Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
58327/21.4YIPRT.G1
Relator: MARGARIDA PINTO GOMES
Descritores: NULIDADE DE SENTENÇA
FACTOS ESSENCIAIS
INSTRUMENTAIS
COMPLEMENTARES E CONCRETIZADORES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Sendo a causa de pedir na ação o fornecimento de produtos do comércio da autora, no valor de € 46.288,82, titulados pelas faturas juntas aos autos e não pago integralmente pela ré não pode considerar-se facto instrumental que parte do valor em dívida diz respeito aos encargos com letras não pagas e sucessivas reformas nos termos constantes do extracto de conta corrente junto a fls. 43 verso e seguintes dos autos.
2. Tem-se por instrumental um facto que permite ao tribunal motivar a decisão sobre os demais factos a saber, no caso sub judice e atenta a causa de pedir,o fornecimento de produtos no valor de € 46.288,82 e o seu não integral pagamento.
3. Será complemento que as partes hajam alegado aqueles que se mostram constitutivos do direito ou integrantes da exceção e concretizadores os que “concretizam” anteriores afirmações genéricas que tenham sido feitas.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

 I. RELATÓRIO

F..., Lda instaurou acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos, contra AA, pedindo a sua condenação no pagamento do valor de € 41.602,38 acrescido de juros de mora, por conta do não pagamento de uns produtos por si vendidos.

O requerido deduziu oposição defendendo que apenas deve uma quantia menor, cerca de € 3256,04.
 
Foi realizada audiência de discussão e julgamento e proferida sentença que julgou procedente a ação e em consequência condenou o réu AA a pagar à autora F..., Lda., a quantia de € 41.602,38 (quarenta e um mil euros seiscentos e dois euros e trinta e oito cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa dos juros comerciais, vencidos desde a citação e até efectivo e integral pagamento.

Inconformado veio o réu recorrer da decisão apresentando as seguintes conclusões:

