
Na primeira hipótese a Administração actua em situação de privilégio, de supremacia, não necessitando de socorrer-se da via judicial para satisfazer as necessidades que a lei lhe impõe realizar; satisfá-las com a sua própria força e autoridade, ainda que contra a vontade dos particulares, eventualmente discordantes Prof. Afonso Queiró; Direito Administrativo; pág. 66/67; na segunda hipótese a Administração tem a posição de um simples particular e a sua acção é regulada pelo direito privado, isto é, sem qualquer privilégio.

II. A relação jurídica ora configurada entre os autores e o réu Município de Braga consubstancia um acto de gestão pública (munido da sua potestas) ou um acto de gestão privada (despojado de auctoritas)?
Para sabermos se é o direito público ou o direito privado a regular a questão que na acção se coloca, a natureza da relação assim em debate terá de ser analisada segundo a versão apresentada em juízo, isto é, através da ponderação e exame da sua descrição integrada no pedido e na sua causa de pedir, pois é por aquela que se vai aferir a posição a tomar. Ac. STJ de 03.02.1987; BMJ; 364.º; pág. 591.
A estrutura da relação jurídica trazida à lide configura uma manifestação de tutela do direito de propriedade, acautelada pelos autores e a incidir sobre o seu lote de terreno que faz parte do chamado “Loteamento de Galinhela” e que os réus Domingos P... e mulher Lucinda C..., também donos de outro lote também incluído no mesmo loteamento (limítrofe ao seu), nele terão construído uma garagem que assenta, em parte, no muro que está construído no seu dos demandantes.
A queixa que os autores apresentam contra o Município de Braga é no sentido de que, apesar de ter sido embargada a edificação da garagem, os seus construtores prosseguiram a realização da obra sem que esta autarquia tenha promovido a sua demolição, como podia e devia fazer, contra esta atitude se insurgindo; e é neste contexto jurídico-processual que os autores pedem que o Município seja condenado:
- A reconhecer que a garagem construída pelos primeiros réus foi edificada sem respeitar as prescrições legais do Alvará de Loteamento n.º 5/93; e
- A reconhecer a ilegalidade da construção da dita garagem e, por conseguinte, promover a sua demolição, repondo a legalidade e as prescrições daquele Alvará.

III. A invocada actividade ilícita imputada ao Município de Braga, isto é, a construção de uma garagem em desrespeito pelo Alvará de Loteamento n.º 5/93 que foi aprovado para legitimar a edificabilidade circunscrita ao “Loteamento de Galinhela”, e as requeridas consequências jurídico-positivas que os autores avançam com vista ao levantamento desta ilegalidade - a sua demolição - porque imputadas a um órgão da administração pública no exercício de um poder público e para a prossecução de interesses postos pela lei a seu cargo, tendo por objecto a produção de efeitos jurídicos neste caso concreto constitui um acto administrativo.
Emoldurando um acto provindo duma entidade munida de autoridade púbica, não controlada pelo particular, é a conduta imputada à autarquia demandada um acto de gestão pública, enquadrada no âmbito do designado "jus imperii", no exercício de uma função soberana e, por isso, subsumível ao preceituado no art.º 51.º, al. h), do ETAF. Nos termos do art. 51, al. h) do ETAF compete aos tribunas administrativos de círculo conhecer das acções sobre responsabilidade civil do Estado e dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de actos de gestão pública.
Estando atribuída aos Tribunais Administrativos o conhecimento das acções em que se discute a responsabilidade do Estado e demais entes públicos - entre eles as autarquias - por pedidos que se incluem em actos decorrentes da gestão pública, Acórdão do T. Conflitos de 4 de Julho de 2006; www. dgsi.pt. neste denunciado pormenor é o Tribunal Administrativo o materialmente competente para conhecer deste litígio e que contrapõe os autores ao Município de Braga.

IV. A admissibilidade da coligação de réus, por pedidos diferentes, está prevista no art.º 30.º do C.P.Civil, disciplinando e definindo este normativo legal o modo e os pressupostos legais consentidos para se poder fazer uso desta figura jurídico-processual. ARTIGO 30.º(Coligação de autores e de réus)
1. É permitida a coligação de autores contra um ou vários réus e é permitido a um autor demandar conjuntamente vários réus, por pedidos diferentes, quando a causa de pedir seja a mesma e única ou quando os pedidos estejam entre si numa relação de prejudicialidade ou de dependência.
2. É igualmente lícita a coligação quando, sendo embora diferente a causa de pedir, a procedência dos pedidos principais dependa essencialmente da apreciação dos mesmos factos ou da interpretação e aplicação das mesmas regras de direito ou de cláusulas de contratos perfeitamente análogas.
3. É admitida a coligação quando os pedidos deduzidos contra os vários réus se baseiam na invocação da obrigação cartular, quanto a uns, e da respectiva relação subjacente, quanto a outros.
4. É igualmente permitida a coligação sempre que os requerentes de processos especiais de recuperação da empresa e de falência justifiquem a existência de uma relação de grupo, nos termos dos artigos 488.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais.
O cuidado para onde converge a nossa atenção não é tanto o de desvendar se estão verificados aqueles requisitos exigidos para a coligação, mas antes o de averiguar se existe especificado obstáculo pontificado no disposto no art.º 31.º do C.P.Civil que, imperativamente, imponha a insusceptibilidade de a parte poder caminhar através deste adjectivo trilho.
E observando atentamente, como sempre terá de acontecer, o comando que advém daquele preceito legal, inequivocamente e com a maior segurança podemos afirmar que, nos termos do disposto no n.º 1 do art.º 31.º do C.P.Civil, ARTIGO 31.º (Obstáculos à coligação)
1. A coligação não é admissível quando aos pedidos correspondam formas de processo diferentes ou a acumulação possa ofender regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia; mas não impede a cumulação a diversidade da forma de processo que derive unicamente do valor, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.
a coligação deixa de ser admissível se o tribunal não for materialmente competente para todos os pedidos.
Estando a discussão da relação jurídica invocada pelos autores/recorrentes confiada ao tribunal administrativo, como procurámos demonstrar, segue-se que, em consequência deste intransponível óbice, jamais poderá haver lugar ao suprimento da coligação contemplada no art.º 31.º -A, do C.P.Civil ARTIGO 31.º -A (Suprimento da coligação ilegal)
1. Ocorrendo coligação sem que entre os pedidos exista a conexão exigida pelo artigo 30°, o juiz notificará o autor para, no prazo fixado, indicar qual o pedido que pretende ver apreciado no processo, sob cominação de, não o fazendo, o réu ser absolvido da instância quanto a todos eles.
2. Havendo pluralidade de autores, serão todos notificados, nos termos do número anterior, para, por acordo, esclarecerem quais os pedidos que pretendem ver apreciados no processo.
3. Feita a indicação a que aludem os números anteriores, o juiz absolve o réu da instância relativamente aos outros pedidos.
e a acção igualmente não pode prosseguir.
A decisão recorrida perfilha este entendimento e o seu acerto não merece qualquer dúvida.

Pelo exposto, negando-se provimento ao agravo, confirma-se a decisão recorrida.

Custas pelos agravantes.

Guimarães, 11 de Outubro de 2007