Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
579/08-1
Relator: GOUVEIA BARROS
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/17/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: JULGADA IMPROCEDENTE
Sumário: I) A recusa da realização do exame por parte do investigando é livremente apreciada pelo tribunal e só opera a inversão do ónus probatório se for injustificada e tornar impossível a prova ao investigante.
II) Assim, não tendo tal recusa efeito cominatório quanto aos factos submetidos a demonstração, não tem o tribunal de advertir o réu sobre as consequências da falta de colaboração, por tal ser rigorosamente redundante.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:


F. C. S., solteiro, maior, residente na freguesia de Pedralva, concelho de Braga, propôs a presente acção declarativa contra M. A. V., solteiro, residente na mesma freguesia e concelho, pedindo ser reconhecido como filho do réu e ordenados os pertinentes averbamentos no seu registo de nascimento.
Alega para tal e em síntese, que nasceu em 4/1/81, fruto das relações sexuais entre o réu e sua mãe, então já viúva, iniciadas em Março de 1980 e que se prolongaram até meados de 1993, sempre tendo sido tratado pelo réu como filho e consentindo que ele autor o tratasse por pai, sendo assim conhecidos pelos moradores da freguesia de Pedralva onde ambos residem.
Contestou o réu para impugnar os factos alegados pelo autor para fundamentar a sua pretensão, concluindo a pugnar pela improcedência da acção.
Saneado o processo e elaborada base instrutória, prosseguiram os autos seus termos, vindo a ser proferida sentença a declarar a acção procedente, estabelecendo a pretendida paternidade.
Inconformado, recorre o réu pedindo a sua revogação e a consequente absolvição do pedido, dizendo em conclusão da alegação oferecida que:
a) A douta sentença recorrida faz uma errónea valoração da vaga e infundamentada prova a que houve lugar em audiência de julgamento, atribuindo uma paternidade com base em relações sexuais exclusivas, chocantemente discordantes do que se sabe e infere da conduta da mãe do A.
b) Pelo que, violou o art. 1869° do CC, aceitando como seguro e convincente para uma relação familiar desta extensão e gravidade uma prova ténue e vaga, prestada por quem nada podia saber do caso em apreciação.
c) Porque o R. não foi advertido como o deveria ser, do valor probatório da sua recusa, foi-lhe violado o direito consagrado no artigo 25º da CRP, de forma que não pode ser aceite dado o fundamento invocado para aquela.
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Em resposta o autor defende a confirmação do decidido.
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Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir.
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Factos provados:
O tribunal recorrido deu por provados os seguintes factos:
1) O Autor nasceu no dia 04 de Janeiro de 1981, na freguesia de São José de São Lázaro, em Braga.
2) É filho de T. C. da S., viúva, natural da freguesia de Pedralva, Braga e aí residente, no lugar de Picos.
3) A mãe do Autor e o Réu mantiveram relações sexuais desde Março de 1980 até meados de 1993.
4) Nos meses de Março a Julho de 1980 só com o Réu a mãe do Autor manteve relações sexuais.
5) O Autor nasceu no termo da gravidez resultante dessas relações de sexo.
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Fundamentação:
Porque o objecto do recurso se encontra balizado pelo teor das conclusões da alegação do recorrente, cingiremos à sua análise a nossa apreciação, procurando acompanhar em brevidade a extrema contenção do recorrente na enunciação das razões da sua divergência quanto ao decidido.
Ora, porque vem dada ênfase à circunstância de o tribunal a quo, aquando da notificação para efectuar o exame hematológico requerido pelo autor, não ter advertido o réu de que a sua recusa teria valor probatório, começaremos então por aí a análise, dado poder ser entendida tal alegação como invocação de irregularidade, potencialmente geradora de nulidade secundária, ainda que arguida muito fora de tempo.
Compulsados os autos verifica-se que o réu foi notificado em 15 de Novembro de 2006 para comparecer no INML do Porto no dia 22 seguinte, a fim de se proceder às necessárias colheitas de amostras biológicas, mas faltou à diligência e não justificou a falta como lhe cumpria.
Só em 14/12/06 e na sequência de requerimento do autor, entrado em juízo no dia anterior, veio o réu declarar que “não aceita a requerida prova pericial por não a considerar facto relevante para o exame e decisão da causa.”
Ignora-se, naturalmente, o pressuposto da afirmação produzida pelo réu, até mesmo porque na contestação afirmara nunca ter mantido com a mãe do autor quaisquer relações de sexo (artigo 2º).
De todo o modo, não prevendo a lei a necessidade de advertir o réu sobre os efeitos da recusa, óbvio se torna não ter sido preterida qualquer formalidade como está pressuposto no artigo 201º, nº 1 do CPC.