1) O Réu está a ser vítima de uma enorme injustiça resultante de um astucioso plano arquitetado pela Autora para lhe exigir o que bem sabe não ser devido.
2) Salvo o devido respeito, e que é muito, entende o Réu que a douta sentença recorrida enferma de nulidade, por excesso de pronúncia, uma vez que tomou em consideração factos que não foram alegados pelas partes e que o tribunal não podia conhecer.
3) Analisados os articulados, verifica-se que causa de pedir da presente ação é unicamente constituída pelas relações comerciais entre a Autora e ora apelante tituladas pelas faturas descritas no requerimento de injunção.
4) Pese embora o exposto, analisados os pontos nº 4, 5 e 6 dos Factos Provados, o Mmo. Juiz a quo considerou que o valor em débito por parte do apelante à Autora emerge não só do não pagamento de faturas, mas também de encargos com letras não pagas e sucessivas reformas.
5) Tendo em atenção o disposto nos arts. 5.º, nº 1, 260.º, 265.º, nº 1, e 611.º, nº 1, do CPC, entende o apelante que o tribunal a quo não podia ter tomado conhecimento daquela factualidade e, com base na mesma, ter condenado aquele no pagamento à Autora da quantia de €41.602,38.
6) Contrariamente ao que consta da douta decisão recorrida, a referida factualidade não é meramente instrumental. Discutindo-se relações comerciais entre dois comerciantes, saber se determinada quantia em débito resulta do não pagamento de faturas que titulam a compra e venda de artigos ou do não pagamento de “encargos com letras não pagas e sucessivas reformas” constitui factualidade essencial.
7) Ao ter decidido que o débito do apelante está sustentado em encargos havidos pela Autora com letras, o tribunal a quo conheceu questão que lhe estava vedada, nos termos do art. 608.º, nº 2, do CPC, indo além da causa de pedir alegada.
8) Deste modo, a douta sentença recorrida é nula, nos termos do disposto no art. 615.º, nº 1, al. d), do CPC, pelo que deve revogada e deve ser proferido acórdão que absolva o apelante do pedido.
9) Ainda que assim não se considerasse, o que apenas se concebe por mera hipótese de raciocínio, entende o apelante que nunca podiam ter sido considerados provados alguns dos factos constantes da douta sentença recorrida.
10) Na douta sentença recorrida, e com interesse para esta parte do presente recurso, consideraram-se os seguintes factos provados:
4. Em face do não pagamento das faturas respeitantes aos artigos fornecidos pela Requerente, todas elas já vencidas, encontra-se, neste momento, em dívida o valor global de € 41.602,38 (quarenta e um mil seiscentos e dois euros e trinta e oito cêntimos), titulado pelas seguintes faturas:
- FT ...83, no valor de € 9.859,37;
- FT ...84, no valor de € 3.691,71;
- FT ...11, no valor de € 2.730,45;
- FT ...02, no valor de € 1.693,52;
- FT ...03, no valor de € 4.099,93;
- FT ...86, no valor de € 2.864,05;
- FT ...87, no valor de € 7.893,99;
- FT ...27, no valor de € 925,65;
- FT ...29, no valor de € 2.078,30;
- ..., no valor de € 901.45;
- FT ...93, no valor de € 1.331,00;
- FT ...94, no valor de € 786,50;
- FT ...57, no valor de € 744,72;
- FT ...99, no valor de € 2.581,06;
- FT ...76, no valor de € 460,80;
- FT ...77, no valor de € 370,50;
- FT ...98, no valor de € 3.256,04.
5. Das faturas vindas de relacionar, o requerido pagou parcialmente algumas delas, pelo que se encontra em dívida o valor de € 41.602,38 (quarenta e um mil, seiscentos e dois euros e trinta e oito cêntimos).
6. Parte do valor em dívida diz respeito aos encargos com letras não pagas e sucessivas reformas nos termos constantes do extracto de conta corrente junto a fls. 43 verso e seguintes dos autos – facto aditado ao abrigo do artigo 5º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil.
7. Apesar de interpelado, por diversas vezes, para proceder à liquidação do remanescente de tais faturas, o requerido tem vindo a protelar indefinidamente o seu pagamento, não o tendo, até ao presente momento, concretizado.
9. A autora interpelou o réu para pagamento, diversas vezes ao longo do tempo, mas a quantia não foi paga.”
11) Para considerar provada a factualidade referida, o tribunal a quo levou em consideração as declarações do representante legal da Autora, BB, os depoimentos das testemunhas CC, DD e EE, bem como os recibos e o extrato de conta corrente constantes dos autos.
12) A respeito das declarações do representante legal da Autora, BB, e do depoimento da testemunha CC importa frisar que ambos, pela sua qualidade de gerente e sócio da Autora, respetivamente, têm um manifesto interesse direto na causa, pelo que é temerário sustentar nessas declarações e depoimento o destino de uma ação em que se discutem relações comerciais e recebimentos da entidade que representam e que detêm o que deles resulta.
13) Além disso, das declarações do gerente da Autora e do depoimento das referidas testemunhas não resultou indubitável e claro qual o valor em débito por parte do Autor, por referência às faturas invocadas no requerimento de injunção.
14) Por outro lado, do depoimento da testemunha DD resulta que era esta a responsável pela gestão da ourivesaria do Réu, sendo o valor em débito pelo Réu à Autora muito inferior ao valor pedido nos presentes autos.
15) Os recibos de pagamento emitidos pela Autora a favor do Réu foram juntos por este por requerimento de 11.02.2022 e em momento algum foram impugnados ou o seu conteúdo ou instruções foram negados pela Autora, nos termos e no prazo previsto no art. 444.º, nº 1, do CPC, pelo que têm integral valor probatório.
16) Analisando esses recibos e os valores deles contantes, verifica-se que o Réu pagou à Autora o montante de €13.530,75 respeitante às faturas invocadas no requerimento de injunção e o montante de €10.006,91 respeitante a notas de débito.
17) Verifica-se ainda que esses recibos respeitam todos à fatura nº ...03 e seguintes, o que apenas pode significar que as faturas anteriores, nomeadamente as nº ...83, ...84, ...11 e ...02 invocadas no requerimento de injunção, se encontram totalmente pagas.
18) No que respeita às interpelações do Réu para pagar, nenhuma prova convincente foi realizada a esse respeito, quer testemunhal quer documental.
19) Assim, deve alterar-se a decisão relativa aos mencionados pontos Factos Provados, passando os mesmos a ter o seguinte teor:
4. Em face do não pagamento das faturas respeitantes aos artigos fornecidos pela Requerente, todas elas já vencidas, encontra-se, neste momento, em dívida o valor global de €14.763,24 (catorze mil setecentos e sessenta e três euros e vinte e quatro cêntimos), titulado pelas seguintes faturas:
- FT ...03, no valor de €4.099,93;
- FT ...87, no valor de €7.893,99;
- FT ...93, no valor de €1.331,00;
- FT ...94, no valor de €786,50;
- FT ...29, no valor de €2.078,30;
- FT ...57, no valor de € 744,72;
- FT ...99, no valor de € 2.581,06;
- FT ...76, no valor de € 460,80;
- FT ...77, no valor de € 370,50;
- FT ...98, no valor de € 3.256,04.
5. Das faturas vindas de relacionar, o requerido pagou parcialmente algumas delas, pelo que se encontra em dívida o valor de € €14.763,24 (quarenta e um mil, seiscentos e dois euros e trinta e oito cêntimos).
6. Retirado
7. Retirado
9. Retirado
20) Atendendo à alteração da decisão de facto decorrente da parte anterior do presente recurso, verifica-se que, pelo incumprimento da obrigação de pagar o preço, nos termos do disposto no art. 879.º, al. c), do C. Civil, apenas pode o Réu ser condenado a pagar à Autora o montante de €14.763,24.
21) Deste modo, deve ser revogada a douta sentença recorrida e proferido acórdão que condene o Réu no pagamento à Autora do montante de €14.763,24.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida e proferido acórdão nos termos atrás descritos, como é de JUSTIÇA.

Veio a Autora contra alegar e recorrer subordinadamente apresentando as seguintes conclusões:

1. Em primeiro lugar propugna-se pela inadmissibilidade do presente recurso, em virtude de o Recorrente não ter respeitado, na sua apresentação, os prazos legalmente previstos.
2. Como decorre da ata de audiência de julgamento, com a referência ...16, datada de 17 de Maio de 2022, finda a produção de prova e concluídas as alegações das mandatárias, foi proferida a douta sentença em crise, de forma oral, tendo todos os presentes ficado imediatamente notificados do seu teor.
3. Dispõe o nº 3 do artigo 638º do CPC que “ tratando-se de despachos ou sentenças orais, reproduzidos no processo - como será, indiscutivelmente, o caso – o prazo corre do dia em que foram proferidos, se a parte esteve presente ou foi notificada para assistir ao ato.
4. Encontrando-se o Réu presente durante toda a audiência de julgamento, foi imediatamente notificado da decisão.
5. Isto posto, o prazo para a interposição de recurso da sentença, proferida em 17 de Maio, iniciou-se no dia imediatamente seguinte.
6. Tratando-se de um prazo de 30 (trinta dias), acrescido de mais 10 (dez) dias, decorrente da circunstância de ter sido impugnada a matéria de facto, de harmonia com as mais elementares regras de contagem de prazos processuais, o prazo para a interposição do recurso terminou no dia 27 de Junho de 2022.
7. Não se tendo sido paga a taxa correspondente ao segundo dia de multa, deve considerar-se que o recurso foi apresentado fora de prazo, devendo ser liminarmente rejeitado.
8. Subsidiariamente, sempre se dirá que, não obstante vir a ser apreciado, deverá ser julgado improcedente, porquanto a douta sentença em crise não merece, em nossa humilde opinião, a menor crítica.
9. Ato contínuo, urge deixar claro que, ao invés do que sustenta a Apelante, não pode anular-se a sentença por excesso de pronúncia, uma vez que ela não enferma desse vício.
10. Como o próprio recorrente admite nas suas alegações, a causa de pedir da presente ação assenta na relação comercial estabelecida entre a Autora e o Réu, mais concretamente no não pagamento pelo Recorrente de diversas mercadorias que, ao longo de anos de trocas comerciais, foi adquirindo à Autora, pelo que, pronunciando-se apenas sobre essa situação, não se verifica qualquer nulidade por excesso de pronúncia.
11. Assim, ao invés da tese expendida pela Recorrente, não estamos, neste caso, perante relações comerciais e jurídicas distintas, mas antes e apenas perante o não pagamento pelo Réu das avultadas dívidas em que incorreu no decurso dessa relação comercial, motivo pelo qual não se vislumbra qualquer excesso de pronúncia e/ou conhecimento de questões que extravasem da causa de pedir, devendo, por isso, improceder a nulidade arguida.
12. Sem prescindir, sempre se dirá que a pretensão de alteração da matéria de facto, invocada pelo Recorrente nas suas alegações, mais não constitui do que uma tentativa frustrada de distorção de tudo quanto ficou provado em sede de audiência de julgamento.
13. Neste enquadramento, deve conferir-se credibilidade aos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela Autora, bem como às declarações prestadas pelo seu legal representante, dado tratar-se de testemunhos idóneos, com conhecimento de causa, que se integram no âmbito do que é considerado normal no decurso de uma qualquer relação comercial.
14. Diversamente, não poderá adotar-se a mesma postura em relação ao depoimento feito pela testemunha, DD, que não logrou convencer o douto Tribunal de factos cujo absurdo decorre do primado do bom senso.
15. Por essa circunstância, ao invés da pretensão do Recorrente, o depoimento desta testemunha terá que julgar-se desprovido de qualquer valor probatório.
16. Quanto à questão da não impugnação pela Autora dos documentos juntos pelo Recorrente, reitera-se que mais uma vez este extraiu conclusões precipitadas dos elementos constantes dos autos.
17. De facto, através do requerimento com a refª Citius ...29, datado de 14 de Fevereiro, a Autora viria a pronunciar-se sobre o conteúdo daqueles documentos, tendo a propósito sustentado que os recibos por si emitidos, apesar de corretos quanto ao valor neles aposto, não são fidedignos no que respeita à fatura que referenciam.
18. Efetivamente, muitos dos recibos contém a expressão “amortização”, com o objetivo de levar ao conhecimento do Réu que os pagamentos processados eram usados para amortização da dívida existente e não para liquidação das faturas que, de forma incorreta, neles aparecem identificadas.
19. Como decorre das normas processuais vigentes, toda a oposição deduzida a documentos, porque incompatível com a sua aceitação, terá que ser interpretada como impugnação, devendo tais documentos considerar-se como impugnados e, consequentemente, destituídos de qualquer valor probatório valor probatório.
20. Por conseguinte, deve improceder, na íntegra, o recurso apresentado pelo Recorrente quanto às questões que nele suscita, mantendo-se, nesses aspetos, a decisão proferida pelo doutro tribunal a quo.
21. Sem prescindir do exposto, deve o doutro tribunal ad quem alterar a sentença do tribunal de primeira instância, no que concerne à data de início de contagem dos juros de mora.
22. Neste particular, foi dado como assente que “a autora interpelou o réu para pagamento, diversas vezes ao longo do tempo, mas a quantia não foi paga”.
23. Sem embargo de tal facto ter sido dado como provado, o certo é que acabaria por decidir-se que “no que concerne aos juros de mora, uma vez que não se provou a data concreta das interpelações, o tribunal irá fixar os juros de mora a contar da data da citação do réu”.
24. Através do requerimento de 16 de Fevereiro de 2022, com ref. Citius ...85, a Autora juntou aos autos duas missivas que, nas datas delas constantes, foram remetidas ao Réu, com a finalidade de o interpelar para pagamento da dívida que, posteriormente, viria a ser peticionada na presente ação.
25. Esses documentos nunca foram impugnados pelo Réu, tendo, consequentemente, sido por este aceites e reconhecidos.
26. Assim sendo, evidencia-se que a interpelação para pagamento deve considerar-se efetuada na data em que foi enviada a primeira missiva, ou seja, no dia 18 de Março de 2013.
27. Apesar disso, não lhes foi atribuído pela sentença o devido valor probatório.
28. Por conseguinte, deve alterar-se a matéria de facto dada como provada, por forma a que dela passe a constar que o Réu foi interpelado para pagamento, pelo menos em 18 de Março de 2013.
29. Em consequência, deve o Recorrente ser condenado a pagar juros de mora, não desde a data da citação, mas antes desde a data da sua interpelação para pagamento, em 18 de Março de 2013, alterando-se nesse sentido a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo.