Acresce que, como bem sublinha o autor na resposta à alegação do recorrente, a recusa de colaboração da parte tem um efeito taxado na lei (nº2 do artº 519º do CPC), ou seja, é deferida ao tribunal a livre valoração da recusa, não tendo por conseguinte nenhum efeito cominatório.
Ora, seria patentemente redundante advertir o réu de que a recusa de colaboração seria livremente apreciada pelo tribunal, até mesmo porque estando ele assistido por mandatário judicial – aliás experiente e distinto – será de presumir que lhe tivesse sido dado conhecimento da relevância processual da atitude que assumiu.
Repare-se que o autor invocou (artigo 24º da p.i.) a presunção estabelecida na alínea e) do nº1 do artigo 1871º do CC, a qual se considera ilidida quando existam dúvidas sérias sobre a paternidade do investigado.
O réu arrolara duas testemunhas que se propusera apresentar em julgamento, mas mesmo dessas acabou por prescindir (fls 94) sem que tivesse de fazê-lo.
Caso não fosse incumbência sua a apresentação de tais testemunhas em juízo, seria sustentável que ao declarar prescindir delas, o tribunal devesse igualmente adverti-lo dos efeitos processuais da não audição das testemunhas por si arroladas?
Não se desconhece que a jurisprudência, certamente apoiada no disposto no nº 2 (in fine) do citado artigo 519º, entende que a recusa faz operar a inversão do ónus da prova sobre a exclusividade das relações sexuais (Ac, STJ de 28/5/02, rel. Afonso de Melo) mas, como se colhe da contestação, tal questão não é suscitada pelo réu e, como adiante se esclarecerá, também não tem qualquer importância na economia desta acção.
Dito isto, torna-se então incompreensível a afirmação recolhida sob a alínea b) do enunciado da conclusão formulada pelo recorrente: considerar “a prova ténue e vaga prestada por quem nada podia saber do caso em apreciação” por parte de quem havia dito não considerar a prova pericial relevante para o exame e decisão da causa”, faz legitimamente supor que a prova que tem em mente será a certeza absoluta, “a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente”, como diz Antunes Varela (Manual, pág. 435/436).
Só que “as provas não têm que criar no espírito do julgador uma certeza para além de todas as dúvidas, mas tão só a probabilidade bastante da existência do facto, tendo em conta as regras da experiência comum”, como se refere no Ac. do STJ de 15/6/04 (rel. Ponce Leão).
Partilhamos com o réu o entendimento de que a pretensão do autor envolve o estabelecimento de uma relação familiar extensa e extremamente significativa na sua esfera pessoal e patrimonial e, por isso mesmo, se torna maior a nossa perplexidade quando considera irrelevante o exame pericial.
Estranheza que se avoluma quando constatamos que nem sequer esteve presente na audiência de julgamento onde tal relação iria estar em discussão (e na qual deveria ter prestado depoimento de parte, se tivesse sido conseguida a sua notificação) e, além disso e como já se referiu, quando o próprio réu abdicou de apresentar qualquer prova para ajudar o tribunal a decidir.
Crê-se ainda assim que só por distracção se poderá considerar ténue e vaga a prova testemunhal produzida e na qual o tribunal fundou a sua convicção.
Não podendo sindicar-se nesta instância nem o teor dos depoimentos (porque não vem sequer impugnada a decisão de facto), nem a razão de ciência das testemunhas Maria Aurora Gil e Manuel Vaz Esteves invocados na motivação da decisão de fls. 103, verifica-se que a convicção se ancorou também no depoimento prestado pela mãe do autor, ouvida como testemunha.
Ora, haverá alguém mais habilitado para esclarecer o tribunal sobre a paternidade dos filhos do que a própria mãe?
Chegámos assim à derradeira questão suscitada pelo recorrente que se prende com o facto de ter sido “atribuída uma paternidade com base em relações sexuais exclusivas chocantemente discordantes do que se sabe e infere da conduta da mãe do autor.”
O réu que num assomo de dignidade que se regista (por ser incomum em processos desta natureza) havia proclamado (artigo 3º da contestação) ser a mãe do autor “mulher séria e honesta”, caiu agora no lugar comum da insinuação malévola e inconsequente que, feito este reparo, nos abstemos de comentar.
Simplesmente, parece não ter atentado que de há muito que a prova da exclusividade das relações sexuais deixou de ser determinante para a procedência da acção de investigação.
Como se decidiu no Ac. do STJ de 27/9/05 (rel. Fernandes Magalhães) “nada impede hoje que se considere que o nascimento do investigando é fruto da relação sexual mantida por sua mãe com o investigado no período legal da concepção, mesmo que se não tenha provado a exclusividade dessa relação em tal período” [ver no mesmo sentido, Acs STJ de 27/11/03 (Abílio de Vasconcelos) e de 19/4/01 (Pais de Sousa)].