TERMOS EM QUE,
— deve concluir-se pela intempestividade do presente recurso ou, no mínimo, julgá-lo totalmente improcedente;
— não prevalecendo tal entendimento, deverá o improceder totalmente o recurso interposto e, concomitantemente, ser julgado procedente o recurso subordinado, devendo, em consequência, alterar-se a sentença proferida, condenando o Réu/Recorrente no pagamento de juros de mora desde 18 de Março de 2013, fazendo-se, assim, a costumada
JUSTIÇA.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*

II: O OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, impondo-se conhecer das questões colocadas pelos recorrentes, bem como as que sejam de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas, cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, sendo certo que o tribunal não se encontra vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e que visam sustentar os seus pontos de vista, isto atendendo à liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.
Assim sendo, atentas as conclusões apresentadas importa aos autos aferir se a sentença se mostra nula por excesso de pronuncia, se a mesma deveria ter decidido de facto de forma distinta, face aos elementos de prova produzidos nos autos e ainda se havia elementos nos autos que permitissem concluir pela interpelação do réu para o pagamento e daí da data de contagem dos juros devidos.
*
 
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

A) Os factos provados

Foi dada como provada a seguinte factualidade:
1.A requerente é uma sociedade comercial, legalmente constituída, que se dedica, entre outras, às atividades de fabrico e comercialização de filigranas e outros artigos de ourivesaria, em ouro, prata e outros materiais e joias.
2. O Requerido é um empresário em nome individual, que se dedica ao comércio de joias e demais artigos de ourivesaria.
3. No desenvolvimento da sua atividade, a Requerente forneceu ao Requerido, a pedido deste, diversos artigos do seu fabrico, melhor discriminados nas faturas então emitidas, que nunca lhe foram pagas.
4. Em face do não pagamento das faturas respeitantes aos artigos fornecidos pela Requerente, todas elas já vencidas, encontra-se, neste momento, em dívida o valor global de € 41.602,38 (quarenta e um mil seiscentos e dois euros e trinta e oito cêntimos), titulado pelas seguintes faturas:
- FT ...83, no valor de € 9.859,37;
- FT ...84, no valor de € 3.691,71;
- FT ...11, no valor de € 2.730,45;
- FT ...02, no valor de € 1.693,52;
- FT ...03, no valor de € 4.099,93;
- FT ...86, no valor de € 2.864,05;
- FT ...87, no valor de € 7.893,99;
- FT ...27, no valor de € 925,65;
- FT ...29, no valor de € 2.078,30;
- ..., no valor de € 901.45;
- FT ...93, no valor de € 1.331,00;
- FT ...94, no valor de € 786,50;
- FT ...57, no valor de € 744,72;
- FT ...99, no valor de € 2.581,06;
- FT ...76, no valor de € 460,80;
- FT ...77, no valor de € 370,50;
- FT ...98, no valor de € 3.256,04.
5. Das faturas vindas de relacionar, o requerido pagou parcialmente algumas delas, pelo que se encontra em dívida o valor de € 41.602,38 (quarenta e um mil seiscentos e dois euros e trinta e oito cêntimos).
6. Parte do valor em dívida diz respeito aos encargos com letras não pagas e sucessivas reformas nos termos constantes do extracto de conta corrente junto a fls. 43 verso e seguintes dos autos – facto aditado ao abrigo do artigo 5º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Civil.
7. Apesar de interpelado, por diversas vezes, para proceder à liquidação do remanescente de tais faturas, o requerido tem vindo a protelar indefinidamente o seu pagamento, não o tendo, até ao presente momento, concretizado.
8. As condições do fornecimento dos identificados artigos de ourivesaria foram previamente acordadas entre a Requerente e o Requerido.
9. A autora interpelou o réu para pagamento, diversas vezes ao longo do tempo, mas a quantia não foi paga.
*

B) Os factos não provados

1. Sendo o prazo de pagamento convencionado a 30 dias e tendo os artigos fornecidos sido atempadamente entregues.
2. O requerido deve a quantia de 3 256,04€ respeitante à fatura nº ...98 de 31 de maio de 2012.
3. O requerido e a requerente sempre mantiveram boas relações comerciais.
4. Vários foram os fornecimentos da requerente ao requerido.
5. A dívida em causa reporta-se a fornecimentos de Maio de 2012.
6. Sucede que, desde Dezembro de 2008 o Requerido nunca mais fez encomendas à Requerida com exceção da correspondente à fatura nº ...98 datada de 31 de Maio de 2012.
7. Apesar de não efetuar encomendas à Requerida desde dezembro de 2008 ate Maio de 2012, o Requerente veio ao longo desse tempo fazendo pagamentos à requerida.
8. Pagamentos feitos, maioritariamente, em numerário e que servia para pagar o valor das faturas em atraso.
9. Sendo que os recibos correspondentes às faturas seriam entregues à posteriori ao Requerido.
10. Recibos esses que só foram entregues, ao requerido, pela requerente, em 2015, apesar de terem data de emissão anterior a essa data e não foram entregues na totalidade, sendo ainda certo que o Requerido pagou a totalidade das faturas com exceção da fatura nº ...98.
*
Consigna-se que o tribunal não respondeu aos artigos que constituem meros juízos conclusivos e/ou matéria de direito (todos os restantes).
*

IV. DO DIREITO:

Aqui chegados importa aos autos conhecer das questões já atrás enunciadas como objeto do recurso.

a) da nulidade da sentença.

Veio o réu/recorrente invocar a nulidade da sentença que subsumiu na al. d) do nº 1 do art. 615º, do Código de Processo Civil (excesso de pronúncia), o que implica pronúncia nos termos do nº 1 do art. 617º do mesmo diploma e isto porque a causa de pedir é unicamente constituída pelas relações comerciais entre a autora/recorrida e o réu/recorrente tituladas pelas faturas descritas no requerimento de injunção sendo que, analisados os pontos nº 4, 5 e 6 dos Factos Provados, o Mmo. Juiz a quo considerou que o valor em débito por parte do réu/recorrente à autora/recorrida emerge não só do não pagamento de faturas, mas também de encargos com letras não pagas e sucessivas reformas, factualidade de que não podia ter tomado conhecimento e que não é meramente instrumental. Na verdade, discutindo-se relações comerciais entre dois comerciantes, saber se determinada quantia em débito resulta do não pagamento de faturas que titulam a compra e venda de artigos ou do não pagamento de “encargos com letras não pagas e sucessivas reformas” constitui factualidade essencial.

O Mª Juiz a quo pronunciou-se nos termos do artº 617º do Código de Processo Civil e, em síntese, sustentou inexistir qualquer nulidade e isto porque, o objecto do processo, tal como determinado pela autora/recorrida - a que o Tribunal estava vinculado – foi definido por aquela, no requerimento de injunção, além do mais, remetendo para um conjunto de facturas devidamente identificadas.
Entendeu assim que, na sentença, se respeitou a vinculação de facto, tendo-se limitado a esclarecer a origem de uma parte do crédito reclamado pela autora/recorrida, sem que o mesmo tenha perdido autonomia relativamente à parte restante, ou seja, mantendo a ligação lógica e jurídica à causa de pedir daquela.

Vejamos.

Decorre do nº 1 do artº 615º, do Código de Processo Civil que é nula a sentença quando:

a) não contenha a assinatura do juiz;
b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Assim, decorre do citado preceito serem as nulidades da sentença vícios formais e intrínsecos da mesma os que taxativamente se encontram previstos no citado preceito legal.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente
à estrutura ou aos limites da sentença, sendo os relativos à estrutura os previstos sob as alíneas b) e c) e os relativos aos limites da sentença os previstos nas alíneas d) e e), conforme referem os Drs José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª Edição Almedina, pág 735.
As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função
do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológico ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (nestes termos, o Acórdão desta Relação de Guimarães de 4 de outubro de 2018 in www.dgsi.pt).
Ora, o apelante vem apontar à sentença o vício consagrado na al. d) do referido nº 1 do artº 615º do Código de Processo Civil que estabelece, como já atrás se referiu, ser nula a sentença quando “O juiz (…) conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Decorre esta causa de nulidade da sentença do princípio estabelecido no nº 2, do artº 608º do Código de Processo Civil, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
Cumpre, pois, ao juiz apreciar as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, como referem os Drs Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, Vol II, 2ª edição, pág 704, “os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cumpre [ao juiz] conhecer (…)”.
Ou seja, a sentença estará ferida de nulidade, com fundamento em excesso de pronúncia quando o tribunal aprecia questões de facto ou de direito que não tendo sido invocadas não são de conhecimento oficioso.
A este propósito, relevante se mostra ainda a limitação que decorre do nº 1 do artº 3º do Código de Processo Civil, ao estabelecer que “O Tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição”, e que consagra os princípios do dispositivo e do contraditório.
Como referem os Drs Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Almedina, Vol I, 2ª edição, pág18 e ss, “Quanto ao principio do dispositivo, podendo as partes dispor dos direitos de natureza privada, sobre as mesmas recai o ónus de promover e de impulsionar os instrumentos de natureza processual destinados a assegurar a respetiva tutela. O Estado, através dos Tribunais, não age por iniciativa própria em matéria de direito privado; só dirime os litígios cuja resolução seja solicitada pelos interessados ou por quem detenha legitimidade extraordinária ou indirecta (…)”.
E continuam aqueles Autores “o mesmo principio estende-se à configuração do objeto do processo, através da formulação do pedido e da alegação da matéria de facto que serve de fundamento à ação ou à defesa (…)”
A formulação do pedido (artº 552º, nº 1, al. e)), que vai determinar o objeto da instância e que circunscreve o âmbito da decisão final, é uma necessidade que resulta, além do mais, da consagração plena do principio do dispositivo, que faz recair sobre os interessados que recorrem às instâncias judiciais o ónus de conformação do objeto do processo (artº 3º), com repercussões nos limites da sentença (artº 609º, nº 1)”.
Importa ainda, quanto à invocada nulidade não confundir questões com factos, argumentos ou considerações, sendo que a questão a decidir está intimamente ligada ao pedido e à respetiva causa de pedir, relevando, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.