O estabelecimento da filiação é um direito constitucional (artº26º) e tem subjacente um interesse de ordem pública cuja prossecução implicou a adaptação tanto do texto legal como da jurisprudência ao acolhimento dos enormes progressos da ciência no domínio da investigação da paternidade (e maternidade) biológica.
E mesmo alguns obstáculos legais que subsistiam e barravam tal investigação têm vindo a ser derrubados por via jurisprudencial, dando-se assim absoluta primazia à descoberta da verdade biológica necessária a assegurar o direito à filiação (v.g. Acs. TC nº 23/2006 e 609/2007).
Sobre a evolução legislativa e jurisprudencial não nos deteremos pois está amplamente documentada, assinalando-se em particular os excelentes contributos que nesse domínio constituem os Estudos do Sr. Conselheiro Baltazar Coelho e do Sr. Desembargador Paulo Távora Victor inseridos na Colectânea de Jurisprudência, respectivamente, tomo I/99 (Sup), pág.13 e III/03 (Sup), pág. 11).
Como se escreve no Acórdão do STJ de 12/9/06 (Alves Velho) existem três tipos de acção de investigação de paternidade: um assente nas presunções estabelecidas no artigo 1871º do CC, outro ancorado na exclusividade das relações sexuais e no Assento de 21/6/83 e outro nos exames laboratoriais, hematológicos ou do ADN.
No caso que nos ocupa a paternidade foi declarada com base na presunção estabelecida na alínea e) do nº1 do artigo 1871º do CC, introduzida pela Lei nº21/98, de 12 de Maio.
Ora, como se diz nesse acórdão de 12/9/06, “provadas que estão as relações sexuais no período legal da concepção e indemonstradas que ficaram circunstâncias susceptíveis de gerar dúvidas sobre a paternidade”, beneficia o autor da presunção estabelecida em tal alínea e ao tribunal nada mais resta do que estabelecer a paternidade em harmonia com ela.
Como refere o Conselheiro Baltazar Coelho no mencionado Estudo (pág. 18) “nesta segunda espécie de acções de investigação de paternidade (por prova indirecta), face às presunções legais em que se baseiam, opera-se, não a inversão, mas uma especial modificação do ónus da prova.
Assim, por um lado, as indicadas presunções não cedem perante simples contraprova (…) e por outro lado, também não é necessário, para destruir a força probatória das faladas presunções, fazer prova do contrário (…).
Requere-se, para afastar a presunção, apenas que se criem, no espírito dos juízes, dúvidas sérias acerca da paternidade do investigado.
Do exposto, resulta que, se a prova da paternidade biológica é decisiva nas acções em que o thema probandum seja somente essa relação natural, já o não é tanto naqueloutras de reconhecimento judicial com base em alguma das presunções enunciadas no nº1 do art. 1871º do Código Civil.
É que, nesta segunda espécie de acções, uma vez provada factualidade integradora da base de qualquer das ditas presunções, tem-se como demonstrada a paternidade investigada, a menos que sobre esta, surjam dúvidas sérias (que) hão-de emergir do conjunto da prova produzida, inclusive de natureza pericial.”
Do exposto resulta que, assentando o estabelecimento da paternidade em qualquer das presunções plasmadas no artigo 1871º, a opção do investigado de recusar o exame pericial e de prescindir de oferecer qualquer prova que suscite dúvida séria sobre a paternidade, apresenta-se, no plano técnico, como temerária, ainda que tenha a vantagem de poupar ao réu o custo do exame a que se furtou…
Em suma, improcedem todas as conclusões da alegação do recorrente.
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Sobre má fé:
Como se viu, o tribunal recorrido deu como provado que a mãe da A. e o réu mantiveram relações sexuais entre si desde Março de 1980 até meados de 1993, ou seja, ao longo de mais de 13 anos.
O réu na contestação não suscitou a questão da exclusividade das relações sexuais (só agora em sede de recurso a colocando, ainda que de modo implícito), ancorando a sua defesa na negação pura e simples de tal relacionamento sexual.
O tribunal a quo não valorou o comportamento processual do réu, objectivamente subsumível à previsão da alínea a) do nº2 do artigo 456º do CPC, sendo que o conhecimento de tal questão é oficioso.
Porém e face à designada proibição de indefesa reiteradamente assinalada pelo Tribunal Constitucional neste domínio (Acs. 440/94, 103/95 e 357/98), cumpre facultar ao réu pronunciar-se sobre a sua eventual condenação como litigante de má fé e/ou sobre a extensão de tal condenação, atenta a respectiva moldura legal aplicável.
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Decisão:
Em face do exposto, julga-se a apelação improcedente e confirma-se a douta sentença impugnada no tocante ao mérito da causa, consignando-se o prazo de dez dias para o réu se pronunciar sobre a má fé, nos termos acima assinalados.
Custas pelo recorrente.
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Notifique e, oportunamente, concluse de novo para decisão sobre a má fé.
Guimarães, 17 de Abril de 2008