Revertamos agora ao caso em apreço.

Da leitura do requerimento inicial apresentado pela autora/recorrida resulta pedir a condenação do réu/recorrente a pagar o capital no valor de € 41 602,38, acrescido de juros de mora vend«cidos, € 30 346,54, tudo no montante de € 72 101,92, alegando, para o efeito, o seguinte:

1. A requerente é uma sociedade comercial, legalmente constituída, que se dedica, entre outras, às atividades de fabrico e comercialização de filigranas e outros artigos de ourivesaria, em ouro, prata e outros materiais, e jóias - cfr. certidão comercial permanente com código de acesso ...07.
2. O Requerido é um empresário em nome individual, que se dedica ao comércio de joias e demais artigos de ourivesaria.
3. No desenvolvimento da sua atividade, a Requerente forneceu ao Requerido, a pedido deste, diversos artigos do seu fabrico, melhor discriminados nas faturas então emitidas, que nunca lhe foram pagas.
4. Em face do não pagamento das faturas respeitantes aos artigos fornecidos pela Requerente, todas elas já vencidas, encontra-se, neste momento, em dívida o valor global de € 43.269,04(quarenta e um seis mil, duzentos e sessenta e nove euros e quatro cêntimos), titulado pelas seguintes faturas:
- FT ...83, no valor de € 9.859,37;
- FT ...84, no valor de € 3.691,71;
- FT ...11, no valor de € 2.730,45;
- FT ...02, no valor de € 1.693,52;
- FT ...03, no valor de € 4.099,93;
- FT ...86, no valor de € 2.864,05;
- FT ...87, no valor de € 7.893,99;
- FT ...27, no valor de € 925,65;
- FT ...29, no valor de € 2.078,30;
- ..., no valor de € 901.45;
- FT ...93, no valor de € 1.331,00;
- FT ...94, no valor de € 786,50;
- FT ...57, no valor de € 744,72;
- FT ...99, no valor de € 2.581,06;
- FT ...76, no valor de € 460,80;
- FT ...77, no valor de € 370,50;
- FT ...98, no valor de € 3.256,04.
5. Das faturas vindas de relacionar, o requerido pagou parcialmente algumas delas, pelo que se encontra em dívida apenas no valor de € 41.602,38 (quarenta e um mil, seiscentos e dois euros e trinta e oito cêntimos).
6. Apesar de interpelado, por diversas vezes, para proceder à liquidação do remanescente de tais faturas, o requerido tem vindo a protelar indefinidamente o seu pagamento, não o tendo, até ao presente momento, concretizado.
7. As condições do fornecimento dos identificados artigos de ourivesaria foram previamente acordadas entre a Requerente e o Requerido, sendo o prazo de pagamento convencionado a 30 dias e tendo os artigos fornecidos sido atempadamente entregues.
8. Ao valor em dívida acrescem juros de mora, à taxa legal de 7% (§ 3 do art. 102º do Código Comercial e Portaria nº 277/2013 de 26 de Agosto) que, neste momento, ascendem a € 30.346,54 (trinta mil trezentos e quarenta e seis euros e cinquenta e quatro cêntimos).
9. Nestes termos, o valor da divida, cumulado com os juros devidos desde o vencimento das faturas, ascende ao montante global de € 71.948,92 (setenta e um mil novecentos e quarenta e oito euros e noventa e dois cêntimos).
10. À Requerente assiste ainda direito aos juros que se vencerem até efetivo e Integral pagamento, assim como ao ressarcimento pela taxa de justiça paga.
Para o efeito juntou as facturas atrás referidas, no valor total de € 46.288,82.

Da leitura da contestação resulta pugnar o réu/recorrente pela improcedência parcial da injunção, devendo a dívida ser reduzida ao montante de € 3.256,04, impugnando os factos alegados, nos seguintes termos:

Na presente injunção, vem a Requerente, peticionar, que lhe seja pago o valor de 72 101,92€, alegadamente correspondente a:
- 41 602,38€ de dívida principal, respeitante a venda de artigos de seu comércio, mais concretamente os respeitantes das faturas nº...83, ...84, ...11, ...02, ...03, ...86, ...87, ...27, ...29, ...93, ...93, ...94, ...57, ...99, ...76, ...77 e ...98,
- 153,00€ relativos à taxa de justiça,
- 30 346,54 aa título de juros de mora.

Corresponde à verdade que o requerido deve a quantia de 3 256,04€.

Respeitante à fatura nº ...98 de 31 de maio de 2012
Sucede que,

O requerido e a requerente sempre mantiveram boas relações no ceio comercial.

Pelo que vários foram os fornecimentos da requerente ao requerido,

Ora, a requerente dedica-se, entre outras, à atividade de fabrico e comercialização de filigranas e outros artigos de ourivesaria, em ouro, prata e outros materiais, e joias.

Assim, o Requerido sempre adquiriu artigos à requerente para usar na sua atividade.

A dívida em causa reporta-se a fornecimentos de Maio de 2012.

Sucede que, desde Dezembro de 2008 o Requerido nunca mais fez encomendas à Requerida com exceção da correspondente à fatura nº ...98 datada de 31 de Maio de 2012,
10º
Porém, apesar de não efetuar encomendas à Requerida desde dezembro de 2008 ate Maio de 2012, o Requerente veio ao longo desse tempo fazendo pagamentos á requerida,
11º
Pagamentos feitos, maioritariamente, em numerário e que servia para pagar o valor das faturas em atraso.
12º
Faturas essas que estão sendo peticionadas pela requerente na presente injunção.
13º
Sendo que os recibos correspondentes Ás faturas seriam entregues à posteriori ao Requerido,
14º
Recibos esses que só foram entregues, ao requerido, pela requerente, em 2015, apesar de terem data de emissão anterior a essa data e não foram entregues na totalidade, sendo ainda certo que  Requerido pagou a totalidade das faturas com exceção da fatura nº ...98.
15º
Assim, aceita o requerido dever o valor corresponde à fatura nº ...98 no montante de 3 256,04€, mas desde já invoca a prescrição de todos os juros de mora nos termos do artigo 310 alínea d) do Código Civil.
16º
Valor esse que, tendo em conta a situação financeira do requerido, só poderá ser pago em prestações.
17º
Devendo a dívida, desta forma, ser reduzida à quantia de 3 256,04€
18º
Facto pelo qual a presente injunção só pode proceder quanto a esse montante.
19º
Mais acrescenta que não se entende o porquê de só agora, ao fim de tantos anos a requerente vir peticionar estas supostas dívidas, que foge totalmente à prática e usos de comercio, ainda para mais tratando-se de valores tão elevados.

Em sede de despacho saneador foi fixado, como objeto do litígio:

“Nos presentes autos cumpre apreciar se o negócio jurídico invocado pela autora foi de facto acordado entre as partes e se os produtos invocados pela autora foram fornecidos e não pagos pelo réu. Trata-se de uma ação de condenação que tem por base a responsabilidade contratual da ré”.
Diga-se ainda que, naquele mesmo despacho se fixou, como temas de prova:
“- Acordo celebrado entre as partes: forma e conteúdo.
- Preço acordado entre as partes.
- Produtos fornecidos pela autora.
- Emissão de facturas relativas aos trabalhos desenvolvidos.
- Pagamentos.
- Interpelação da ré para pagamento.
- Apuramento da quantia em dívida”.
Assim sendo, dos factos alegados pela autora/recorrida resulta como causa de pedir o fornecimento ao réu/recorrente de produtos da sua atividade comercial, no valor de € 46.288,82 e o seu não pagamento integral.
Por seu lado, em sede de contestação o réu, aceitou parcialmente a dívida, invocou o pagamento das faturas emitidas até dezembro de 2008 e impugnou os demais factos e faturas, designadamente, que lhe tenham sido fornecidos, produtos por parte da autora, desde dezembro de 2008 com exceção da correspondente à fatura nº ...98 datada de 31 de maio de 2012.
Daqui resulta incumbir à autora/recorrida a prova dos factos relativos aos fornecimentos espelhados nas faturas, após dezembro de 2008 e ao réu/recorrido o pagamento dos fornecimentos espelhados nas faturas até dezembro de 2008.
Ou seja, em nenhuma altura foi invocado, pela autora/recorrida um contrato de conta corrente, nem encargos com letras não pagas e sucessivas reformas.
Diga-se que os encargos com letras não pagas e com as sucessivas reformas configuram factos novos, não alegados pelas partes.
Mas será que, como pretende a sentença em crise, configuram os mesmos factos instrumentais?
Apreciemos pois os factos, tendo-se sempre em atenção que, conforme resulta dos nºs 3 e 4 do artº 607º do Código de Processo Civil, na sentença deve o juiz discriminar os factos que considere provados e os não provados.
Ora, em tal enunciação cabem os factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as exceções e outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a ação ou a exceção proceda e sendo necessária, far-se-á ainda a enunciação dos factos concretizadores da factualidade que se apresente mais difusa.
Na sentença podem fazer-se ainda referência a factos instrumentais factos que, para além de não carecerem de alegação, podem ser livremente discutidos e apreciados na audiência final, sendo factos que visam apenas justificar a prova de factos essenciais, relevando pois para a motivação da decisão sobre os restantes factos. (neste sentido os Drs Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol I, 2ª edição, pág 744)
Ora, como já atrás se questionou, atendendo à causa de pedir – fornecimento ao réu/recorrente de produtos da sua atividade comercial, no valor de € 46.288,82 e o seu não pagamento integral – será de entender como instrumental o facto dado como provado sob o nº6.
“ Parte do valor em dívida diz respeito aos encargos com letras não pagas e sucessivas reformas nos termos constantes do extracto de conta corrente junto a fls. 43 verso e seguintes dos autos”
Ora, salvo o devido respeito por contrária opinião, atendendo ao conjunto dos factos dados como provados resulta que este facto (a ser provado) configura um facto essencial. Na verdade, a não se atender ao mesmo, em sede de sentença, a quantia peticionada pela autora e que a mesma reporta a fornecimentos de produtos do seu comércio, no valor de € 46.288,82 e não paga integralmente pelo réu, teria de ser totalmente demonstrada pela mesma, sob pena de improceder na totalidade ou, pelo menos parcialmente o pedido.
A atender-se a tal facto, o valor peticionado pela autora – de € 46.288,82 - já não diria apenas respeito aos fornecimentos pela mesma alegados mas sim a outras vertentes do seu relacionamento comercial, quais seja letras aceites, não pagas e reformadas e consequentes despesas.
Ou seja, aquele facto que se deu como provado não é um facto que permitisse ao tribunal motivar a decisão sobre os demais factos a saber, o fornecimento de produtos no valor de € 46.288,82 e o seu não integral pagamento.  À autora importava sim demonstrar, como factos essenciais, tais fornecimentos e o preço dos mesmos, sendo certo que da prova da despesa com o não pagamento de letras e reforma das mesmas, não poderia concluir-se por aqueles factos essenciais.
E não sendo facto instrumental entendemos também não ser o mesmo complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado.
Efetivamente, como referem os Drs Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, na obra já atrás citada, pág. 31 e ss, são factos complementares os factos que se mostram constitutivos do direito ou integrantes da exceção, embora não identificadores dos mesmos e concretizadores os que “concretizam” anteriores afirmações genéricas que tenham sido feitas.
Efetivamente, da petição inicial resulta apenas o fornecimento de produtos do comércio da autora, no valor de € 46.288,82, titulados pelas faturas juntas aos autos e não pago integralmente pela ré.
Por outro lado, da contestação apresentada pela ré resulta o pagamento em numerário dos fornecimentos faturados até final de 2008 e a aceitação do não pagamento da quantia de € 3.256,04, relativa à fatura ...98.
Ou seja, em nenhuma altura foi alegada dívida resultante do não pagamento de letras e reforma das mesmas, sendo certo que, da leitura das faturas juntas aos autos nada resulta a este propósito.
E a, assim ser, alegando a autora dívida no valor de € € 46.288,82, resultante do fornecimento de produtos do seu comércio, não pode considerar-se o faco dado como provado sob o nº 6, complemento, porque não se mostra constitutivo do direito invocado pela autora/recorrida nem da exceção de pagamento invocada pelo réu/recorrente nem concretiza anteriores afirmações genéricas que tenham sido feitas pelas partes.
Diga-se ainda que a assim ser, a autora não terá alegado, em sede de petição inicial, factos que correspondessem à verdade, sendo certo que, a ser verdade o dado como provado sob o nº 6, não poderia a mesma desconhecer que não fornecera produtos no valor peticionado mas sim produtos de valor inferior ao peticionado e isto porque, parte daquele se reportava a despesas com letras não pagas e reformadas.
Em conclusão, tal facto, como facto novo que é, deveria, face ao ónus da alegação, ter sido, no mínimo invocado na petição inicial, a fim de se saber o que era peticionado pelo fornecimento de produtos titulado pelas faturas apresentadas e o que resultava de letras não pagas e reformadas, sendo pois facto essencial e não tendo ali sido invocado pela autora, nem tendo sido alegado o seu conhecimento posterior (não basta a junção de um documento titulado conta corrente para cumprir o ónus da alegação), não pode ter-se o mesmo em atenção para efeitos de decisão.
Não se mostrando o facto provado vertido sob o nº 6, instrumental, complementar ou concretizador e dele conhecendo a sentença, é a mesma nula, nesta parte, nos termos do disposto na parte final da al. d), do nº 1 do artº 615º do Código de Processo Civil, eliminando-se tal facto do elenco dos factos provados.

E que consequência se deve extrair daqui?

Aos autos importava o conhecimento do fornecimento de produtos do comércio da autora, no valor de € 46.288,82, sendo certo que, tal prova cabia à autora, cabendo à ré a prova dos pagamentos efetuados.
Ora, compulsada a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e os factos dados como provados e não provados, importa a anulação da sentença, incumbindo ao tribunal a quo, proceder às diligências que repute convenientes, designadamente, nova produção de prova, a fim de ser possível aferir quais os fornecimentos titulados por faturas e o montante relativo aos mesmos (que não do não pagamento de letras e sua reforma), ainda por pagar pelo réu.
*

IV. DECISÃO:

Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar nula a sentença por excesso de pronúncia nos termos do disposto na parte final da al. d), do nº 1 do artº 615º do Código do Processo Civil, dando por não escrito o facto dado como provado sob o nº 6 e, em consequência, determina-se que o Tribunal a quo proceda às diligências que repute convenientes, designadamente, nova produção de prova, a fim de ser possível aferir quais os fornecimentos titulados por faturas e o montante relativo aos mesmos (que não do não pagamento de letras e sua reforma), ainda por pagar pelo réu.

Custas pela recorrida.
Guimarães, 25 de maio de 2023

Relatora: Margarida Gomes
Adjuntas: Maria da Conceição Bucho
Raquel Rego.